Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
As estradas do mundo estão cheias de uma
nova versão social do gênero humano: os sem lugar a caminho de lugar nenhum
A existência de 150 mil pessoas na
fronteira do México com os Estados Unidos, à espera da possibilidade de
atravessá-la, é interpretada como fator muito provável de iminente e enorme
problema social em curto tempo em solo americano. Essa aglomeração vem
crescendo em decorrência da difusão da notícia de que, com a redefinição da
atitude daquele país em relação à covid, com o abrandamento dos efeitos da
doença, o governo americano já não recusará automaticamente a entrada de
migrantes.
Pouca atenção se presta ao modo como no mundo inteiro as grandes massas de desvalidos interpretam proibições ou permissões reais ou supostas naquilo que lhes toca. As estradas do mundo estão cheias de uma nova versão social do gênero humano: os sem lugar a caminho de lugar nenhum. A humanidade dos sem destino, dos destituídos do direito a um lugar na condição humana.
Migrantes centro-americanos e de outras
regiões da América Latina deslocam-se penosamente em direção à fronteira
norte-americana. Multidões de verdadeiros peregrinos arrastam-se por terras
inóspitas rumo ao que definem não como lugar de destino de uma viagem, mas como
terra prometida.
No êxodo e nas paradas em grupo, na
sociedade provisória e temporária da situação social de habitantes de lugar
nenhum, fazem orações, invocam a conhecida opção de Deus pelo bem dos pobres.
Chegarão lá porque Deus está com eles. Não
é, simplesmente, a vontade deles, é a vontade de Deus que os move em direção a
um país em que supostamente serão finalmente incluídos nas promessas do
capitalismo, nem que sejam as mais elementares. Ser pobre num país rico e
supostamente de oportunidades já é uma riqueza, um lugar de chegada.
Porque esse capitalismo imaginário é o
capitalismo das possibilidades de melhora de vida, de ascensão social, de ao
menos ter um lugar na sociedade. Diferentemente do capitalismo subdesenvolvido
do crescimento econômico sem desenvolvimento econômico e social dos outros
países da América Latina, ali não haverá exclusão social.
Nesse sentido, a América os espera.
Adultos, homens e mulheres, muitíssimos jovens, numerosas crianças. Pessoas que
acabam ficando pelo caminho da vida, que morrem na travessia. Os que
sobrevivem, quanto mais andam mais precisam caminhar. Cada passo expressa a
responsabilidade de dar o passo adiante.
Na vida dos sem destino é proibido voltar,
retroceder, repensar a trajetória. E se é obra de Deus, menos possível recuar,
desafiar tão poderosa vontade. Mesmo que no caminho haja riscos e perigos, rios
a atravessar, obstáculos a vencer.
Essa religiosidade do êxodo se desdobra a
partir dos pressupostos místicos que os move. Muitos entrevistados dos jornais
e dos noticiosos acreditam que a mudança de critério é expressão de uma bondade
de Biden porque a restrição agora caducada fora estabelecida pela maldade de
Trump.
Um canal de TV entrevistou uma jovem
brasileira, casada com um africano também jovem e com uma filhinha. Marido e
filha morreram afogados, na sua frente, na travessia de um rio. Essas mortes da
travessia são o crucifixo da viagem sem fim, de pessoas que nunca mais se
encontrarão e que nunca mais deixarão de buscar-se, de procurar-se na
eternidade cruel dos banidos da esperança, do caminhar sempre e não chegar nunca.
Para onde, afinal?
Na verdade, chegamos todos, mesmo os que
não caminham, à sociedade permanentemente provisória do instante e da
incerteza, da esperança reduzida às migalhas da espera, do ver a miragem do
possível que não é provável. Sociedade dos moradores da beira do caminho que
leva a lugar nenhum. De crianças que nascem depois do tempo, quando e onde já
não há lugar para elas. Que têm boca para chorar e não para rir, para o que
falta e não para o que farta. De jovens que serão velhos antes do tempo, que
aprenderão uma profissão para o emprego de desempregado ou de subempregado.
Não é só lá, na fronteira americana, que a
porta do destino está fechada. Aqui, onde copiamos com admiração o modelo
econômico da exclusão social lucrativa, a porta não está fechada. Mas 30
milhões de famintos já não têm forças nas pernas e na vida para atravessar-lhe
o limiar. Do lado de dentro, o precipício, apenas o avesso do lado de fora, não
a superação.
Os simples e desvalidos esperam. Esperam a
lucidez dos que podem criar a alternativa de uma nova economia do lucro
fundamentado na criação de emprego e renda, de igualdade democrática de
oportunidades, que salve o capitalismo para que os capitalistas cumpram sua
missão histórica de funcionários do capital em nome do bem comum.
Os desvalidos esperam um pacto
internacional que revolucione a economia e supere a iniquidade da exclusão
social. Até quando?
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).
Um comentário:
Um belo artigo,mas o sofrimento nasceu pra todos,tem muito rico que sofre mais que os pobres.
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