O Globo
Desde a instalação em edifícios
residenciais no Brasil, a função primeira do equipamento sempre foi a
segregação racial e social
Qualquer vida é uma travessia contínua de fronteiras. Somos todos uma cartografia ambulante. Desde o momento da concepção sem volta — narrada de forma memorável pelo personagem central do romance “O tambor”, de Günter Grass — até nosso enredamento final, do qual também não tem volta. Entre o nascer e o morrer, a sucessão de rupturas nem sempre é percebida. O simples movimento de sair de casa (do privado) para a rua (o público), por exemplo, tão corriqueiro e banal , traz embutido todo um ritual preparatório. Vai de uma checada em alguma luz acesa, o fechar de janela ainda aberta, um apalpar de bolsos, uma espiadela na bolsa para ver se está tudo lá, talvez uma última conferida no espelho. Mas, a cada vez que giramos a chave da porta de saída, deixamos para trás nossa vida interior. E do lado de fora, escreveu Georges Perec em “Espèces d’espaces”, “outras gentes, o mundo, o público, a política. Você não pode simplesmente passar de um a outro espaço; para atravessar a soleira você precisa mostrar suas credenciais, saber se comunicar com o universo exterior”.
Depoimento publicado nesta semana no site
da revista piauí por Gabriella Figueredo mostra a violência da primeiríssima
credencial exigida até hoje de milhões de brasileiros: antes mesmo de pisarem
na rua, eles devem passar pelo elevador de serviço. O tema é surrado. Já foi
fartamente estudado, documentado e denunciado em filmes, novelas, romances. Ainda
assim, no início deste mês, o prefeito do Rio de Janeiro teve de sancionar a
Lei 7.597, que proíbe a denominação “elevador social” e “elevador de serviço”
nos prédios particulares da cidade, em parte porque a lei anterior, que 20 anos
atrás vetava qualquer tipo de discriminação em elevadores, nunca foi aceita
pelos portadores do privilégio social.
Gabriella é filha do porteiro de um prédio
de classe alta de Ipanema,
onde viveu da primeira infância até se formar em letras pela PUC-Rio. Cresceu
seguindo ao pé da letra o pedido do pai: sempre chamar moradores de “senhor” e
“senhora” e jamais usar o elevador social. A leitura de Lima Barreto na
faculdade fez com que começasse a questionar o lugar de cada um na sociedade.
Contudo, só pôde compreender a dimensão da violência interiorizada quando foi
fazer mestrado na Espanha, aos 29 anos:
— Entrei em um prédio que tinha dois
elevadores, um do lado do outro, e nenhuma placa para distinguir qual era o de
serviço e qual o social. Travei, sem saber em qual entrar... Como saber se eu
não estava violando alguma regra ou invadindo o espaço de alguém? [..] Tudo
explodiu dentro de mim [...] A questão está enraizada, inclusive em mim. Hoje,
mesmo depois da graduação e do mestrado, sempre escolho o elevador de serviço.
Por quê? Não sei responder.
Saberá. Em seu depoimento, Gabriella
manifesta a intenção de escrever um livro de autoficção sobre a família do
porteiro — seu pai — que até hoje mora e trabalha no mesmo prédio da Rua Barão
da Torre. Ótimo.
Desde a instalação de elevadores em
edifícios residenciais no Brasil, no final dos anos 1920, a função primeira do
equipamento sempre foi a segregação racial e social. É do saudoso geógrafo
baiano Milton Santos a experiência marcante vivenciada na Salvador dos anos
1950, quando ele foi visitar um amigo recém-instalado num edifício modernoso.
Como construir dois elevadores elevaria os custos em demasia, incorporadora e
condôminos honraram a divisão de castas de outro modo: dentro do único elevador
existente, já estreito, foi colocada uma divisória mambembe a separar os
usuários. O professor sempre lamentou não ter fotografado a engenhoca, pois, a
seu ver, ela retratava o Brasil de sempre. Dedicou a vida a nos ensinar o país
e nos deixou ferramentas para percebermos a profundidade dos enroscos
nacionais. Milton Santos tinha esperança.
A carioca Gabriella, já reinstalada no Rio,
conta que em conversas com o pai ambos acabam concordando que o Brasil nunca
vai mudar:
— Temos a noção de que a classe política
nos prometeu um país que ainda não conseguiu entregar — escreveu em seu
depoimento.
Ela tem razão — em 2023 o país prometido e devido ainda está longe de ser entregue. Mas não são os políticos, em separado, que haverão de chacoalhar as estruturas coloniais do Brasil — somos nós, o conjunto da sociedade, que devemos impulsionar as mudanças. Seja em casa, no elevador, na rua, no trabalho, no voto, na cobrança ou na informação, é hora de derrubar tapumes e divisórias. Até que o país inteiro tenha acesso ao mesmo elevador. É o mínimo do mínimo
3 comentários:
Esta jornalista (Ela é jornalista, não é?), a Dorrit Harazim, é uma cidadã estupenda e com um texto estupendo!
E, sim, como Dorrit diz, somos nós que transformaremos o Brasil, mas transformaremos junto com políticos e pela via política, camusianamente, porque fora da política não tem solução.
Transformaremos o Brasil com bons políticos, políticos que ainda não sabemos escolher e disfarçamos essa nossa limitação para identificar bons politicos com muito ideologismo (muita ideologia barata mesmo), muita identificação com discursos de retórica radicalizante (e ações pouquíssimo radicais nos casos em que precisamos radicalizar) e depositando esperança e acreditando em populistas rastaqueras, apoiadores de ditadores e que vivem da miséria do povo dizendo combatê-la.
Transformaremos nós a nossa sociedade, e com bons políticos ideologicamente posicionados à esquerda, à direita, à Centro-esquerda e Centro-direita e com os mais extremistas, que existem e são parte legítima do espectro ideológico na medida em que expressam vertentes de ideias reais, existentes na sociedade.
Saberemos quando efetivamente estivermos no comecinho dessa transformação quando não mais escondermos nosso despreparo em identificar o perfil ideológico do politico e do ativista político no momento em que pararmos de falar de modo quase engasgado e por condenação:: "...dirrreiiiitaaa! ", "...esquuerrrdaa! ", " a esquuerrrdaa, os comuniiistaaaas! ", " a dirreiiitaaa, os fascistas! "
Não transformaremos o Brasil se continuarmos terceirizando as mudanças. E muito menos transformaremos o Brasil terceirizando o exercício da política para um conchavo entre populistas corruptos, demagogos e apoiadores de ditaduras e Centrões fisiológicos.
E com maior amadurecimento ideológico eu penso qie cada um terá sua ideologia de preferência, mas não mais se restringirá ao que acredita e passará a aplicar mais a raźão que a crença e a vontade pessoal, por entender que todos queremos "uma para viver", mas ideologias não explicam o mundo e não definem a vida. Acessar a soluçào de problemas e necessidades é mais proveitoso quando escolhemos a proposta e a ferramenta que efetivamente resolve, e com o ganho de não impormos a toda a sociedade a "nossa política", mas aplicamos um critério racional e coerente junto com todos.
Muito bom o artigo.
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