segunda-feira, 19 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

S&P melhora rating do país, mas faz vários alertas

Valor Econômico

Brasil será rebaixado se a adoção de políticas “inadequadas” resultarem em expansão econômica limitada

A melhoria de “estável” para “positiva” da classificação de risco do crédito soberano de longo prazo feita pela S&P foi ótima notícia para o Brasil. Ela indica que, realizando as reformas em curso, evitando voltar atrás nas que já foram feitas e terminando o trabalho de controlar a inflação será possível voltar a obter o grau de investimento que o país já teve em 2008. É preciso dar um salto de dois degraus para atingir esse rating, algo que requer um duro trabalho do governo. O governo recebeu com alegria a boa notícia, mas interpretou-a como um aval prévio ao novo regime fiscal proposto e, de forma implícita, a suas políticas. Essa interpretação é incorreta. Na comemoração, houve mais críticas à política do Banco Central.

No título da nota que comunica a reavaliação, a S&P dá o tom de sua análise: há a “expectativa de políticas pragmáticas”. A exposição das razões alinha não só as reformas que antecederam o governo Lula como os riscos de que ele venha a revertê-las. “Esperamos que o pragmatismo político do governo se traduza em uma estrutura estável e previsível para a política monetária, esforços para conter o deslize fiscal e governança eficaz das entidades relacionadas ao governo, muitas delas com papéis importantes na economia brasileira”.

A S&P menciona que desde 2016 - ano em que Dilma Rousseff sofreu impeachment, não mencionado - foram feitas reformas para modernizar a economia e enfrentar a péssima situação fiscal. O resultado: o crescimento foi melhor que o esperado nos últimos dois anos, embora seja muito fraco em relação a países emergentes comparáveis. O esperado equilíbrio entre governo, Congresso e instituições públicas independentes, afirma a empresa, faz crer que a reversão das reformas é improvável. As mencionadas são: independência do Banco Central, mudanças no sistema previdenciário, revisão do código trabalhista, governança mais sólida das entidades relacionadas ao governo e “a existência de uma regra fiscal”.

Apenas a última é obra do atual governo e avaliada como mais permissiva que o teto de gastos. Em todas as demais, no entanto, a volta ao passado foi cogitada, seja diretamente pelo presidente Lula, seja por seus ministros (casos da reforma previdenciária e trabalhista). No caso da governança das estatais, o governo e o PT se aliaram à parcela mais retrógrada da Câmara dos Deputados para amenizar dispositivo da lei das estatais que dificulta o aparelhamento político dos mais altos cargos das empresas do Estado.

Sobre o novo regime fiscal, a S&P julga que é bom que haja uma regra, embora a considere mais fraca que a do teto de gastos. Ela contém “gatilhos” que permitem uma melhora fiscal, ou, interpretando de outra forma, evitam o crescimento explosivo dos déficits fiscais. As conclusões sobre o novo regime não são otimistas. “Dada a alta receita tributária do Brasil, acreditamos que depender majoritariamente de medidas de arrecadação tributária resultará em apenas uma modesta melhora fiscal”, registra a nota da S&P. “As perspectivas de crescimento de longo prazo continuarão limitadas por déficits fiscais elevados e rigidez orçamentária”.

O esforço do governo para combater os subsídios fiscais e a reoneração da gasolina “devem mitigar a derrapagem fiscal”, para a S&P. Os déficits nominais durante o governo Lula poderão ser, na média do período 2023-2026, de 5,5% do PIB, maior do que os 3,8% do PIB de 2022.

Por outro lado, os fatores que trazem perspectiva econômica melhor derivam, de alguma forma, de restrições que impedem o governo de executar uma política tradicional petista. As “políticas pragmáticas” a que se refere a S&P decorrerão de o governo render-se à realidade de um Congresso fragmentado, no qual sua base está distante da maioria, hoje nas mãos de grupos centristas, e buscar o consenso possível. A S&P elogia o sistema de pesos e contrapesos institucional brasileiro, reconhecendo, no entanto, que ele torna moroso o processo das reformas necessárias, boa parte delas dependendo de mudanças na Constituição, e impede a quebra da enorme rigidez orçamentária.

De outro lado, a S&P avalia bem o trabalho do Banco Central, coberto de críticas pelo presidente Lula desde o primeiro dia de seu mandato. Atribui em parte à política monetária restritiva a queda bastante significativa da inflação e acrescenta: “Esperamos que a independência do Banco Central para buscar sua meta de inflação continue, apesar de algumas pressões políticas”.

O que poderá dar certo daqui para frente, permitindo novos saltos no rating? Segundo a S&P, a execução de políticas que reduzam as fragilidades fiscais, conjugada com reformas (especialmente a tributária), pode preparar o terreno para um crescimento maior. A inflação baixa e o afrouxamento monetário sustentam a perspectiva de expansão econômica.

Mas o Brasil será rebaixado se a adoção de políticas “inadequadas” ou a fraca execução das políticas em curso resultarem em expansão econômica limitada e “deterioração fiscal adicional”, além de “carga de endividamento acima do esperado”. Para uma revisão positiva, sobram alertas sobre o futuro.

Faltam recursos para a Defensoria Pública da União

O Globo

No Judiciário mais caro do mundo, quem mais precisa de advogado para se defender fica sem nada

Os desníveis econômicos e sociais do Brasil prejudicam o acesso da população a serviços públicos essenciais como a Justiça. Para atender a imensa população de baixa renda, sem condições de contratar advogados, foi instaurada a Defensoria Pública da União (DPU). Do gigantesco orçamento previsto para o Judiciário neste ano — R$ 59,7 bilhões—, R$ 700 milhões são destinados aos defensores públicos. Para a DPU estar presente em todas as seções e subseções do Judiciário, a estimativa é que seriam necessários mais R$ 2,2 bilhões. Com a verba disponível, a Defensoria só estará presente em 29% das seções e subseções da Justiça.

Chamada, com razão, de primo pobre em meio ao Judiciário mais caro e perdulário do mundo, a Defensoria recebeu apenas nos últimos três anos 17.400 cartas de presos pedindo assistência jurídica, segundo reportagem do GLOBO. A maioria não pôde ser atendida. No Piauí, há apenas uma seção com defensores, a de Teresina. As cinco restantes estão desguarnecidas, sem profissionais para defender nenhum pobre acusado de crime.

Entre os que receberam assistência havia casos de flagrante injustiça em condenações apressadas. Numa condenação por roubo com arma de fogo feita apenas com base em reconhecimento fotográfico — prática já vetada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) —, o defensor conseguiu soltar o condenado com um habeas corpus, e em seguida apareceu o verdadeiro autor do crime. Numa população carcerária de 1 milhão, quase metade está em regime de prisão provisória, sem condenação, situação em que é imprescindível dispor de advogado ou defensor público. Nem sempre é o que acontece.

A DPU não assiste juridicamente apenas presos. Ajuda qualquer pobre que precise defender algum direito perante o Estado. Sem dinheiro para ter veículo próprio, os defensores costumam ir de carona com colegas procuradores nos flagrantes de trabalho equivalente à escravidão. Fazem também mutirões itinerantes pelas cidades. Num deles, no interior do Pará, a costureira Ilma Tavares relatou que, com osteoporose, sequelas no punho e na perna direita, pedira em 2018 auxílio-doença ao INSS. Foi negado. A DPU entrou com ação judicial, em tramitação, e obteve para ela o Benefício de Prestação Continuada (BPC) de um salário mínimo, que Ilma desconhecia. Podem-se imaginar os dramas dessa natureza numa população de 40 milhões com renda de até dois salários mínimos sem defesa jurídica — o público-alvo da DPU, segundo o defensor público-geral federal em exercício, Fernando Mauro.

Os defensores públicos reclamam que o orçamento está congelado desde 2016. Nos dois anos anteriores, a DPU ainda conseguiu criar 20 novas unidades em cidades do interior. Depois, nenhuma nova despesa na expansão da DPU pôde ser realizada. Com orçamento aquém de suas necessidades, a DPU é uma exceção no Judiciário. Seria fundamental que as associações de advocacia pelas prerrogativas dos réus e pelo direito de defesa de políticos e acusados de corrupção, cujo lobby nos tribunais superiores para protelar condenações e penas é fortíssimo, se ocupassem também de pressionar por recursos para aqueles que mais precisam ser defendidos no país — os mais pobres que dependem da DPU.

Brasil está despreparado para a mutação do trabalho na era digital

O Globo

Automação e inteligência artificial eliminarão 14 milhões de empregos no mundo até 2027, diz estudo

Até 2027, serão criados no mundo 69 milhões de postos de trabalho e eliminados 83 milhões, de acordo com levantamento sobre o futuro do emprego feito pelo Fórum Econômico Mundial. Esses 14 milhões de postos de trabalho deverão ser ceifados pelo avanço da automação e da inteligência artificial (IA). As novas tecnologias criarão outras alternativas de trabalho, mas a sociedade precisará estar qualificada para se adaptar à nova realidade e aproveitar as oportunidades que surgirem.

Entre os setores com mais potencial de impulsionar novos empregos estão, segundo o estudo, energia e materiais; tecnologia da informação (TI) e comunicação digital. A transição verde para uma economia de baixo carbono será também fonte importante de novos empregos. Eles surgem da necessidade de aumentar a geração de energia de fontes renováveis, com investimentos em parques solares ou eólicos.

A China lidera esse mercado de trabalho, tendo criado 42% dos empregos mundiais. Nos Estados Unidos, o governo Biden aprovou no Congresso uma lei que destina US$ 370 bilhões à transição da economia americana para energia limpa. Desde agosto, surgiram 100 mil novos empregos no segmento. Nas áreas de TI e comunicação digital, de acordo com o estudo, cada emprego gera cinco noutras áreas.

Para qualquer país usufruir a revolução tecnológica será fundamental dispor de mão de obra qualificada. Isso se traduz em forte estrutura educacional. Nesse requisito, o Brasil ainda patina, apesar dos avanços no início do ciclo fundamental. Falta conhecimento para obter resultados satisfatórios no segundo ciclo do fundamental, portanto os resultados demoram a aparecer no ensino médio. Ao anunciar a suspensão da reforma do ensino médio, o governo contribui para atrasar ainda mais a formação voltada a cursos profissionalizantes e ao ensino superior.

Será preciso também pensar em retreinamento de profissionais para atender às necessidades do novo sistema de produção. Na conferência que o Fórum Econômico Mundial promoveu no mês passado na Suíça para debater o mercado de trabalho do futuro, foi revelado que, na Europa, falta 1 milhão de engenheiros apenas para atender à demanda por painéis solares.

Será, por fim, essencial requalificar aqueles cujos empregos desaparecerão porque suas funções não serão mais necessárias. Já está em declínio a busca por cargos de secretaria executiva e administrativa, guardas de segurança, caixas de banco, vendedores de tíquetes ou carteiros. Dezenas de outras funções ficarão obsoletas. Sua manutenção só contribuirá para reduzir a produtividade da economia, como já ocorre com porteiros, cobradores de ônibus, flanelinhas e tantos outros postos.

É evidente que o Brasil está atrasado para se adequar a um tipo de sociedade que começou a surgir faz tempo e agora acelera as transformações. Educação básica, retreinamento, requalificação, tudo se tornou urgente para o país. Infelizmente, nem o Executivo nem o Legislativo parecem preocupados — ou mesmo preparados — para o desafio.

Um novo ciclo?

Folha de S. Paulo

Mundo oferece boa perspectiva para exportações, mas não como duas décadas atrás

Com o saldo comercial de US$ 11,4 bilhões obtido em maio, um recorde para o mês, e da boa perspectiva para as exportações, é oportuno avaliar se o país está diante de um novo ciclo externo positivo.

Os números recentes impressionam. Neste ano, em valores acumulados até maio, o país exportou US$ 136 bilhões, quase 4% acima do verificado em igual período de 2022. O dado principal a observar é a expansão de 9,6% na quantidade exportada, que compensou a queda de 5,1% nos preços.

As vendas de soja, que sozinha representou 19,5% da pauta, atingiram US$ 26,5 bilhões, 14% a mais em quantidade e 9,6% em valor.

Fenômeno parecido se repete no setor extrativo mineral, com embarques de US$ 29,5 bilhões, apenas 1,1% acima de 2022. Neste caso, houve ampliação de 23,4% no volume exportado e queda quase correspondente nos preços.

Em contraste, a venda de manufaturados cresceu 2,9%, para U$ 71 bilhões, com preços estáveis.
A China continua ampliando sua participação no destino das exportações brasileiras, que chegou a 30,5%, mais que o dobro da Europa e o triplo dos Estados Unidos.

Os dados sugerem que novamente as matérias-primas terão papel essencial no setor, como foi no ciclo da década 2001-10, mas agora não se devem esperar grandes aumentos de preços como antes.
Mesmo assim, o país tem posição privilegiada em vários aspectos, que precisam ser aproveitados.

No caso do agronegócio, mudou o patamar da produção. Mesmo que a grande safra deste ano —próxima a 315 milhões de toneladas de grãos— não seja repetida em 2024, o contínuo avanço da produtividade sugere que a nova base deverá se sustentar e crescer.

Padrão similar ocorre na produção de petróleo, que deve se ampliar em ao menos 50% nesta década.
Dado o contexto geopolítico de competição mais acirrada por recursos naturais, poucos podem desempenhar o papel brasileiro, de exportador diversificado.

Mais ainda, se houver sucesso na reforma dos impostos indiretos e for concluído o acordo de comércio entre Mercosul e União Europeia, o país poderá se firmar também como porto atrativo de investimentos. A pauta ambiental completa o rol de possibilidades.

A mudança nas perspectivas externas é um dos fatores que podem melhorar a nota de crédito brasileira, como destacou a agência de risco S&P a elevar de neutra para positiva a perspectiva do país.

Entretanto não se vislumbra uma repetição da bonança dos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Aproveitar a oportunidade agora demandará política econômica consistente e fortalecimento institucional.

Passe livre, dez anos depois

Folha de S. Paulo

Gratuidade carece de sustentação; debate sobre desincentivo a carros é evitado

A defesa de serviços públicos gratuitos costuma ser bandeira de grande apelo na política brasileira —em geral, sem levar em conta o proverbial ensinamento econômico de que a gratuidade é ilusória.

Como deveria ser claro, se um direito desse tipo é provido pelo Estado, os custos são compartilhados por toda a sociedade, na forma de impostos, de custos da dívida pública ou de sacrifícios em outras prioridades orçamentárias.

Tal arranjo claramente se justifica em casos como o da educação básica, fundamental na busca por oportunidades menos desiguais entre ricos e pobres, ou do sistema universal de saúde instituído pela Constituição. Em outros, corre-se o risco de aprofundar a concentração de renda ou de promover programas de má qualidade.

Um exemplo complexo é o da gratuidade no transporte coletivo, tema que há dez anos deu origem na cidade de São Paulo à onda nacional de manifestações populares que mudaram o panorama político do país. A pauta continua em debate, um tanto devido à efeméride, outro em razão da aproximação das eleições municipais.

Como noticia a Folha, até junho de 2013, somente dez cidades brasileiras adotavam o passe livre; hoje, são 74. A despeito do aumento, trata-se de número ainda inexpressivo num universo de 5.570 municípios —e não inclui metrópoles.

Na capital paulista, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) passou a flertar com a ideia, sem entretanto ter chegado até aqui a uma proposta concreta. Os subsídios pagos pela prefeitura para manter congelada a tarifa dos ônibus e propiciar gratuidades para parte dos usuários saltaram de R$ 3,4 bilhões, em 2021, para R$ 5,1 bilhões no ano passado.

É evidente que o enfrentamento dos problemas paulistanos de mobilidade urbana passa pelo incentivo ao transporte coletivo, o que também depende do sistema de metrô e trens a cargo do governo estadual.

Nesse sentido, os subsídios, que deveriam ser mais direcionados à parcela pobre da população, se justificam.

Quanto ao passe livre, no entanto, a passagem de um decênio ainda não resultou em estimativas encorajadoras de custos e benefícios.

Em São Paulo e no país, evita-se o debate mais urgente, porém politicamente espinhoso, do desincentivo ao carro particular, por razões ambientais ou de trânsito —o projeto de revisão do Plano Diretor da cidade e novos estímulos federais a automóveis vão na direção oposta.

Novos testes para o Estado de Direito

O Estado de S. Paulo

A democracia resistiu aos abusos de populistas como Boris Johnson, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Agora, o escrutínio desses abusos impõe desafios à política e à Justiça de seus países

Quando se fala das ameaças do populismo à democracia é importante lembrar que não basta ao Estado ser “Democrático”, é preciso que seja também “de Direito”. A legitimidade dos representantes políticos depende da escolha popular, mas também do respeito à lei, tal como interpretada pelo Judiciário. Em contrapartida, a Justiça deve evitar se imiscuir em deliberações políticas via interpretações extensivas da lei. O equilíbrio desse sistema será, mais uma vez, testado em velhas democracias, como a dos

EUA e do Reino Unido, e em novas, como a do Brasil.

No centro desses testes estão três ex-incumbentes populistas: Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. Os três fizeram carreira estimulando um culto à personalidade, apresentando-se como vingadores do “povo” genuíno contra “elites” corruptas e proclamando-se nacionalistas nostálgicos, indispensáveis para restaurar a grandeza da pátria. Com essa autoatribuída missão, de posse do mandato popular, os três se julgaram livres para romper convenções e afrontar instituições. Em parte por isso, os três foram rejeitados pela vontade popular – Trump e Bolsonaro, diretamente pelas urnas, e Johnson, pelos representantes eleitos no Parlamento.

Além do sistema democrático, o sistema de Justiça de seus países – ao contrário de outros, como Rússia, Turquia, Hungria ou Venezuela – resistiu às suas tentativas de empregar a lei como arma contra adversários. Agora que estão fora do poder, a Justiça enfrentará um novo teste. Os abusos de Johnson não chegaram a extrapolar a esfera política, mas os de Trump e Bolsonaro estão sob escrutínio do Judiciário.

No dia 9, Johnson, ante a iminência de um inquérito parlamentar que julgaria se ele mentiu a respeito de festas clandestinas durante os lockdowns, renunciou ao seu mandato legislativo. Na mesma semana, Trump, já o primeiro ex-presidente a ser indiciado por crime – pela Corte do Estado de Nova York sob acusação de violação de regras eleitorais –, tornou-se o primeiro indiciado por crimes federais – por, alegadamente, reter documentos sigilosos. No dia 22, Bolsonaro será julgado no Tribunal Superior Eleitoral pela acusação de abuso do poder político.

Tais processos afirmam o princípio basilar do Estado de Direito: ninguém está acima das leis. Mas sua sensibilidade política impõe um novo desafio. Se antes se testou a independência da Justiça, agora se testará sua isenção. Se antes ela resistiu a ser um instrumento do poder político, agora deve resistir a ser um instrumento de retaliação política.

A Justiça, por óbvio, deve ser sempre imparcial. Mas, em casos em que suas decisões impactam deliberações da vontade popular, não basta ser imparcial, é fundamental parecer. Não basta a observância rigorosa dos ritos legais, é preciso especial acurácia com a publicidade dos processos, justamente para imunizá-los contra a desvirtuação de facções políticas, seja para se martirizar, para se vingar ou para desmoralizar a própria Justiça.

Johnson, Trump e Bolsonaro já estão alardeando “perseguição política”. No caso de Johnson, a implausibilidade é mais evidente: sua deposição e a atual investigação foram corroboradas por membros de seu próprio partido, que têm legitimidade para impedir que ele concorra novamente pela legenda. No caso de Trump, o veredicto final virá da vontade popular. Mesmo condenado, ele pode concorrer. É um sintoma do mal-estar da democracia americana que ele seja o favorito do partido Republicano e que seus partidários estejam, de antemão, comprando sua tese de perseguição política. De todo modo, os maiores riscos e responsabilidades restam na esfera política. Já no caso do Brasil, recaem sobre a Justiça. Ao decidir sobre a elegibilidade de Bolsonaro, ela precisa mostrar que sua função não é livrar a democracia dos “maus” políticos – essa é tarefa do eleitor –, mas somente dos que cometem crimes. Ao desafio corriqueiro de aplicar a lei sem excesso nem leniência, sem temor nem favor, soma-se o de resistir à tentação de ser um tribunal político. Ao fim e ao cabo, contudo, ambos são um só e mesmo desafio.

Lula é um sujeito de sorte

O Estado de S. Paulo

Com um cenário exterior bem melhor do que o previsto e sinais positivos na economia interna, está na hora de o presidente aproveitar a sorte para fazer escolhas certas

Lula da Silva é um sujeito de sorte, não há como negar. Eleito para seu terceiro mandato na Presidência da República quando o ponteiro da bússola econômica mundial apontava para um período de recessão longo e penoso, ele chega ao fim do primeiro semestre de governo diante de uma nova realidade. A recessão não saiu do radar, mas vem sendo postergada, para alívio geral, especialmente nas duas economias de maior peso: Estados Unidos e China.

Impossível avaliar agora a duração desse desafogo, mas o simples fato de estar ocorrendo já é suficiente para revisar para cima expectativas para a nossa economia. Conforme destacou reportagem do Estadão, o quadro externo surpreendentemente mais positivo do que se esperava deve levar a um saldo recorde na balança comercial brasileira, com superávit superior a US$ 70 bilhões, e carimbar com o selo de recorde o desempenho de 2023.

Em janeiro, o relatório Perspectivas Econômicas Globais, do Banco Mundial, alertava para o risco iminente de o mundo enfrentar duas recessões numa mesma década. Não seria algo inédito, mas um fato raro, dado que o último registro semelhante ocorreu há mais de 80 anos. Estávamos, no início deste ano, a um passo do precipício. Bastava carregar um pouco nas cores do cenário adverso, como numa ameaça de recidiva da pandemia de covid, por exemplo, para que a recessão global se materializasse.

Naquela ocasião, as estimativas giravam em torno de uma desaceleração generalizada do crescimento econômico, com revisões para baixo para a quase totalidade das economias avançadas. A previsão do crescimento mundial era de 1,7% em 2023. Neste mês o relatório foi recalibrado e a projeção para o PIB mundial aumentou 0,4 ponto porcentual, para 2,1%. Ainda que represente uma angustiante lentidão na marcha econômica e um recuo ante a taxa de 3,1% de 2022, já é um respiro.

Consultores, analistas e economistas ainda se debruçam sobre o que estaria causando esse fenômeno na atividade, mesmo em meio à queda de confiança de investidores e consumidores neste retorno à normalidade pós-covid. Que essa tarefa fique com eles, para esquadrinhar, com a expertise que detêm, os fatores movimentadores da economia. Para o Brasil, mais importante do que identificar as razões para a melhora das perspectivas é saber aproveitar a chance posta diante de nós.

A conjuntura interna – a despeito dos atropelos políticos que colocam na berlinda o modus operandi de Lula versão 3 – apresenta avanços importantes, como a aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto do arcabouço fiscal e a apresentação do relatório preliminar da reforma tributária. São medidas imprescindíveis para estabelecer um eixo norteador do desenvolvimento econômico.

Some-se a isso o PIB empurrado pela agropecuária no primeiro trimestre, o desempenho inflacionário abaixo do que se esperava no IPCA de maio e o câmbio sem sobressaltos, e está pavimentado o caminho para adoção de medidas seguras para o crescimento. Mas, apesar da cena interna relativamente sob controle e dos sinais vindos do exterior, o governo insiste em passar uma imagem de desorientação.

Quando dá mostras de saudosismo descabido, tentando reeditar medidas que não fazem mais sentido para a economia, como o malfadado “carro popular”, ou apresentar-se como liderança mundial reeditando o discurso mofado da guerra fria, Lula mostra que navega as águas turbulentas de 2023 com a lanterna na popa.

Sorte é ótimo. Mas de pouco adianta se não vier acompanhada das escolhas certas. Nos últimos anos o País foi “governado” (aspas necessárias) por Jair Bolsonaro, um dos presidentes mais despreparados da história – e, para piorar, azarado, pois enfrentou uma pandemia e uma guerra. Mas, como ensina Maquiavel, o bom governante é aquele capaz de montar estratégias (virtù) para não ficar à mercê das circunstâncias (fortuna). Por indolência, Bolsonaro não teve virtù e viu-se atropelado pela fortuna. Espera-se que Lula tenha aprendido com Maquiavel e Bolsonaro que não se deve governar contando somente com a sorte.

Um privilégio para a Receita Federal

O Estado de S. Paulo

Governo regulamenta bônus para auditores, penduricalho para que simplesmente façam seu trabalho

O governo editou um decreto para regulamentar o bônus de produtividade para funcionários da Receita Federal. O decreto cria um comitê gestor que será responsável por mensurar a produtividade global do órgão e definir os critérios de pagamento, que terão valor variável. Chama a atenção o fato de que o decreto tenha saído seis anos após a sanção da lei que criou o bônus e logo após o governo conceder um aumento salarial de 9% a todo o funcionalismo, o primeiro desde 2017.

Os servidores da Receita estão entre as carreiras da elite do serviço público. A remuneração inicial de um auditor fiscal é de cerca de R$ 21 mil. E mesmo que o bônus ainda não tivesse sido regulamentado, ele já vinha sendo pago – a título da bonificação, auditores recebem R$ 3 mil mensais e analistas, R$ 1,8 mil. Se não havia questões financeiras que trouxessem urgência para a regulamentação do bônus, o contexto atual explica as razões pelas quais somente agora a categoria conquistou o que queria há tantos anos.

Não se trata da força da mobilização dos servidores da Receita. É verdade que o movimento atrasou a divulgação dos dados da arrecadação e impediu que o governo apresentasse projeções mais otimistas sobre o déficit primário deste ano. Mas a coesão dos servidores já causou transtornos maiores no passado. Para ficar em um exemplo recente, de 2022, uma operação-padrão retardou o desembaraço de mercadorias em portos, aeroportos e fronteiras e gerou prejuízos bilionários.

O conteúdo do decreto é útil para explicitar o cenário em que o bônus se insere. Os critérios que medirão o índice de eficiência institucional da Receita mostram, resumidamente, que, quanto maior for a arrecadação, maior será o bônus, e nesses termos fica claro o que teria proporcionado aos auditores e analistas fiscais tamanho poder neste momento. O governo Lula dependerá fortemente do aumento de receitas para cumprir a meta fiscal. Como a proposta de arcabouço não tocará nas despesas, se o Executivo quiser garantir a credibilidade do arcabouço, terá de contar com toda a boa vontade dos funcionários da Receita.

Para a categoria, trata-se da correção de uma injustiça, uma vez que funcionários de Fiscos estaduais têm salários maiores e procuradores da AdvocaciaGeral da União (AGU) já contavam com benefício semelhante – o pagamento de honorários de sucumbência nas disputas judiciais da União. O problema é que isso despertou a cobiça das demais categorias do serviço público, que, naturalmente, pleiteiam equiparação, o que tem tudo para se tornar um problema para o governo.

Reconhecer e fortalecer o serviço público é necessário, sobretudo depois da política destrutiva que foi marca do governo Bolsonaro. Mas todo bônus, se é que deveria existir, deveria se basear em critérios que avaliem a produtividade de cada servidor de forma individual. Da forma como tudo foi feito, parece apenas uma maneira de criar um penduricalho para que algumas das carreiras que já estão entre as mais bem remuneradas do País simplesmente façam seu trabalho.

O alerta da febre maculosa

Correio Braziliense

A febre maculosa não é um fenômeno novo no país. Há registros de casos desde o início do século 20, mais precisamente em 1929, justamente em São Paulo, onde ela foi identificada pela primeira vez

As quatro mortes recentes de pessoas que foram a um evento em uma fazenda em Campinas (SP) no último dia 27 de maio, por febre maculosa, são um doloroso lembrete dos perigos de uma doença gravíssima, mas inexplicavelmente negligenciada no Brasil. Transmitida pelo carrapato-estrela, a enfermidade exige uma ação urgente e coordenada por parte das autoridades públicas no Brasil.

A febre maculosa não é um fenômeno novo no país. Há registros de casos desde o início do século 20, mais precisamente em 1929, justamente em São Paulo, onde ela foi identificada pela primeira vez. Na sequência, a doença se espalhou para Rio de Janeiro e Minas Gerais — onde, em 1943, matou em Belo Horizonte o padre Eustáquio, hoje considerado beato pela Igreja Católica e uma das vítimas mais conhecidas da enfermidade.

Agora, com o triste destaque que a doença voltou a ter, é o momento de o poder público tomar atitudes para combater o problema, em um esforço conjunto entre autoridades de saúde, especialistas em doenças infecciosas, órgãos de meio ambiente e a sociedade civil.

Em primeiro lugar, é crucial investir em pesquisa e desenvolvimento para aprimorar a compreensão sobre a febre maculosa. Recursos devem ser alocados para estudos epidemiológicos, identificação de novas áreas endêmicas e desenvolvimento de métodos eficazes de controle do carrapato-estrela.

A melhoria da infraestrutura de saúde também é essencial. É necessário garantir que os profissionais médicos estejam devidamente capacitados para diagnosticar e tratar a febre maculosa com velocidade. Como os sintomas (febre, dor de cabeça, náuseas, diarreia) são comuns a diversas outras doenças, é preciso que seja desenvolvido um protocolo para a detecção da enfermidade em seus estágios iniciais, quando o tratamento médico é mais eficaz. Os centros de saúde devem ser equipados com os recursos necessários para lidar efetivamente com a doença e para realizar estes testes diagnósticos.

A educação e conscientização da população também são fundamentais para prevenir a propagação da febre maculosa e evitar ataques desnecessários às capivaras, hospedeiras do carrapato-estrela. As autoridades devem implementar campanhas de informação em escolas, universidades e comunidades, destacando medidas de proteção individual, como o uso de roupas adequadas e repelentes.

Em paralelo, é fundamental intensificar as ações de controle do carrapato-estrela. Isso envolve a implementação de medidas ambientais, como o manejo da população de capivaras em áreas de risco e a manutenção adequada de áreas verdes urbanas. Na fazenda de Campinas, por exemplo, a área de estacionamentos apontada como o foco da doença é cortada por um córrego habitado por capivaras que vivem de modo selvagem. Também é importante incentivar a pesquisa de métodos inovadores de combate ao carrapato, que já podem estar em desenvolvimento nas universidades do país, aguardando justamente um incentivo oficial.

Por fim, a cooperação entre diferentes esferas do governo é fundamental. Deve existir uma atuação integrada dos órgãos de saúde, meio ambiente, agricultura e turismo, prefeituras, governos estaduais e governo federal para enfrentar a febre maculosa de maneira efetiva. A troca de informações e a coordenação de esforços são indispensáveis para lidar com a complexidade do problema e garantir o bem estar da população.

 

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