A configuração da nova sociedade ainda é imprecisa, mas para Touraine as mulheres são as atrizes principais das mudanças
Alain Touraine é um dos mais renomados sociólogos do mundo. Nos inícios de sua vida acadêmica lecionou na USP e estudou a América Latina, sobre a qual publicou alguns livros, com destaque para Palavra e Sangue (1988/1989).[1] Esteve sobretudo no Brasil e no Chile. É um dos criadores da expressão sociedade pós-industrial, presente em seu livro Société Postindustrielle (1969/1969). Trabalhou inicialmente nos campos da sociologia do trabalho e dos movimentos sociais. Em 1989, na sequência de suas reflexões sobre a contemporaneidade, iniciou um ciclo de publicações sobre as transformações da sociedade moderna-contemporânea, por meio de vários livros, entre os quais O que é a democracia (1994/1996); Crítica da modernidade (1989/1997);
Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes (1997/1999); Um novo paradigma. Para compreender o mundo de
hoje (2005/2011); O mundo das mulheres (2006/2008).
A tese central de Touraine sobre as transformações da sociedade moderna-contemporânea encontra-se no livro Um Novo Paradigma. Segundo essa tese, no meu ponto de vista uma hipótese, a sociedade moderna-contemporânea teria conhecido três tipos de sociedade, cujos princípios organizadores (ou lógicas) são distintos entre si.
No primeiro tipo (séculos XVI/XVIII), as sociedades eram regidas pela política,
em termos de ordem/desordem, paz/guerra, monarquia/república. Foi o período do
fim do absolutismo, da criação da nação, do mercado nacional e internacional e
dos primórdios da democracia contemporânea.
No segundo tipo,
após a segunda revolução industrial (séculos XIX/XX), o princípio organizador da sociedade passou a
ser social: burguesia/proletariado, estratificação/mobilidade,
desigualdade/redistribuição. Foi o período das revoluções socialistas, da
criação da cultura de massa, do crescimento econômico extraordinário, do
consumismo, do Estado do bem-estar social e da expansão da democracia liberal.
Nos países centrais, o conflito principal era o conflito de classes, entre o
trabalho e o capital, que condicionava todos os outros.
No terceiro tipo (séculos XX/XXI), depois que a economia submeteu
a política com a globalização, começou a
surgir a sociedade regida pela lógica da cultura: a sociedade atual.[2] Os
atores e contradições sociais proliferaram-se, a economia globalizou-se e
ocorreu uma nova revolução cientifica-tecnológica (TIs)[3],
que impactaram o modo de produzir e os estilos de vida das pessoas no mundo
inteiro. Por sua vez, os esquemas analíticos das ciências sociais, erguidos no
quadro nacional, tornaram-se ineficientes. Esta sociedade cultural, global, não
mais regida pelo político, nem pelo social, mas pela cultura, demanda um outro
paradigma analítico para entendê-la.
Foi esse novo paradigma que o sociólogo francês tentou desenhar em
seu livro de 2005/2011 (Um novo paradigma).
Nele, tentou responder a perguntas tais como: quais são os novos atores e os
novos conflitos, qual a lógica e a dinâmica de suas relações, que desenham a
sociedade cultural?
Dois elementos
explicativos emergem, imediatamente. O primeiro é a grande flexibilidade social dos sistemas de
informação, com a revolução da TI. O segundo, é a (nova) globalização[4], que
dissocia a economia mundializada das instituições nacionais, incapazes de
controlá-la. Um e outro são sinais do esfacelamento da lógica social, da
centralidade das classes sociais e do conflito capital x trabalho. Mas, eles,
sozinhos, não são suficientes para explicar a transição de um tipo para outro
de sociedade.
É preciso constatar que a sociedade hodierna foi invadida por
fenômenos sociais conhecidos, mas que estão agora com novas configurações, como
o medo, a violência, a angústia e a liberdade pessoal. Segundo Touraine, ocorre
atualmente, nos países ocidentais, a mudança
do paradigma de nossa representação da sociedade, da vida
coletiva. Caminha-se de uma lógica em que coletividades voltadas para o
exterior são substituídas por coletividades voltadas para o interior de si
mesmas: seitas religiosas, comunidades fechadas, forças políticas nacionalistas
e iliberais, grupos de redes sociais, grupos identitários. Produz-se, com isso,
uma enorme fragmentação. A sociedade configura-se com um puzzle.
Nessa nova lógica societal, as relações com o
corpo (cuidado de si), com o outro (afetividade, acolhimento) e com a natureza
(harmonia e equilíbrio) ocupam uma centralidade ímpar.
A configuração desta nova sociedade ainda é imprecisa. A hipótese
de Touraine é que nesta sociedade nascente as mulheres são as protagonistas
principais. Segundo ele mesmo diz: o Sujeito[5] central
das mudanças passa a ser as mulheres, que criam,
gradativamente, nos países desenvolvidos do Ocidente, uma “sociedade de
mulheres”.
A mudança da lógica que rege a sociedade ocorre também por causa
do enfraquecimento gradativo do conflito capital x trabalho e ascensão de um
conjunto de novos conflitos: de gênero, de etnias, de religiões, de
vizinhanças, de nacionais X imigrantes, consumidores X empresas, além dos
conflitos em torno do uso dos serviços ambientais e preservação do meio
ambiente, os conflitos entre países e, enfim, aqueles de natureza e ordens
diversas.
O surgimento da sociedade cultural é coetâneo à vitória do
neoliberalismo, ao fenecimento da sociedade industrial, do Estado de Bem-Estar
social e da democracia liberal.[6] Mas
ela se ergue, sobretudo, a partir do final do século XX por meio da
constituição da sociedade de risco (Ulrich Beck), de redes (Manuel Castells) e
líquida (Zygmunt Bauman).
O componente identitário desta nova sociedade em emergência não se
faz mais pela profissão que exerço, mas pelo gênero pelo qual me defino
(feminino, trans, não binário), pela “raça” com a qual me identifico (negra,
indígena, mestiça, branca), pela cultura nacional à qual sinto pertencer (Sul,
Norte, europeia, latino-americana, asiática, africana) e pela cultura religiosa
a que eu adiro (cristã, muçulmana, budista). Nessa profusão de conflitos e
mudanças emerge, como anúncio de futuro, a ascensão das mulheres ao espaço
central do protagonismo.
Nesta nova lógica societal notam-se tendências de futuro, por
exemplo em relação com o corpo (cuidado de si), com o outro (afetividade,
acolhimento) e com a natureza (harmonia e equilíbrio). Elas ocupam,
gradativamente, a centralidade da sociedade dando o rumo de seu movimento, e
são impulsionadas pelas mulheres, que se deslocam da periferia das sociedades
para o seu centro.
Pode-se criticar que Touraine não dá muitos elementos de
sustentação de sua hipótese. É verdade. Mas ela não está despida de qualquer
indício. Essa ideia de “sociedade das mulheres”, uma linguagem imprecisa, é
alimentada pela expansão da presença feminina em determinados espaços institucionais
nos países desenvolvidos. No século XX, as mulheres invadiram o mundo da
educação e do trabalho, ingressando em espaços antes masculinos, como o dos
engenheiros, da politica ou dos militares. Elevaram-se a postos de direção em
empresas, partidos e governos. Porém, o estigma permanece, não desaparece assim
facilmente, pois os salários continuam desiguais, o mundo político e do poder
continua majoritariamente masculino e a violência, incluindo o feminicídio,
sobre as mulheres é uma constante vergonhosa e repulsiva. Discriminação em
particular sobre as mulheres negras. Mas as mulheres resistem e quebram
barreiras. Além disso, muitos dos comportamentos e percepções que eram tidos
como femininos disseminam-se na sociedade – o cuidado de si, o acolhimento, o
afeto, a preocupação com a reprodução da vida. E com esses novos comportamentos
e percepções os homens modificam-se.
Touraine, sobretudo no livro As
mulheres, nos fala de um protagonismo nascente e pujante, que
sai da periferia das sociedades para o seu centro. Nessa “invasão” do centro da
sociedade, os homens não estão excluídos, nem necessariamente subalternizados,
dominados. Não se trata de uma simples inversão de poder, o masculino sendo
substituído pelo feminino. Na sociedade cultural os homens são convidados a
dividir com as mulheres o projeto de uma nova sociedade, no qual as mulheres
assumem o protagonismo.
O movimento sinalizado, segundo Touraine, é possível pelo fato das
mulheres, mesmo ocupando lugares periféricos da sociedade e sendo tratadas como
inferiores ou objeto do desejo masculino, não as tornou simplesmente vítimas,
não lhes condenou a um papel passivo. Nos lugares subalternos elas resistiam (e
resistem), eram (e são) também participantes do Sujeito que transforma a
sociedade. Por isso, a palavra primeira das centenas de mulheres que foram
entrevistadas, de forma individual ou coletiva, não era a expressão sou vitima,
sou perseguida, sou discriminada, mas era: “Sou uma mulher.[7] Era
a afirmação de uma identidade que as tornam distintas dos homens, e de quem
reclamam e constroem em suas lutas, aos poucos, a igualdade. Não se trata de
uma “feminização da sociedade”, mas da construção de novas relações (na
família, no trabalho, no espaço público, na política, na sociedade civil) em
que se busca a “reconstrução dos elementos que tinham sido separados pelo modelo
europeu de modernização”, modelo, simultaneamente, machista e racista do homem
branco. Para Touraine são as mulheres que formulam os grandes temas da
reconciliação do corpo e do espírito, do privado e do público, do interesse e
da emoção, da sociedade e da natureza.
As mulheres, segundo o sociólogo francês, se colocam em geral numa
posição pós-feminista, e fazem parte dos movimentos alteromundistas ou
pós-desenvolvimentistas. E são elas que reconstroem o princípio motor da
sociedade cultural, e nele, elas ganham, cada vez mais, um papel de destaque.
Pode ser que a hipótese de Touraine não venha a se realizar proximamente, mas é uma reflexão que merece ser conhecida. E debatida, aperfeiçoada ou simplesmente negada. Ela coroa uma série de publicações do autor sobre modernidade, democracia, identidade, direitos humanos e mudanças dos atores sociais, entre outros, que se conclui ”descobrindo o protagonismo das mulheres”.
*Sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (René Descartes, 1982), e pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Autor do livro: Um mundo de riscos e desafios: conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (FAP, 2020).
Notas
[1] A
primeira data é da publicação original em francês, e a segunda é a tradução em
português. Quando tem uma única é porque foi publicado nas duas línguas, no
mesmo ano.
[2] Esta
hipótese do nascimento de uma sociedade regida pela lógica da cultura
restringe-se, na obra de Touraine, aos países desenvolvidos no ocidente. Ele
exclui expressamente as sociedades islâmicas.
[3] Revolução
por vezes sintetizada pela expressão TI – Tecnologia da informação, que hoje
ganha uma nova feição com a IA – Inteligência artificial.
[4] Nova,
porque a economia da sociedade moderna, o capitalismo, é internacional desde os
seus primórdios. Mas, se antes a economia internacional estava restrita à
esfera da circulação (de mercadoria, força de trabalho e capital), agora ela
adentrou a esfera da produção.
[5] O
uso do S maiúsculo é de Alain Touraine. Termo que explicita o produtor da
sociedade.
[6] A
expansão da democracia liberal que se inicia apos a II Guerra Mundial, continua
após o fim das “ditaduras do Sul” (Grécia, Espanha, Portugal, Brasil, Uruguai,
Argentina, Chile etc), nos anos 1970/1980, e ainda após o esfacelamento da URSS
(1990/2000), se encerra na segunda década do século XXI.
[7] Título do primeiro capitulo do livro – Um mundo de mulheres – que sucedeu ao livro Um Novo paradigma. O que lembra o discurso de Sojourner Truth, proferido em 1851 – Ain’t I a woman?
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