O Estado de S. Paulo
A democracia digital não soterra a democracia como tal nem destrói a ‘velha política’. É um vetor de reorganização, que não virá por inércia ou mecanicamente
Há uma questão posta na mesa: se
praticamente tudo está tomado pelas tecnologias de informação e comunicação
(TICs), se a vida ficou digital, por que a política e a democracia escapariam
ilesas dessa situação?
A democracia nunca foi um regime perfeito.
Como valor, como princípio e proposta, tem seguido em frente com poucos arranhões.
Quando levada à prática, porém, quando precisa interagir com as circunstâncias
sociais concretas, esbarra em muitos desafios. Nos últimos tempos, giramos em
torno da “crise da democracia” e da necessidade de reformar os sistemas
políticos.
Com o crescimento das extremas direitas no mundo, a crise se aprofundou. Políticos autoritários, eleitos pelo voto popular, ganharam legitimidade para corroer os sistemas democráticos a partir de dentro, aproveitando-se da insatisfação social, dos efeitos da globalização, das ferramentas digitais e da desorganização das populações. As classes sociais foram engolidas pelas transformações em curso e, sem elas, os indivíduos ficaram soltos, formando multidões. Com isso, os partidos sofreram um baque identitário: já não mais conseguem atuar com referências objetivas claras nem com programas que se remetam a um ou outro grupo da sociedade. Passaram a funcionar no modo inercial, como estruturas burocráticas focalizadas exclusivamente na conquista e no controle do poder político, sem alimentar os laços que poderiam aproximá-los dos cidadãos.
A massificação da internet, dos
computadores pessoais e dos smartphones revoluciona o modo como vivemos. Faz
com que o espaço público fique plural e heterogêneo. A mídia impressa permanece
central, mas as possibilidades abertas pelas TICs transformaram cada pessoa num
gerador de mensagens e conteúdos. Vivendo hiperconectados, passamos a nos
saturar de informações, sem saber bem o que fazer com elas. Graças aos
estímulos compulsivos dessa situação, muitas pessoas espalham desinformação e
bobagens, pondo em circulação uma montanha de boatos e narrativas, muitas das
quais sem pé nem cabeça.
A situação se torna paradoxal. Na política,
a participação no debate público aumenta, mas não se organiza. Indivíduos
soltos, “empoderados” e ativos, recepcionam, amplificam e multiplicam mensagens
a torto e a direito. O espaço público se converte num ambiente ruidoso e fora
de controle, que confunde as pessoas e facilita a manipulação política.
Com grupos que se fazem e desfazem com
rapidez, a política fica entregue ao influxo de indivíduos e multidões carentes
de referências programáticas, que falam alto, incomodam e influenciam as
instâncias de poder, servindo como insumo para o trabalho dos políticos,
especialmente nos períodos eleitorais. O resultado é que a democracia perde
estabilidade, funcionalidade e previsibilidade. Surgem, assim, novas condições
de possibilidade para a emergência de líderes autoritários, formas variadas de
populismo, governantes sem ideias, crises recorrentes.
A democracia digital é mais do que
democracia eletrônica. Associa-se à introjeção de recursos tecnológicos nas
práticas governamentais, na política e na administração pública (o governo
eletrônico), mas vai além disso: assenta-se na profunda, célere e irrefreável
digitalização da vida, quer dizer, no enxerto das TICs em toda a existência,
social e individual. A hiperconectividade veio como algo impossível de ser
evitado. Um belo dia, estávamos todos conectados em tempo integral,
satisfazendo digitalmente todas as necessidades da vida prática, sensível e
relacional. Viver conectado, em redes, agarrados a celulares, PCs e tablets –
conversando, trabalhando, buscando prazer e diversão, interagindo, produzindo
cultura, conteúdos e informações –, tornouse uma condição existencial no século
21.
A democracia digital não soterra a
democracia como tal, com sua cota de valores e princípios. Também não destrói a
“velha política”. Simplesmente acrescenta novas camadas e novas expectativas a
tudo isso. Nestes termos, é um vetor de reorganização, que, como sempre, não
virá por inércia ou mecanicamente, ou seja, continuará a exigir a presença de
atores políticos democráticos, qualificados para traduzir politicamente as
pressões sociais e as inovações tecnológicas. A participação digital não
elimina a necessidade de formas presenciais de participação, do mesmo modo que
decisões tomadas online não podem preencher todo o universo das decisões
políticas.
A democracia não será salva pela digitalização.
Sistemas complexos, dinâmicos e pluralistas não podem ser salvos por um único
expediente. Se a democracia apresenta déficits e imperfeições, não será com
injeções tecnológicas que soluções poderão ser alcançadas. Os meios digitais
são recursos importantes e precisam ser incorporados em nossos sistemas
políticos. Mas nada avançará de fato se os democratas – políticos e cidadãos –
não forem capazes de formular e executar reformas que qualifiquem a democracia
e a adaptem às circunstâncias atuais.
*É professor titular de Teoria Política da Unesp
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