O Estado de S. Paulo
Enquanto não houver a regularização fundiária, a Amazônia se mostrará suscetível a encontrar um proprietário: o crime organizado
Estamos perdendo o Brasil. E não é para os
estrangeiros, como as teorias conspiratórias propalam. É para coisa pior: a
criminalidade organizada, apátrida e cruel. Ela se apodera de grande parte da
Amazônia Legal, por incúria do Estado brasileiro, que não leva a sério a
regularização fundiária.
O que acontece com aquele patrimônio da
Nação e que pertence a todos? A Procuradoria-Geral da República admite não
saber quais são as terras da União. O mesmo ocorre em relação às unidades
subnacionais, os Estadosmembros e os municípios, estes erigidos à condição de
entidade federativa a partir da Constituição Cidadã.
Valendo-se da balbúrdia registraria, os inescrupulosos fazem uma autodeclaração de que possuem terras protegidas e preenchem o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Confiar na declaração do interessado é um pouco ingênuo para um país que nasceu e que convive confortavelmente com a corrupção.
Boa intenção existe só no discurso. Implementou-se
o georreferenciamento, que vincula a descrição do imóvel a um ponto de
localização absoluta, imprimindo certeza na identificação da área. Só que se
encarregou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de
atestar a precisão e a não sobreposição dos polígonos certificados. Como é
notório, Incra, Ibama, ICMBio e outras estruturas preordenadas a defender a
natureza foram esvaziadas e defenestradas no último quatriênio. Com isso, a
possibilidade de certificação é bastante reduzida.
Para ter uma ideia, até 15 de outubro de
2022 haviam sido georreferenciados quase 25 milhões de hectares. A dimensão do
Brasil é de 851.034.554 hectares. Faltam ser georreferenciados apenas 830
milhões de hectares. A média diária do Incra é de 55.379,37 hectares. O cálculo
mais otimista prognostica, nesse ritmo, mais 10.784 dias de trabalho, ou seja,
mais de 29 anos pela frente!
Até lá, as sofisticadas organizações
criminosas que garimpam, desmatam, assassinam indígenas e se apoderam da
exuberante biodiversidade que poderia sustentar economicamente o Brasil neste e
no próximo séculos continuarão a impor a sua vontade e o seu poderio.
Enquanto não houver a regularização
fundiária, para poder identificar quem é o responsável pelo garimpo ilegal ou
pelo desmatamento, esta “terra de ninguém” se mostrará suscetível a encontrar
um proprietário: o crime organizado. A delinquência sem pátria, sem Deus e sem
moral.
O Brasil consciente, um resíduo da massa
que não consegue pensar senão em subsistir com a dignidade possível, deveria se
articular e assumir esta cruzada heroica. Os fanáticos invocam a “soberania
nacional”, porém não se importam com a invasão desenvolta da delinquência num
território abandonado pelo Estado.
As instituições que têm consciência e voz
deveriam coordenar um grande movimento, que congregasse as entidades de classe
mais interessadas – as associações mantidas pelas várias categorias de
delegação extrajudicial, os antigos cartórios, a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) –, a universidade, a
academia, o empresariado, a mídia, a Igreja e todos os demais integrantes da
sociedade civil, para que a “regularização fundiária” não servisse apenas para
a retórica estéril de alguns políticos profissionais, mas que seja uma política
pública estatal, da qual está a depender o futuro do Brasil.
A República da hermenêutica – aquela mesma
que viu explodir a criação de faculdades de Direito em seu território (pasmem:
o Brasil tem mais faculdades de Direito do que a soma de todas as outras
existentes no restante do planeta!) – deveria conclamar as centenas de milhares
de estudantes para uma atuação prática de sobrevivência da Nação. Em lugar dos
superados e inúteis júris simulados, das Semanas Jurídicas das quais nada resta
e nada se acrescenta à formação integral do profissional do Direito, colocar o
alunado para atuar na regularização fundiária seria uma missão salvífica.
E isso não é absurdo, quando se examina a
tríade sobre a qual se assenta a universidade brasileira: ensino, pesquisa e
extensão. O que se faz em termos de extensão? Para devolver o Brasil aos
brasileiros, seria muito mais importante fazer com que o futuro profissional da
área jurídica encarasse a realidade fundiária, cujo caos põe em risco a utopia
da possível segurança neste universo.
Seria interessante que os empenhados em
discutir filigranas jurídicas, em encontrar brechas no ordenamento e hábeis em
arremessar ao combalido Poder Judiciário milhões de novos processos atentassem
para este quadro terrível. Como responderão às futuras gerações os brasileiros
que assistiram passivamente a esta apropriação criminosa de vasta área de seu
território? Território, exatamente um dos elementos caracterizadores do Estado
soberano, tão louvado em prosa e verso pelos patriotas contemporâneos.
*DIRETOR-GERAL DA UNIREGISTRAL, DOCENTE DA PÓS-GRADUAÇÃO DA UNINOVE, É SECRETÁRIO-GERAL DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS
Um comentário:
E olha que melhorou e,muito,nesse quesito.
Postar um comentário