Bolsonaro começa longa prestação de contas
à Justiça
Valor Econômico
Enquanto presidente, Jair Bolsonaro
perseguiu as vacinas contra a covid-19, negou seus efeitos, retardou sua compra
em doses necessárias para a população brasileira e jurou que nunca seria
imunizado. Fora da Presidência, vacinas passaram a perseguir Bolsonaro. O
ex-presidente foi alvo nesta semana de uma operação de busca e apreensão em um
de seus endereços pela Polícia Federal, assim como 15 pessoas. Seu ex-ajudante
de ordens, faz-tudo e conselheiro, o tenente-coronel Mauro Cid, foi preso. A
acusação: falsificação de dados sobre vacinação contra covid-19, com inserção
indevida nos registros públicos.
É irônico que vacinas sejam fonte da primeira investida da Justiça contra o ex-presidente. A falsificação, pela qual Cid é o principal suspeito, é um problema menor diante das ações e omissões de Bolsonaro, que lhe renderam 16 processos na Justiça Eleitoral, vários deles com um arsenal de provas explícitas, que dispensam investigação e que podem condená-lo, no mínimo, à inelegibilidade e, no máximo, à prisão. Os atos de Bolsonaro que o levam ao radar da Justiça costumam arrastar consigo um bando de gente que tem, quase sempre, um pé no sub-mundo do crime e das milícias.
O ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, já
esteve envolvido em uma série de operações suspeitas, como saques no cartão
corporativo da Presidência para pagar contas da ex-primeira dama, Michelle. A
mais recente, e talvez principal peripécia de Cid, foi a tentativa de trazer
para o arquivo pessoal (bolso) de Bolsonaro joias das Arábias no valor de R$
16,5 milhões. Os rastros de ilegalidades de Cid haviam chamado a atenção da
Justiça muito antes, por sua suposta ligação com as milícias digitais, e suas
conversas nada republicanas com o blogueiro golpista Allan dos Santos, sobre a
necessidade de intervenção das Forças Armadas para manter Bolsonaro no poder.
No inquérito sobre milícias digitais, Cid
apareceu fortuitamente como ator principal da inclusão ilegítima de familiares
de Bolsonaro, seus e de outras pessoas no registro oficial de vacinação contra
a covid-19.
A tentativa para registrar ilegalmente a
imunização de sua própria esposa, Gabriela, de Bolsonaro e sua filha Laura,
levaram Cid a pedir a ajuda do advogado e militar da reserva, Ailton Barros,
para conseguir que todos pudessem viajar com o então presidente, para Miami,
antes da posse do presidente eleito Lula. Um favor leva a outro e Ailton pediu
a intercessão de Cid para quebrar um galho para o ex-vereador Marcelo Siciliano
em problemas com o consulado americano no Rio. Marcelo foi acusado de ser o
mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco. A investigação foi
arquivada. Barros, em conversas gravadas pela Polícia Federal, afirmou saber
quem mandou matá-la.
Bolsonaro é acusado, pela suposta
participação em falsificação da carteira de vacinação, de seis crimes inscritos
no Código Penal. Ele pode escapar de punição, mas foi surpreendido pela
natureza da investida policial, que veio de um assunto que não constava de
nenhuma das investigações correntes e cuja gravidade é menor, se considerados
os processos em que está envolvido - 16 deles correndo apenas no TSE. Um dos
fatores, talvez o principal, que o levou a ser derrotado na tentativa de
reeleição foi sua atuação criminosa durante a pandemia, que matou mais de 700
mil brasileiros.
Sua assombrosa campanha contra as vacinas,
e sua zombaria aos que buscavam se proteger da covid-19 com o imunizante, em
vez da cloroquina por ele receitada, foi o principal capítulo da maior tragédia
sanitária da história nacional. O sigilo de 100 anos que impôs sobre sua
carteira de vacinação chamou a atenção como uma medida protetiva dispensável, e
estranha, de um propagandista tão radical contra a medicação. A obtenção da
comprovação da vacina por meios ilegais, se comprovada, seria uma mais
demonstração de sua pusilanimidade, já exibida em muitas outras ocasiões.
A estratégia de Bolsonaro deverá ser a
mesma que sempre usou, eximir-se de responsabilidade e deixar a culpa recair
nos auxiliares diretos, que lhe são fiéis, como o tenente-coronel Mauro Cid, e
Anderson Torres, que não o incriminam. O ex-presidente a empregou também para
tentar se desvencilhar da ligação com os ataques anti-democráticos de 8 de
janeiro, quando já tinha partido para os EUA sem transmitir o cargo. Sobre os
participantes da fuzarca, disse, em entrevista: “Tinha baderneiro lá, tinha
marginal... Mas a grande maioria estava lá de bobo”.
A operação da PF de terça-feira foi a avant- première da longa prestação de contas de acusações crimes cometidos, plenamente documentados, como a reunião com embaixadores de vários países para pôr em dúvida o sistema eleitoral brasileiro, e a inação diante da tentativa de atravessadores obterem comissões de intermediação de compra de vacinas sobre a qual foi informado pessoalmente. A CPI da Covid reuniu mais 10 infrações cometidas pelo então presidente. A Justiça, respeitado o devido processo legal, tem o dever de julgar inúmeros atos contra a democracia e as leis que ele cometeu em seu mandato.
O Globo
Sem contingenciamento, haverá incentivo
para o governo descumprir as metas agressivas que anunciou
É feliz e desejável a intenção do deputado
Cláudio Cajado (PP-BA), relator do projeto do novo arcabouço fiscal, de
restaurar as obrigações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),
deixadas de lado na versão encaminhada ao Congresso pelo governo. O texto que
ele deverá levar adiante para discussão ainda não veio a público, mas o caminho
apontado em reunião com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, parece ser o melhor possível para
aperfeiçoar as lacunas da proposta.
Pelos termos da LRF em vigor, há uma
avaliação bimestral do cumprimento das metas. Caso elas estejam em risco, o
governo tem a obrigação de bloquear gastos por meio do mecanismo conhecido como
“contingenciamento”. Trata-se de uma garantia de que o Estado fará o melhor
possível para cumprir o compromisso de resultado primário. O texto do arcabouço
entregue pelo governo prevê três relatórios anuais de acompanhamento, mas o
desobriga de bloquear gastos se a meta estiver ameaçada. Na prática, acaba
funcionando como incentivo à incúria fiscal.
Restaurar o bloqueio é medida essencial para que haja alguma chance de o novo arcabouço funcionar. Outra medida fundamental é manter, em caso de descumprimento da meta fiscal, a punição ao presidente por crime de responsabilidade, no limite sujeito a impeachment. O texto encaminhado ao Congresso apenas impõe que ele assine uma carta enviada ao Parlamento com suas justificativas. É o equivalente a trocar a ameaça de uma sanção grave por uma obrigação burocrática. Mais um incentivo à incúria fiscal.
A mecânica do arcabouço apresentado ao
Congresso já é, por si só, objeto de críticas consistentes de economistas
respeitados e dos maiores especialistas em contas públicas. Ao imporem às
despesas um crescimento anual acima da inflação entre 0,6% e 2,5%, sem criar
ajuste equivalente nas rubricas vinculadas constitucionalmente às receitas
(como saúde e educação), as novas regras acabarão por comprimir os recursos
disponíveis para os demais gastos ao longo do tempo. Fora isso, o impacto na
Previdência do reajuste real do salário mínimo, o piso salarial da enfermagem e
outras obrigações criadas pelas PECs da Transição e dos Precatórios estabelecem
um ponto de partida elevado para os gastos em relação ao PIB, gerando uma
situação em que será necessário um aumento brutal na arrecadação para o governo
cumprir as metas.
Esse risco é intrínseco ao arcabouço e
parece incontornável. Dificilmente a mecânica das regras apresentadas pelo
Executivo mudará no Congresso, a não ser que se resolva recriar um teto para os
gastos sob uma nova roupagem. Com o enfraquecimento dos controles e sanções da
LRF, porém, não haverá apenas probabilidade alta, mas incentivo ao
descumprimento das metas. Seria inaceitável.
O governo não pode criar uma regra apenas
para fingir que está fazendo algo em nome das contas públicas, sabendo que no
final ela será descumprida e nada acontecerá. Restaurar os controles e sanções
da LRF, como sugere o relator, é o mínimo para garantir que haverá algum
esforço do governo em nome da austeridade e que o novo arcabouço não será
apenas um jogo de faz de conta.
Câmara corrige retrocesso promovido por
Lula no Marco do Saneamento
O Globo
Cabe ao Senado referendar decisão, para que
o Brasil tenha chance de levar água e esgoto aos miseráveis
A Câmara dos Deputados teve o bom senso de
corrigir um dos maiores retrocessos promovidos pelo governo Luiz Inácio Lula da
Silva nos seus primeiros cem dias. Por 295 votos
a 136, os deputados derrubaram na quarta-feira trechos de decretos assinados
por Lula no começo de abril alterando o marco regulatório do saneamento, aprovado
pelo Congresso há três anos. Espera-se que os senadores confirmem o reparo
feito na Câmara.
No Brasil, quase 35 milhões não têm acesso
à água tratada, e 100 milhões vivem sem coleta de esgoto. É uma tragédia com
consequências nefastas na saúde da população. Dados do Banco Mundial mostram
que, em saneamento, o Brasil está atrás de países com renda bem inferior, como
Honduras, Bolívia, Peru ou Mongólia.
A principal causa dessa vergonha nacional
foi o modelo baseado em empresas estatais, municipais e estaduais. Na maioria
dos casos, elas servem de cabides de empregos para correligionários de
prefeitos e governadores, sem prestar serviços satisfatórios, cobrar tarifas
justas ou investir o necessário para suprir a deficiência crônica de água e
esgoto que mantém boa parte da população em condições insalubres. Quem tem
saneamento paga um preço baixo. Quem não tem está jogado à própria sorte.
Aprovado em 2020, o Novo Marco do
Saneamento Básico criou regras para aumentar a competição entre empresas
públicas e privadas com um objetivo: levar, até 2033, água potável a 99% da
população e tratamento de esgoto a 90%. O prazo ainda está três anos além das
metas das Nações Unidas, mesmo assim era o possível. Em pouco tempo, as
mudanças se fizeram sentir. Além da venda da Cedae no Rio de Janeiro, houve
licitações em Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Amapá, Ceará e
Goiás. Os investimentos garantidos pelas concessionárias somam R$ 72,2 bilhões.
A população atendida pelo setor privado pulou de 14% para 23%.
Há cerca de um mês, apesar de ter sido
eleito empunhando a bandeira do combate à miséria, Lula assinou decretos cujo
único objetivo era atender à demanda de corporações sindicais e prefeituras
interessadas na sobrevida de empresas municipais e estaduais, as maiores
responsáveis pelo atraso no saneamento. Uma das medidas reduziu exigências para
que as estatais comprovassem sua capacidade de investir. Outra permitiu que
companhias estaduais prestassem serviço sem licitação em microrregiões, regiões
metropolitanas e aglomerações urbanas mediante autorização de entidade
representativa.
Nos últimos 30 dias, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pressionou o governo para que fizesse as correções cabíveis, mas nada aconteceu. Na quarta-feira, a resposta veio na votação que derrubou as medidas mais retrógradas do decreto presidencial. A questão agora será analisada pelo Senado, que precisa referendar a decisão para manter a essência do marco do saneamento. O Legislativo merece aplauso quando corrige erros do Executivo.
O PIB resiste
Folha de S. Paulo
Sobem projeções para este ano, mas é
preciso corrigir rumos para um melhor 2024
A atividade econômica no Brasil está em
desaceleração, mas em ritmo bem menor do que o esperado. Os números do
desempenho de emprego, varejo e serviços de fevereiro e março foram uma
surpresa positiva, assim como o indicador de atividade do Banco Central.
Economistas do setor privado passaram a
revisar suas previsões para o crescimento do Produto Interno Bruto neste 2023,
alguns para a cercania de 2%. O Ministério da Fazenda também deve revisar suas
estimativas para cima.
Tal estado de ânimo ainda não é evidente
nas projeções do Boletim Focus, publicação do BC que compila projeções do
mercado. No
último boletim, com dados de 28 de abril, a expectativa mediana de crescimento
do PIB é de 1%.
Os motivos dos resultados em certa medida
surpreendentes são, provavelmente, um nível de emprego e rendimento do trabalho
ainda crescentes em relação ao ano passado, o aumento da despesa com benefícios
sociais e a grande safra agrícola. Embora o total de concessões de novos
empréstimos para empresas esteja em queda desde o final de 2022, o crédito para
pessoas físicas ainda resiste.
É possível que o PIB trimestral passe a
recuar a partir de metade do ano. As taxas de juros bancários estão altas, a
inadimplência aumentou, a captação de recursos no mercado de capitais estava em
forte queda até março.
O ritmo da economia mundial é declinante,
na média. A confiança de empresários e consumidores parou de diminuir em março,
mas se encontra em níveis desanimadores. Por ora, não há sinais de novos
impulsos para a atividade econômica, a não ser que sobreviesse expressiva queda
da inflação.
A economia aquecida deve ser também um dos
motivos da até agora persistente alta de preços. Em decorrência, a Selic deve
baixar menos e mais devagar, o que foi sublinhado na quarta (3) pelo BC.
É mais empecilho para uma retomada em 2024.
Segundo o Focus, a mediana da previsão de crescimento para o ano que vem é de
1,4%.
No entanto é possível melhorar os ânimos.
Uma regra fiscal mais rigorosa quanto a metas de superávits e menos tolerante
com o aumento de despesas pode contribuir para melhoras em taxas de câmbio e de
juros no mercado, assim como o faria uma aprovação da reforma tributária.
Evitar retrocessos na regulação do
investimento privado também seria uma contribuição de valor.
O governo perdeu tempo e boa vontade ao
criar polêmicas contraproducentes, em vez de se dedicar à reconstrução das
instituições e à inovação nas políticas públicas e econômica. Ainda é tempo de
rever prioridades e melhorar as perspectivas para 2024.
Mercado verde
Folha de S. Paulo
Restrição da UE a produtos de desmate
mostra futuro difícil para agro predatório
O Parlamento Europeu aprovou norma
que proíbe a
venda de commodities oriundas de desmatamento nos 27 países da União Europeia
(UE). A restrição não se aplica só a madeira, mas a uma lista
de produtos primários que inclui carne, soja, café, cacau e óleo de palma.
Ademais, entram produtos derivados desses insumos, como couro, chocolate e
móveis.
O continente recebe cerca de 60% das
exportações de farelo de soja do Brasil. Também compra grande quantidade de
soja e milho em grãos, além de metade do café vendido ao exterior. Não é
mercado que se possa desmerecer.
A Associação Brasileira do Agronegócio
emitiu protesto débil contra a medida. Alegou que a UE atropelou a legislação
nacional, cujo Código Florestal admite desmatamento legal, em percentuais
variáveis conforme o tipo de bioma (20% da propriedade na floresta amazônica,
por exemplo).
Grandes empresas compradoras e exportadoras
de grãos, contudo, aderiram já em 2008 à chamada moratória da soja, rejeitando
produto colhido em áreas de derrubada recente na Amazônia. Várias se preparam
para eliminar o desmate em suas cadeias produtivas até o fim desta década.
A norma europeia, contudo, não é panaceia.
Afinal, o Brasil está cada vez mais dependente da China. Nos últimos dez anos,
as exportações agrícolas para lá somaram US$ 302 bilhões —ante US$ 44,5 bilhões
dos dez anos anteriores. Em 2022, 63% da soja e
43% da carne exportados pelo Brasil foram comprados pelo gigante asiático.
Não há chance de retrocesso, embora tal
miragem tenha sido vendida pelo governo Jair Bolsonaro (PL) e comprada, sem
lastro, pela banda atrasada do campo. Os quatro anos de vistas turvadas pela
ideologia acabaram, e a conta chegou.
O setor agrícola responde por três quartos
das nossas emissões de gases do efeito estufa —por meio de desmatamento,
produção de metano na digestão bovina, uso de fertilizantes nitrogenados e
combustíveis fósseis.
O país tem contribuição significativa a dar
para combater a mudança do clima. É o que o mundo espera, e o certo a fazer.
No front doméstico, a pressão voltou com a troca de governo. Marina Silva volta ao Ministério do Meio Ambiente e reativa o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, que derrubou as taxas de devastação após 2004.
Os inquéritos do fim do mundo
O Estado de S. Paulo
STF usa inquéritos sobre fake news para
assuntos como a vacinação de Bolsonaro
Se ainda havia espaço para alguma dúvida,
nesta semana ficou patente que os Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF, do Supremo
Tribunal Federal (STF), estão servindo a propósitos muito distantes de seus
objetivos originais. O primeiro foi aberto para apurar fake news e ameaças
contra o Supremo, e o segundo, para investigar atuação de milícias digitais
contra o Estado Democrático de Direito. No entanto, foram usados agora para
remover da internet conteúdo sobre projeto de lei em tramitação no Congresso e
para investigar falsificação de cartão de vacinação do ex-presidente Jair
Bolsonaro.
Observa-se, nos dois casos, uso
rigorosamente irregular dos inquéritos, descumprindo regras básicas do
ordenamento jurídico. Além de prazo para terminar, toda investigação deve ter
objeto certo e determinado. E nenhum juiz dispõe de competência universal.
Acertadamente, anos atrás, o STF rejeitou o
entendimento expansivo da Lava Jato, no sentido de que todo indício criminoso
envolvendo governo federal e partidos políticos deveria ser investigado e
julgado pela 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba. No julgamento, o ministro
Alexandre de Moraes ressaltou o absurdo de transformar uma única vara em “juízo
universal de combate à corrupção”. De fato, a interpretação do então juiz
Sérgio Moro e dos procuradores da Operação fez parecer, em determinado momento,
que todos os grandes casos de corrupção do País ficariam concentrados em um
único magistrado. Sob pretexto de combater a impunidade, burlou-se o princípio
do juiz natural, que, como Moraes lembrou na ocasião, “é importante garantia de
imparcialidade”.
Agora, o País assiste a uma situação
similar. Sob pretexto de defesa da democracia em circunstâncias excepcionais, o
STF mantém abertos inquéritos que, na prática, estão conferindo uma espécie de
competência universal à Corte e, em concreto, ao relator, o ministro Alexandre
de Moraes. Os limites foram ultrapassados. O que era para investigar fake news
contra o Supremo foi usado para arbitrar debate sobre projeto de lei.
O STF agiu corretamente ao abrir os
inquéritos. Existia fundamento jurídico a justificar a competência da Corte
nessas investigações. No entanto, não existe fundamento jurídico para tornar
esses inquéritos perpétuos, menos ainda para, servindo-se deles, transformar o
ministro Alexandre de Moraes em “juízo universal de defesa da democracia”.
Essas investigações tiveram papel
fundamental. Em momentos especialmente difíceis, elas representaram a eficaz
reação do Estado brasileiro contra quem queria vandalizar o regime democrático.
Precisamente por isso, devem ser concluídas, como dispõe a lei. Manter os
inquéritos abertos, além de ser ocasião para novas medidas irregulares, coloca
em risco o bom trabalho feito antes. A Lava Jato não foi um aprendizado
suficiente? Não há apoio popular, nem circunstância política, capaz de
legitimar métodos ilegais. Transigir com tais práticas é fazer um tremendo
desserviço ao País.
Sem ingenuidade, é preciso reconhecer a
oportunidade. Os dois episódios desta semana – arbitrar debate público por meio
de inquérito policial e pendurar apuração de falsificação de cartão vacinação
contra covid em procedimento relativo a crimes contra o Estado Democrático de
Direito – facilitaram o trabalho do colegiado do Supremo. Eles são muito
acintosos para serem relevados. Não se pode tapar o sol com peneira. A condução
atual dos Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF não está de acordo com a lei e a
jurisprudência do Supremo.
O Judiciário tem pela frente um enorme
trabalho em defesa da lei e das instituições democráticas; em concreto, o
processamento das investigações e denúncias do 8 de Janeiro e o vasto campo de
indícios relacionados a Jair Bolsonaro. Não há dúvida de que o caso do cartão
de vacinação é apenas o começo. Diante desse cenário, o STF tem o dever de
respeitar a lei e sua jurisprudência. A intransigência da Corte com o erro é o
que assegura a tão necessária autoridade do Judiciário, especialmente nestes
tempos conturbados.
Em defesa da liberdade de imprensa
O Estado de S. Paulo
O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa
serve para lembrar que a imprensa livre é um pilar da democracia, pois funciona
como anteparo às mentiras que distorcem o debate público
Não existe democracia sem liberdade de
imprensa. Na verdade, ambas são inseparáveis, e os ataques a uma atingem a
outra. Nestes tempos de desinformação e falsas notícias em escala industrial, a
liberdade de imprensa constitui verdadeiro anteparo às mentiras e ambições de
quem busca o poder a qualquer custo − e o exerce à revelia dos fatos, tentando
passar por cima de tudo e todos. Não surpreende, então, que a imprensa livre e
o direito fundamental à informação sejam alvo constante de ameaças. Uma
realidade que só reforça a relevância do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa,
celebrado em 3 de maio.
Sem dúvida, a escalada liberticida que hoje
varre o planeta amplia o simbolismo dessa data instituída há 30 anos pela
Organização das Nações Unidas (ONU). Infelizmente, o cenário internacional não
é nada animador, e isso ficou claro no mais recente relatório do instituto
sueco V-Dem, que periodicamente traça um panorama da realidade política em mais
de 180 países. No ano passado, pela primeira vez desde 1995, havia mais
ditaduras do que democracias plenas no mundo, ao passo em que também cresce o
número de países classificados como democracias falhas e autocracias
eleitorais.
Vale notar que a liberdade de imprensa é
atacada pelos mais diversos lados do espectro ideológico. Governos de esquerda,
direita e populistas em geral não medem esforços para restringir e controlar o
trabalho da imprensa, privando a sociedade de um direito essencial: o livre
acesso à informação, base para o exercício da cidadania e para os demais
direitos fundamentais. Lamentavelmente, perseguir e prender jornalistas,
censurar publicações e proibir o funcionamento de veículos de comunicação são
iniciativas que se repetem em diferentes partes do mundo, como se fizessem
parte de uma espécie de manual universal dos inimigos da democracia − ao lado
da asfixia financeira, da intimidação e da incitação à violência contra
profissionais, entre outras estratégias.
Em sua mensagem por ocasião do Dia Mundial
da Liberdade de Imprensa, o secretário-geral da ONU, António Guterres, destacou
que “a liberdade de todos depende da liberdade de imprensa”. De fato, calar a
imprensa é abrir a porta para o arbítrio e para desmandos de toda natureza,
inclusive para a corrupção. Corretamente, Guterres afirmou que “a liberdade de
imprensa representa a própria essência dos direitos humanos”. Algo que regimes
autoritários, como se sabe, não toleram.
A diretora-geral da ONU para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco), Audrey Azoulay, acrescentou um dado grave: o
número de jornalistas assassinados aumentou em 2022, com 86 profissionais
mortos − mais da metade na América Latina e no Caribe, região mais afetada por
esse tipo de violência no mundo. Ela chamou a atenção ainda para perseguições a
jornalistas na internet, uma forma de intimidação crescente, sobretudo contra
profissionais mulheres.
Ataques ao jornalismo e à liberdade de
imprensa se intensificam em meio à disseminação de fake news nas redes sociais,
uma verdadeira epidemia global capaz de influenciar o resultado de eleições e
de pôr em risco a saúde e a vida de populações inteiras − como se viu na
pandemia de covid-19, com o negacionismo científico dificultando o trabalho de autoridades
sanitárias. No Brasil, a desinformação virou política oficial sob o governo do
então presidente Jair Bolsonaro, a ponto de que veículos de comunicação, entre
eles o Estadão, tenham tido que formar um consórcio para monitorar e divulgar
estatísticas de mortos e infectados pela covid-19, pois o Ministério da Saúde
dificultou o acesso aos dados.
Mais que nunca, defender a liberdade de
imprensa é um imperativo para quem tem compromisso com a busca da verdade, com
a construção da República, com a garantia dos direitos fundamentais e com a
liberdade de escolha dos cidadãos − princípios que orientam este jornal há mais
de um século e são reiteradamente defendidos aqui neste espaço. Eis uma missão
que se renova diariamente com a certeza de que a liberdade de imprensa é
caminho indispensável ao desenvolvimento do Brasil.
Luz no fim de um longo túnel
O Estado de S. Paulo
Sinalização de fim do aperto monetário é
boa notícia, mas o governo precisa colaborar
Mais importante do que suas decisões sobre
juros, anunciadas na quarta-feira e amplamente esperadas, foi o recado embutido
nos comunicados dos Bancos Centrais (BCs) do Brasil e dos Estados Unidos,
abrindo a possibilidade do fim do atual ciclo de aperto monetário. Não de
imediato, mas aumentaram as chances de uma mudança acontecer neste ano.
O Banco Central brasileiro manteve a taxa
Selic em 13,25% ao ano pela sexta vez consecutiva. O Banco Central americano (o
Fed) elevou os juros em 0,25 ponto porcentual para 5,25% ao ano. Poucos
especialistas apostavam que seriam aprovadas medidas diferentes dessas.
Como em muitos outros países, a expectativa
das autoridades é forçar a queda da inflação com o desaquecimento da economia
via aperto de crédito – o que já se observa globalmente. O Banco Central
Europeu (BCE) também mostrou moderação ao elevar sua taxa de juros em 0,25
ponto porcentual (de 3,50% para 3,75%), e nas três reuniões anteriores o
aumento havia sido de 0,50 ponto.
No caso brasileiro, chama a atenção a
sutil, mas relevante, mudança nas palavras do comunicado do Comitê de Política
Monetária (Copom). Nos informes anteriores, desde agosto do ano passado, o BC tinha
alertado que não hesitaria em retomar o ciclo de aumento dos juros caso o
processo de desinflação não transcorresse como esperado. Desta vez, foi
acrescentado que se considera um novo aperto monetário “um cenário menos
provável”. E avaliou que o envio pelo Ministério da Fazenda ao Congresso de um
plano fiscal reduziu a incerteza nessa área.
No caso americano, a tendência seria de
novos aumentos dos juros nos próximos meses, como disse o presidente do Fed,
Jerome Powell. Pesou, porém, a crise bancária que se desenrola no país desde
março. Bancos regionais dos EUA entraram em colapso, com impacto sobre a oferta
de crédito. Se o Fed continuasse elevando o custo do dinheiro nas próximas
reuniões, a tendência seria de aprofundar o cenário desfavorável ao funcionamento
de bancos.
Como em outros países, inclusive nos EUA, a
economia brasileira vive momentos de indefinição sobre seus rumos no segundo
semestre de 2023, com indicadores muito negativos e outros sintomas não tão
ruins. A perspectiva de redução dos juros, ainda que mais demorada do que
gostaria o governo do presidente Lula da Silva, pode ajudar a animar
investimentos no setor produtivo.
Desde a posse da nova administração, a política monetária do BC tem convivido com fogo cerrado do próprio Lula e dos ministros da área econômica, além de petistas. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, repetiu que “nenhum banco central quer juros altos, a gente quer baixar os juros”, e declarou que juros altos são um problema de todos – governo, sociedade e Banco Central. Tem razão. Quanto mais responsável for o governo e quanto maior for o respeito pelos fundamentos da economia, maior a possibilidade de o Brasil voltar a conviver com um nível de juros civilizado.
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