O Estado de S. Paulo
Há quem aposte na melhora da economia ou nos reflexos do julgamento dos atos de 8/1 para contrastar o assalto à mente e à autodeterminação das pessoas. Aposta incerta
Pesquisa do Ipec divulgada em março pelo
jornal O Globo revela que 44% da população concorda total ou parcialmente com a
frase “o Brasil corre o risco de virar um país comunista”. Um pouco antes, em
fevereiro deste ano, os repórteres Renata Cafardo e Tiago Queiroz, do Estadão,
foram alvo de agressões e insultos enquanto cobriam a tragédia climática que
desalojou e matou dezenas de pessoas no litoral norte de São Paulo, durante o
carnaval. Foram tachados de “comunistas e esquerdistas” por bolsonaristas num
condomínio de luxo de Maresias.
Não há como saber o que os entrevistados pelo Ipec ou os agressores dos repórteres entendem por comunismo. Certo é que, sob qualquer ponto de vista razoável e realista, a hipótese é uma miragem. Porém, mais intrigante do que a concepção dos entrevistados e dos agressores sobre o comunismo é o fato de parte deles acreditar genuinamente nessa ameaça e protestar incansavelmente contra ela, solicitando, inclusive, a ajuda do ex-presidente, como se viu em faixas de manifestantes em Brasília (“Bolsonaro, salve-nos do comunismo”).
E isso não se limita ao tema do comunismo.
Vale também para as acusações de fraude nas urnas eletrônicas, de ineficiência
(ou coisa pior) das vacinas e para a imediata aceitação, por muitas dessas
pessoas, de qualquer notícia proveniente de suas fontes – vide as comemorações
ocorridas em aglomerações bolsonaristas no pós-eleição pela notícia da prisão
do ministro do STF Alexandre de Moraes. Mais recentemente, esse descolamento da
realidade comparece na tese da participação do governo Lula na destruição
promovida na Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro deste ano.
A adesão a Bolsonaro vai muito além das
pessoas de que se fala acima. No caso delas, porém, a impressão é de que sua
adesão convicta a afirmações, temas e chamados bolsonaristas não é decorrência
de um convencimento caso a caso ou, simplesmente, de uma visão ideológica ou de
mundo ajustada à bolsonarista. Afinal, tal adesão se dá, sempre, diante de
afirmações ou argumentos bastante inverossímeis/inconvincentes (fora do
ambiente digital a que pertencem) e gera comportamentos acima de heterodoxos,
como se viu seja no 8 de janeiro, seja na invasão a hospitais para denunciar a
“farsa” da epidemia de covid-19, seja na agressão a “jornalistas comunistas”.
Trata-se, ao que parece, de uma forma fixa de consideração e entendimento da
realidade; uma forma mentis.
É como se a mensagem bolsonarista tivesse
atravessado o campo (circunstancial, mutável, controverso) do convencimento e
da opinião e atingido a própria consciência daquelas pessoas; como se tanto a
percepção do mundo quanto a autodeterminação delas seguisse sempre a cartilha
bolsonarista, mesmo quando ela toma grande distância da realidade ou do senso
comum. Uma espécie de apoderamento, pela mensagem bolsonarista, da
espontaneidade mais íntima delas. Faz lembrar a frase de Donald Trump de
janeiro de 2016: “Eu poderia parar no meio da Quinta Avenida, atirar em alguém,
e não perderia nenhum eleitor”.
Daí que as divergências nascidas num tal
ambiente não giram em torno de argumentos, estratégias, persuasão. Elas giram
em torno da própria realidade (da ameaça comunista, da eficácia das vacinas
contra a covid-19, da fraude nas urnas eletrônicas, da “ideologização” das
crianças). Quem planta desinformação, desconfiança, desorientação devasta o
solo onde sempre negociamos, concordamos e discordamos sobre questões públicas.
E um dos principais objetivos de quem promove isso é nos fazer perguntar como
uma democracia pode funcionar nesse cenário, para daí nos levar a concluir que,
nele, nem vale a pena termos uma democracia. Mais fácil deixar as decisões na
mão do “mito” da vez.
De braços dados com o apagamento do senso
comum caminha a desmoralização ou deslegitimação de pessoas e instituições. Não
importava, aos que atacaram os jornalistas do Estadão em Maresias, o que eles
estavam fazendo lá, isto é, trabalhando. Importava que eram “comunistas”.
Algo semelhante se dá nas acusações
voltadas a políticos de oposição a Jair Bolsonaro. A Lula, por exemplo, já
foram atribuídos a futura implantação do comunismo no País, o fechamento de
igrejas e uma “relação com o demônio” (em vídeo manipulado). O efeito que se
busca nesse caso é desacreditar, deslegitimar o personagem político. É, também,
por isso que tantos fazem vista grossa para o rol de impropérios, ilegalidades
e perversidades cometidos por Bolsonaro. Afinal, qualquer rastejador moral
seria melhor do que alguém que tem elo com o comunismo, o PCC, ou o demônio,
não?
Há quem aposte na melhora da economia ou
nos reflexos do julgamento dos atos de 8 de janeiro para contrastar este
assalto à mente e à autodeterminação das pessoas de que se fala aqui. É uma
aposta incerta. A mensagem bolsonarista conquista adesões que se assentam
profundamente, para além do debate econômico, dos costumes e da clivagem
direita e esquerda. Não parece questão de convencimento, mas de consciência.
*Doutor em Direito pela Usp e pela Università
Degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi
e Facamp
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