Folha de S. Paulo
Contra uso antissocial da comunicação,
plataformas devem ser vistas como parceiras
Estou do lado dos que acham que as empresas
de plataformas podem fazer muito mais do que têm feito para lidar com as
consequências indesejáveis da plataformização da vida pública e privada, que
ameaçam o nosso bem-estar ou os valores dos quais não queremos abrir mão.
Entendo também que marcos legais são importantes para que elas possam ter segurança jurídica ao enfrentar os usos inapropriados das infraestruturas de comunicações digitais que oferecem. Coisas que já fazem com instrumentos insuficientes, como os seus termos de uso e a detecção automatizada de condutas e usos antissociais ou antidemocráticos, podem ser realizadas com maior eficiência com tipos penais bem definidos e com o apoio de leis em que a sociedade tenha confiança.
Isso incentivaria as plataformas que
desejam se manter como parte da infraestrutura da democracia, contra
concorrentes que resolvem fazer do vale-tudo ou do acolhimento de práticas
ilegais e antidemocráticas uma parte do próprio modelo de negócios.
Não me encontro, contudo, do lado dos que
resolveram que as empresas e as próprias plataformas são intrinsecamente
perigosas, malignas, imperialistas ou antidemocráticas de modo que precisam
sentir o peso da lei o do orgulho nacional em seu pescoço. Isso ocorre quando
se substitui, como aconteceu nas semanas passadas, o foco no uso antissocial e
antidemocrático dos recursos disponíveis nas plataformas por um foco na
plataforma como um ator antissocial, parcial e antidemocrático. Que é uma forma
padrão de desresponsabilizar indivíduos e grupos que usam para o mal recursos
que todos nós usamos com outros fins, transferindo toda a responsabilidade para
uma macroestrutura.
Ora, uso social é uma coisa, estruturas e
recursos de natureza tecnológica, outra. O que uma lei consequente pode pedir é
que uma empresa conceba os seus recursos para evitar o máximo possível dos usos
inapropriados dos seus serviços e que colabore com as autoridades, dentro de um
quadro legal democrático, para evitar tais abusos.
Além disso, as empresas são diferentes
entre si no que tange à devida diligência para evitar a degeneração antissocial
das suas plataformas. E até a mesma empresa pode se transformar em outra coisa
ao logo do tempo, como vemos com o Twitter de
Elon Musk. A indistinção sempre favorece o pior padrão adotado. Por fim,
sintetizar todos os provedores e todas as plataformas sociais como uma espécie
de grande e unitário inimigo nunca teve serventia para a compreensão ou a
melhora do mundo. Já se condensou o mal capitalista nas multinacionais, já se
resolveu que havia um partido da imprensa golpista (PIG) que unificava na
parcialidade maligna todo o jornalismo brasileiro, não precisamos agora que as
"big techs" sejam o novo espantalho.
Manter o foco no lugar certo impede,
inclusive, que um PL possa
alimentar expectativas irrealizáveis, o que, ao fim e ao cabo, é fonte certa de
frustrações. Pessoas e grupos continuarão usando todas as oportunidades de
comunicação e de interação social disponíveis para delinquir e causar mal se os
seus cálculos políticos e ideológicos mostrarem que há ganho nisso. E, quando
uma porta for fechada para eles, abrirão uma janela, como tem ocorrido desde a
massificação da internet, em meados dos anos 1990.
Fala-se tanto que a lei irá controlar
algoritmos, mas o WhatsApp fez um estrago tremendo nas eleições de
2018 sem que algoritmos de visibilidade cumpram nele qualquer papel. Promete-se
tanto que o PL deixará nossas crianças mais protegidas de atentados às escolas,
mas se omite que o inferno que leva à glorificação dos massacres acontece
principalmente em imageboards como o 4chan, fora do alcance de qualquer
regulação.
Há altas expectativas com relação ao impacto
da lei na cultura das fake news, mas o fato é que mesmo os combatentes digitais
contra a desinformação demonstraram nesses dias não ter, na prática, sequer um
conceito consistente de fake news para colocar à mesa.
Por isso, o importante é garantir que
janelas e portas usadas de forma antissocial e antidemocrática possam continuar
sendo fechadas, que os custos da delinquência online se tornem cada vez mais
altos, a ponto de não poderem ser facilmente cobertos, que a invulnerabilidade
dos perversos não seja parte da cultura das redes.
Nesse sentido, é infinitamente mais útil
ter as empresas de plataformas como sujeitos comprometidos com alguns acordos
mínimos em benefício da sociedade e da democracia do que satanizadas como a
causa de tudo o que está errado na vida digital.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
Imageboards!!!???
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