S&P melhora rating do país, mas faz vários alertas
Valor Econômico
Brasil será rebaixado se a adoção de
políticas “inadequadas” resultarem em expansão econômica limitada
A melhoria de “estável” para “positiva” da
classificação de risco do crédito soberano de longo prazo feita pela S&P
foi ótima notícia para o Brasil. Ela indica que, realizando as reformas em
curso, evitando voltar atrás nas que já foram feitas e terminando o trabalho de
controlar a inflação será possível voltar a obter o grau de investimento que o
país já teve em 2008. É preciso dar um salto de dois degraus para atingir esse
rating, algo que requer um duro trabalho do governo. O governo recebeu com
alegria a boa notícia, mas interpretou-a como um aval prévio ao novo regime
fiscal proposto e, de forma implícita, a suas políticas. Essa interpretação é
incorreta. Na comemoração, houve mais críticas à política do Banco Central.
No título da nota que comunica a
reavaliação, a S&P dá o tom de sua análise: há a “expectativa de políticas
pragmáticas”. A exposição das razões alinha não só as reformas que antecederam
o governo Lula como os riscos de que ele venha a revertê-las. “Esperamos que o
pragmatismo político do governo se traduza em uma estrutura estável e
previsível para a política monetária, esforços para conter o deslize fiscal e
governança eficaz das entidades relacionadas ao governo, muitas delas com
papéis importantes na economia brasileira”.
A S&P menciona que desde 2016 - ano em que Dilma Rousseff sofreu impeachment, não mencionado - foram feitas reformas para modernizar a economia e enfrentar a péssima situação fiscal. O resultado: o crescimento foi melhor que o esperado nos últimos dois anos, embora seja muito fraco em relação a países emergentes comparáveis. O esperado equilíbrio entre governo, Congresso e instituições públicas independentes, afirma a empresa, faz crer que a reversão das reformas é improvável. As mencionadas são: independência do Banco Central, mudanças no sistema previdenciário, revisão do código trabalhista, governança mais sólida das entidades relacionadas ao governo e “a existência de uma regra fiscal”.
Apenas a última é obra do atual governo e
avaliada como mais permissiva que o teto de gastos. Em todas as demais, no
entanto, a volta ao passado foi cogitada, seja diretamente pelo presidente
Lula, seja por seus ministros (casos da reforma previdenciária e trabalhista).
No caso da governança das estatais, o governo e o PT se aliaram à parcela mais
retrógrada da Câmara dos Deputados para amenizar dispositivo da lei das
estatais que dificulta o aparelhamento político dos mais altos cargos das
empresas do Estado.
Sobre o novo regime fiscal, a S&P julga
que é bom que haja uma regra, embora a considere mais fraca que a do teto de
gastos. Ela contém “gatilhos” que permitem uma melhora fiscal, ou,
interpretando de outra forma, evitam o crescimento explosivo dos déficits
fiscais. As conclusões sobre o novo regime não são otimistas. “Dada a alta
receita tributária do Brasil, acreditamos que depender majoritariamente de medidas
de arrecadação tributária resultará em apenas uma modesta melhora fiscal”,
registra a nota da S&P. “As perspectivas de crescimento de longo prazo
continuarão limitadas por déficits fiscais elevados e rigidez orçamentária”.
O esforço do governo para combater os
subsídios fiscais e a reoneração da gasolina “devem mitigar a derrapagem
fiscal”, para a S&P. Os déficits nominais durante o governo Lula poderão
ser, na média do período 2023-2026, de 5,5% do PIB, maior do que os 3,8% do PIB
de 2022.
Por outro lado, os fatores que trazem
perspectiva econômica melhor derivam, de alguma forma, de restrições que
impedem o governo de executar uma política tradicional petista. As “políticas
pragmáticas” a que se refere a S&P decorrerão de o governo render-se à realidade
de um Congresso fragmentado, no qual sua base está distante da maioria, hoje
nas mãos de grupos centristas, e buscar o consenso possível. A S&P elogia o
sistema de pesos e contrapesos institucional brasileiro, reconhecendo, no
entanto, que ele torna moroso o processo das reformas necessárias, boa parte
delas dependendo de mudanças na Constituição, e impede a quebra da enorme
rigidez orçamentária.
De outro lado, a S&P avalia bem o
trabalho do Banco Central, coberto de críticas pelo presidente Lula desde o
primeiro dia de seu mandato. Atribui em parte à política monetária restritiva a
queda bastante significativa da inflação e acrescenta: “Esperamos que a
independência do Banco Central para buscar sua meta de inflação continue,
apesar de algumas pressões políticas”.
O que poderá dar certo daqui para frente,
permitindo novos saltos no rating? Segundo a S&P, a execução de políticas
que reduzam as fragilidades fiscais, conjugada com reformas (especialmente a
tributária), pode preparar o terreno para um crescimento maior. A inflação
baixa e o afrouxamento monetário sustentam a perspectiva de expansão econômica.
Mas o Brasil será rebaixado se a adoção de
políticas “inadequadas” ou a fraca execução das políticas em curso resultarem
em expansão econômica limitada e “deterioração fiscal adicional”, além de
“carga de endividamento acima do esperado”. Para uma revisão positiva, sobram
alertas sobre o futuro.
Faltam recursos para a Defensoria Pública
da União
O Globo
No Judiciário mais caro do mundo, quem mais
precisa de advogado para se defender fica sem nada
Os desníveis econômicos e sociais do Brasil
prejudicam o acesso da população a serviços públicos essenciais como a Justiça.
Para atender a imensa população de baixa renda, sem condições de contratar
advogados, foi instaurada a Defensoria Pública da União (DPU). Do gigantesco
orçamento previsto para o Judiciário neste ano — R$ 59,7 bilhões—, R$ 700
milhões são destinados aos defensores públicos. Para a DPU estar presente em
todas as seções e subseções do Judiciário, a estimativa é que seriam
necessários mais R$ 2,2 bilhões. Com a verba disponível, a Defensoria só estará
presente em 29% das seções e subseções da Justiça.
Chamada, com razão, de primo pobre em meio
ao Judiciário mais caro e perdulário do mundo, a Defensoria recebeu apenas nos
últimos três anos 17.400 cartas de presos pedindo assistência jurídica, segundo
reportagem do GLOBO. A maioria não pôde ser atendida. No Piauí, há apenas uma
seção com defensores, a de Teresina. As cinco restantes estão desguarnecidas,
sem profissionais para defender nenhum pobre acusado de crime.
Entre os que receberam assistência havia
casos de flagrante injustiça em condenações apressadas. Numa condenação por
roubo com arma de fogo feita apenas com base em reconhecimento fotográfico —
prática já vetada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) —, o defensor
conseguiu soltar o condenado com um habeas corpus, e em seguida apareceu o
verdadeiro autor do crime. Numa população carcerária de 1 milhão, quase metade
está em regime de prisão provisória, sem condenação, situação em que é
imprescindível dispor de advogado ou defensor público. Nem sempre é o que
acontece.
A DPU não assiste juridicamente apenas
presos. Ajuda qualquer pobre que precise defender algum direito perante o
Estado. Sem dinheiro para ter veículo próprio, os defensores costumam ir de
carona com colegas procuradores nos flagrantes de trabalho equivalente à
escravidão. Fazem também mutirões itinerantes pelas cidades. Num deles, no
interior do Pará, a costureira Ilma Tavares relatou que, com osteoporose,
sequelas no punho e na perna direita, pedira em 2018 auxílio-doença ao INSS.
Foi negado. A DPU entrou com ação judicial, em tramitação, e obteve para ela o
Benefício de Prestação Continuada (BPC) de um salário mínimo, que Ilma
desconhecia. Podem-se imaginar os dramas dessa natureza numa população de 40
milhões com renda de até dois salários mínimos sem defesa jurídica — o
público-alvo da DPU, segundo o defensor público-geral federal em exercício,
Fernando Mauro.
Os defensores públicos reclamam que o
orçamento está congelado desde 2016. Nos dois anos anteriores, a DPU ainda
conseguiu criar 20 novas unidades em cidades do interior. Depois, nenhuma nova
despesa na expansão da DPU pôde ser realizada. Com orçamento aquém de suas
necessidades, a DPU é uma exceção no Judiciário. Seria fundamental que as
associações de advocacia pelas prerrogativas dos réus e pelo direito de defesa
de políticos e acusados de corrupção, cujo lobby nos tribunais superiores para
protelar condenações e penas é fortíssimo, se ocupassem também de pressionar
por recursos para aqueles que mais precisam ser defendidos no país — os mais
pobres que dependem da DPU.
Brasil está despreparado para a mutação do
trabalho na era digital
O Globo
Automação e inteligência artificial
eliminarão 14 milhões de empregos no mundo até 2027, diz estudo
Até 2027, serão criados no mundo 69 milhões
de postos de trabalho e eliminados 83 milhões, de acordo com levantamento sobre
o futuro do emprego feito pelo Fórum Econômico Mundial. Esses 14 milhões de
postos de trabalho deverão ser ceifados pelo avanço da automação e da
inteligência artificial (IA). As novas tecnologias criarão outras alternativas
de trabalho, mas a sociedade precisará estar qualificada para se adaptar à nova
realidade e aproveitar as oportunidades que surgirem.
Entre os setores com mais potencial de
impulsionar novos empregos estão, segundo o estudo, energia e materiais;
tecnologia da informação (TI) e comunicação digital. A transição verde para uma
economia de baixo carbono será também fonte importante de novos empregos. Eles
surgem da necessidade de aumentar a geração de energia de fontes renováveis,
com investimentos em parques solares ou eólicos.
A China lidera esse mercado de trabalho,
tendo criado 42% dos empregos mundiais. Nos Estados Unidos, o governo Biden
aprovou no Congresso uma lei que destina US$ 370 bilhões à transição da
economia americana para energia limpa. Desde agosto, surgiram 100 mil novos
empregos no segmento. Nas áreas de TI e comunicação digital, de acordo com o
estudo, cada emprego gera cinco noutras áreas.
Para qualquer país usufruir a revolução
tecnológica será fundamental dispor de mão de obra qualificada. Isso se traduz
em forte estrutura educacional. Nesse requisito, o Brasil ainda patina, apesar
dos avanços no início do ciclo fundamental. Falta conhecimento para obter
resultados satisfatórios no segundo ciclo do fundamental, portanto os
resultados demoram a aparecer no ensino médio. Ao anunciar a suspensão da
reforma do ensino médio, o governo contribui para atrasar ainda mais a formação
voltada a cursos profissionalizantes e ao ensino superior.
Será preciso também pensar em retreinamento
de profissionais para atender às necessidades do novo sistema de produção. Na
conferência que o Fórum Econômico Mundial promoveu no mês passado na Suíça para
debater o mercado de trabalho do futuro, foi revelado que, na Europa, falta 1
milhão de engenheiros apenas para atender à demanda por painéis solares.
Será, por fim, essencial requalificar
aqueles cujos empregos desaparecerão porque suas funções não serão mais
necessárias. Já está em declínio a busca por cargos de secretaria executiva e
administrativa, guardas de segurança, caixas de banco, vendedores de tíquetes
ou carteiros. Dezenas de outras funções ficarão obsoletas. Sua manutenção só
contribuirá para reduzir a produtividade da economia, como já ocorre com
porteiros, cobradores de ônibus, flanelinhas e tantos outros postos.
É evidente que o Brasil está atrasado para se adequar a um tipo de sociedade que começou a surgir faz tempo e agora acelera as transformações. Educação básica, retreinamento, requalificação, tudo se tornou urgente para o país. Infelizmente, nem o Executivo nem o Legislativo parecem preocupados — ou mesmo preparados — para o desafio.
Um novo ciclo?
Folha de S. Paulo
Mundo oferece boa perspectiva para
exportações, mas não como duas décadas atrás
Com o saldo comercial de US$ 11,4 bilhões
obtido em maio, um recorde para o mês, e da boa perspectiva para as
exportações, é oportuno avaliar se o país está diante de um novo ciclo externo
positivo.
Os números recentes impressionam. Neste
ano, em valores acumulados até maio, o país exportou US$ 136 bilhões, quase 4%
acima do verificado em igual período de 2022. O dado principal a observar é a
expansão de 9,6% na quantidade exportada, que compensou a queda de 5,1% nos
preços.
As vendas de soja, que sozinha representou
19,5% da pauta, atingiram US$ 26,5 bilhões, 14% a mais em quantidade e 9,6% em
valor.
Fenômeno parecido se repete no setor
extrativo mineral, com embarques de US$ 29,5 bilhões, apenas 1,1% acima de
2022. Neste caso, houve ampliação de 23,4% no volume exportado e queda quase
correspondente nos preços.
Em contraste, a venda de manufaturados
cresceu 2,9%, para U$ 71 bilhões, com preços estáveis.
A China continua ampliando sua participação no destino das exportações
brasileiras, que chegou a 30,5%, mais que o dobro da Europa e o triplo dos
Estados Unidos.
Os dados sugerem que novamente as
matérias-primas terão papel essencial no setor, como foi no ciclo da década
2001-10, mas agora não se devem esperar grandes aumentos de preços como antes.
Mesmo assim, o país tem posição privilegiada em vários aspectos, que precisam
ser aproveitados.
No caso do agronegócio, mudou o patamar da
produção. Mesmo que a grande safra deste ano —próxima a 315 milhões de
toneladas de grãos— não seja repetida em 2024, o contínuo avanço da
produtividade sugere que a nova base deverá se sustentar e crescer.
Padrão similar ocorre na produção de
petróleo, que deve se ampliar em ao menos 50% nesta década.
Dado o contexto geopolítico de competição mais acirrada por recursos naturais,
poucos podem desempenhar o papel brasileiro, de exportador diversificado.
Mais ainda, se houver sucesso na reforma
dos impostos indiretos e for concluído o acordo de
comércio entre Mercosul e União Europeia, o país poderá se firmar
também como porto atrativo de investimentos. A pauta ambiental completa o rol
de possibilidades.
A mudança nas perspectivas externas é um
dos fatores que podem melhorar a nota de crédito brasileira, como destacou
a agência de risco S&P a elevar de neutra para positiva a perspectiva do
país.
Entretanto não se vislumbra uma repetição
da bonança dos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Aproveitar a oportunidade agora demandará política econômica consistente e
fortalecimento institucional.
Passe livre, dez anos depois
Folha de S. Paulo
Gratuidade carece de sustentação; debate
sobre desincentivo a carros é evitado
A defesa de serviços públicos gratuitos
costuma ser bandeira de grande apelo na política brasileira —em geral, sem
levar em conta o proverbial ensinamento econômico de que a gratuidade é ilusória.
Como deveria ser claro, se um direito desse
tipo é provido pelo Estado, os custos são compartilhados por toda a sociedade,
na forma de impostos, de custos da dívida pública ou de sacrifícios em outras
prioridades orçamentárias.
Tal arranjo claramente se justifica em
casos como o da educação básica, fundamental na busca por oportunidades menos
desiguais entre ricos e pobres, ou do sistema universal de saúde instituído
pela Constituição. Em outros, corre-se o risco de aprofundar a concentração de
renda ou de promover programas de má qualidade.
Um exemplo complexo é o da gratuidade no
transporte coletivo, tema que há dez anos deu origem na cidade de São Paulo
à onda nacional
de manifestações populares que mudaram o panorama político do país.
A pauta continua em debate, um tanto devido à efeméride, outro em razão da
aproximação das eleições municipais.
Como noticia a Folha, até junho de
2013, somente dez cidades brasileiras adotavam o passe livre; hoje, são 74. A
despeito do aumento, trata-se de número ainda inexpressivo num universo de
5.570 municípios —e não inclui metrópoles.
Na capital paulista, o prefeito Ricardo
Nunes (MDB) passou a flertar com a ideia, sem entretanto ter chegado até aqui a
uma proposta concreta. Os subsídios pagos pela prefeitura para manter congelada
a tarifa dos ônibus e propiciar gratuidades para parte dos usuários saltaram de
R$ 3,4 bilhões, em 2021, para R$ 5,1 bilhões no ano passado.
É evidente que o enfrentamento dos
problemas paulistanos de mobilidade urbana passa pelo incentivo ao transporte
coletivo, o que também depende do sistema de metrô e trens a cargo do governo
estadual.
Nesse sentido, os subsídios, que deveriam
ser mais direcionados à parcela pobre da população, se justificam.
Quanto ao passe livre, no entanto, a
passagem de um decênio ainda não resultou em estimativas encorajadoras de
custos e benefícios.
Em São Paulo e no país, evita-se o debate mais urgente, porém politicamente espinhoso, do desincentivo ao carro particular, por razões ambientais ou de trânsito —o projeto de revisão do Plano Diretor da cidade e novos estímulos federais a automóveis vão na direção oposta.
Novos testes para o Estado de Direito
O Estado de S. Paulo
A democracia resistiu aos abusos de populistas como Boris Johnson, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Agora, o escrutínio desses abusos impõe desafios à política e à Justiça de seus países
Quando se fala das ameaças do populismo à
democracia é importante lembrar que não basta ao Estado ser “Democrático”, é
preciso que seja também “de Direito”. A legitimidade dos representantes
políticos depende da escolha popular, mas também do respeito à lei, tal como
interpretada pelo Judiciário. Em contrapartida, a Justiça deve evitar se
imiscuir em deliberações políticas via interpretações extensivas da lei. O
equilíbrio desse sistema será, mais uma vez, testado em velhas democracias,
como a dos
EUA e do Reino Unido, e em novas, como a do
Brasil.
No centro desses testes estão três
ex-incumbentes populistas: Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. Os
três fizeram carreira estimulando um culto à personalidade, apresentando-se
como vingadores do “povo” genuíno contra “elites” corruptas e proclamando-se
nacionalistas nostálgicos, indispensáveis para restaurar a grandeza da pátria.
Com essa autoatribuída missão, de posse do mandato popular, os três se julgaram
livres para romper convenções e afrontar instituições. Em parte por isso, os
três foram rejeitados pela vontade popular – Trump e Bolsonaro, diretamente
pelas urnas, e Johnson, pelos representantes eleitos no Parlamento.
Além do sistema democrático, o sistema de
Justiça de seus países – ao contrário de outros, como Rússia, Turquia, Hungria
ou Venezuela – resistiu às suas tentativas de empregar a lei como arma contra
adversários. Agora que estão fora do poder, a Justiça enfrentará um novo teste.
Os abusos de Johnson não chegaram a extrapolar a esfera política, mas os de
Trump e Bolsonaro estão sob escrutínio do Judiciário.
No dia 9, Johnson, ante a iminência de um
inquérito parlamentar que julgaria se ele mentiu a respeito de festas
clandestinas durante os lockdowns, renunciou ao seu mandato legislativo. Na
mesma semana, Trump, já o primeiro ex-presidente a ser indiciado por crime –
pela Corte do Estado de Nova York sob acusação de violação de regras eleitorais
–, tornou-se o primeiro indiciado por crimes federais – por, alegadamente,
reter documentos sigilosos. No dia 22, Bolsonaro será julgado no Tribunal
Superior Eleitoral pela acusação de abuso do poder político.
Tais processos afirmam o princípio basilar
do Estado de Direito: ninguém está acima das leis. Mas sua sensibilidade
política impõe um novo desafio. Se antes se testou a independência da Justiça,
agora se testará sua isenção. Se antes ela resistiu a ser um instrumento do
poder político, agora deve resistir a ser um instrumento de retaliação
política.
A Justiça, por óbvio, deve ser sempre
imparcial. Mas, em casos em que suas decisões impactam deliberações da vontade
popular, não basta ser imparcial, é fundamental parecer. Não basta a
observância rigorosa dos ritos legais, é preciso especial acurácia com a
publicidade dos processos, justamente para imunizá-los contra a desvirtuação de
facções políticas, seja para se martirizar, para se vingar ou para desmoralizar
a própria Justiça.
Johnson, Trump e Bolsonaro já estão
alardeando “perseguição política”. No caso de Johnson, a implausibilidade é
mais evidente: sua deposição e a atual investigação foram corroboradas por
membros de seu próprio partido, que têm legitimidade para impedir que ele
concorra novamente pela legenda. No caso de Trump, o veredicto final virá da
vontade popular. Mesmo condenado, ele pode concorrer. É um sintoma do mal-estar
da democracia americana que ele seja o favorito do partido Republicano e que
seus partidários estejam, de antemão, comprando sua tese de perseguição
política. De todo modo, os maiores riscos e responsabilidades restam na esfera
política. Já no caso do Brasil, recaem sobre a Justiça. Ao decidir sobre a
elegibilidade de Bolsonaro, ela precisa mostrar que sua função não é livrar a
democracia dos “maus” políticos – essa é tarefa do eleitor –, mas somente dos
que cometem crimes. Ao desafio corriqueiro de aplicar a lei sem excesso nem
leniência, sem temor nem favor, soma-se o de resistir à tentação de ser um
tribunal político. Ao fim e ao cabo, contudo, ambos são um só e mesmo desafio.
Lula é um sujeito de sorte
O Estado de S. Paulo
Com um cenário exterior bem melhor do que o
previsto e sinais positivos na economia interna, está na hora de o presidente
aproveitar a sorte para fazer escolhas certas
Lula da Silva é um sujeito de sorte, não há
como negar. Eleito para seu terceiro mandato na Presidência da República quando
o ponteiro da bússola econômica mundial apontava para um período de recessão
longo e penoso, ele chega ao fim do primeiro semestre de governo diante de uma
nova realidade. A recessão não saiu do radar, mas vem sendo postergada, para alívio
geral, especialmente nas duas economias de maior peso: Estados Unidos e China.
Impossível avaliar agora a duração desse
desafogo, mas o simples fato de estar ocorrendo já é suficiente para revisar
para cima expectativas para a nossa economia. Conforme destacou reportagem do
Estadão, o quadro externo surpreendentemente mais positivo do que se esperava
deve levar a um saldo recorde na balança comercial brasileira, com superávit
superior a US$ 70 bilhões, e carimbar com o selo de recorde o desempenho de 2023.
Em janeiro, o relatório Perspectivas
Econômicas Globais, do Banco Mundial, alertava para o risco iminente de o mundo
enfrentar duas recessões numa mesma década. Não seria algo inédito, mas um fato
raro, dado que o último registro semelhante ocorreu há mais de 80 anos.
Estávamos, no início deste ano, a um passo do precipício. Bastava carregar um
pouco nas cores do cenário adverso, como numa ameaça de recidiva da pandemia de
covid, por exemplo, para que a recessão global se materializasse.
Naquela ocasião, as estimativas giravam em
torno de uma desaceleração generalizada do crescimento econômico, com revisões
para baixo para a quase totalidade das economias avançadas. A previsão do
crescimento mundial era de 1,7% em 2023. Neste mês o relatório foi recalibrado
e a projeção para o PIB mundial aumentou 0,4 ponto porcentual, para 2,1%. Ainda
que represente uma angustiante lentidão na marcha econômica e um recuo ante a
taxa de 3,1% de 2022, já é um respiro.
Consultores, analistas e economistas ainda
se debruçam sobre o que estaria causando esse fenômeno na atividade, mesmo em
meio à queda de confiança de investidores e consumidores neste retorno à
normalidade pós-covid. Que essa tarefa fique com eles, para esquadrinhar, com a
expertise que detêm, os fatores movimentadores da economia. Para o Brasil, mais
importante do que identificar as razões para a melhora das perspectivas é saber
aproveitar a chance posta diante de nós.
A conjuntura interna – a despeito dos
atropelos políticos que colocam na berlinda o modus operandi de Lula versão 3 –
apresenta avanços importantes, como a aprovação pela Câmara dos Deputados do
projeto do arcabouço fiscal e a apresentação do relatório preliminar da reforma
tributária. São medidas imprescindíveis para estabelecer um eixo norteador do
desenvolvimento econômico.
Some-se a isso o PIB empurrado pela
agropecuária no primeiro trimestre, o desempenho inflacionário abaixo do que se
esperava no IPCA de maio e o câmbio sem sobressaltos, e está pavimentado o
caminho para adoção de medidas seguras para o crescimento. Mas, apesar da cena
interna relativamente sob controle e dos sinais vindos do exterior, o governo
insiste em passar uma imagem de desorientação.
Quando dá mostras de saudosismo descabido,
tentando reeditar medidas que não fazem mais sentido para a economia, como o
malfadado “carro popular”, ou apresentar-se como liderança mundial reeditando o
discurso mofado da guerra fria, Lula mostra que navega as águas turbulentas de
2023 com a lanterna na popa.
Sorte é ótimo. Mas de pouco adianta se não
vier acompanhada das escolhas certas. Nos últimos anos o País foi “governado”
(aspas necessárias) por Jair Bolsonaro, um dos presidentes mais despreparados
da história – e, para piorar, azarado, pois enfrentou uma pandemia e uma
guerra. Mas, como ensina Maquiavel, o bom governante é aquele capaz de montar
estratégias (virtù) para não ficar à mercê das circunstâncias (fortuna). Por
indolência, Bolsonaro não teve virtù e viu-se atropelado pela fortuna.
Espera-se que Lula tenha aprendido com Maquiavel e Bolsonaro que não se deve
governar contando somente com a sorte.
Um privilégio para a Receita Federal
O Estado de S. Paulo
Governo regulamenta bônus para auditores,
penduricalho para que simplesmente façam seu trabalho
O governo editou um decreto para
regulamentar o bônus de produtividade para funcionários da Receita Federal. O
decreto cria um comitê gestor que será responsável por mensurar a produtividade
global do órgão e definir os critérios de pagamento, que terão valor variável.
Chama a atenção o fato de que o decreto tenha saído seis anos após a sanção da
lei que criou o bônus e logo após o governo conceder um aumento salarial de 9%
a todo o funcionalismo, o primeiro desde 2017.
Os servidores da Receita estão entre as
carreiras da elite do serviço público. A remuneração inicial de um auditor
fiscal é de cerca de R$ 21 mil. E mesmo que o bônus ainda não tivesse sido
regulamentado, ele já vinha sendo pago – a título da bonificação, auditores
recebem R$ 3 mil mensais e analistas, R$ 1,8 mil. Se não havia questões
financeiras que trouxessem urgência para a regulamentação do bônus, o contexto
atual explica as razões pelas quais somente agora a categoria conquistou o que
queria há tantos anos.
Não se trata da força da mobilização dos
servidores da Receita. É verdade que o movimento atrasou a divulgação dos dados
da arrecadação e impediu que o governo apresentasse projeções mais otimistas
sobre o déficit primário deste ano. Mas a coesão dos servidores já causou
transtornos maiores no passado. Para ficar em um exemplo recente, de 2022, uma
operação-padrão retardou o desembaraço de mercadorias em portos, aeroportos e
fronteiras e gerou prejuízos bilionários.
O conteúdo do decreto é útil para
explicitar o cenário em que o bônus se insere. Os critérios que medirão o
índice de eficiência institucional da Receita mostram, resumidamente, que,
quanto maior for a arrecadação, maior será o bônus, e nesses termos fica claro
o que teria proporcionado aos auditores e analistas fiscais tamanho poder neste
momento. O governo Lula dependerá fortemente do aumento de receitas para
cumprir a meta fiscal. Como a proposta de arcabouço não tocará nas despesas, se
o Executivo quiser garantir a credibilidade do arcabouço, terá de contar com
toda a boa vontade dos funcionários da Receita.
Para a categoria, trata-se da correção de
uma injustiça, uma vez que funcionários de Fiscos estaduais têm salários
maiores e procuradores da AdvocaciaGeral da União (AGU) já contavam com
benefício semelhante – o pagamento de honorários de sucumbência nas disputas
judiciais da União. O problema é que isso despertou a cobiça das demais categorias
do serviço público, que, naturalmente, pleiteiam equiparação, o que tem tudo
para se tornar um problema para o governo.
Reconhecer e fortalecer o serviço público é necessário, sobretudo depois da política destrutiva que foi marca do governo Bolsonaro. Mas todo bônus, se é que deveria existir, deveria se basear em critérios que avaliem a produtividade de cada servidor de forma individual. Da forma como tudo foi feito, parece apenas uma maneira de criar um penduricalho para que algumas das carreiras que já estão entre as mais bem remuneradas do País simplesmente façam seu trabalho.
O alerta da febre maculosa
Correio Braziliense
A febre maculosa não é um fenômeno novo no
país. Há registros de casos desde o início do século 20, mais precisamente em
1929, justamente em São Paulo, onde ela foi identificada pela primeira vez
As quatro mortes recentes de pessoas que
foram a um evento em uma fazenda em Campinas (SP) no último dia 27 de maio, por
febre maculosa, são um doloroso lembrete dos perigos de uma doença gravíssima,
mas inexplicavelmente negligenciada no Brasil. Transmitida pelo
carrapato-estrela, a enfermidade exige uma ação urgente e coordenada por parte
das autoridades públicas no Brasil.
A febre maculosa não é um fenômeno novo no
país. Há registros de casos desde o início do século 20, mais precisamente em
1929, justamente em São Paulo, onde ela foi identificada pela primeira vez. Na
sequência, a doença se espalhou para Rio de Janeiro e Minas Gerais — onde, em
1943, matou em Belo Horizonte o padre Eustáquio, hoje considerado beato pela
Igreja Católica e uma das vítimas mais conhecidas da enfermidade.
Agora, com o triste destaque que a doença
voltou a ter, é o momento de o poder público tomar atitudes para combater o
problema, em um esforço conjunto entre autoridades de saúde, especialistas em
doenças infecciosas, órgãos de meio ambiente e a sociedade civil.
Em primeiro lugar, é crucial investir em
pesquisa e desenvolvimento para aprimorar a compreensão sobre a febre maculosa.
Recursos devem ser alocados para estudos epidemiológicos, identificação de
novas áreas endêmicas e desenvolvimento de métodos eficazes de controle do
carrapato-estrela.
A melhoria da infraestrutura de saúde
também é essencial. É necessário garantir que os profissionais médicos estejam
devidamente capacitados para diagnosticar e tratar a febre maculosa com
velocidade. Como os sintomas (febre, dor de cabeça, náuseas, diarreia) são
comuns a diversas outras doenças, é preciso que seja desenvolvido um protocolo
para a detecção da enfermidade em seus estágios iniciais, quando o tratamento
médico é mais eficaz. Os centros de saúde devem ser equipados com os recursos
necessários para lidar efetivamente com a doença e para realizar estes testes
diagnósticos.
A educação e conscientização da população
também são fundamentais para prevenir a propagação da febre maculosa e evitar
ataques desnecessários às capivaras, hospedeiras do carrapato-estrela. As
autoridades devem implementar campanhas de informação em escolas, universidades
e comunidades, destacando medidas de proteção individual, como o uso de roupas
adequadas e repelentes.
Em paralelo, é fundamental intensificar as
ações de controle do carrapato-estrela. Isso envolve a implementação de medidas
ambientais, como o manejo da população de capivaras em áreas de risco e a
manutenção adequada de áreas verdes urbanas. Na fazenda de Campinas, por
exemplo, a área de estacionamentos apontada como o foco da doença é cortada por
um córrego habitado por capivaras que vivem de modo selvagem. Também é
importante incentivar a pesquisa de métodos inovadores de combate ao carrapato,
que já podem estar em desenvolvimento nas universidades do país, aguardando
justamente um incentivo oficial.
Por fim, a cooperação entre diferentes
esferas do governo é fundamental. Deve existir uma atuação integrada dos órgãos
de saúde, meio ambiente, agricultura e turismo, prefeituras, governos estaduais
e governo federal para enfrentar a febre maculosa de maneira efetiva. A troca
de informações e a coordenação de esforços são indispensáveis para lidar com a
complexidade do problema e garantir o bem estar da população.
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