O Globo
Há algo muito errado numa sociedade que não
se insurge contra o futuro abatido a tiros
Adijailma de Azevedo Costa enterrou Dijalma
de Azevedo Clemente, seu primogênito de 11 anos, ontem, dia em que o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) completou 33 anos. O ECA é tido como marco
legal dos direitos humanos de meninas e meninos brasileiros, um conjunto de
normas jurídicas para protegê-los. É bem-vindo. É importante. É necessário. Mas
um arcabouço legal falha miseravelmente quando a política pública de segurança
viola de forma recorrente o direito à vida, primeiro e fundamental.
Antes do menino de Maricá, fuzilado de mãos dadas com a mãe, a caminho da escola, Terezinha enterrara Eduardo de Jesus, aos 10, em 2015; Bruna, Marcos Vinícius da Silva, aos 14, em 2018; Vanessa, Ágatha Félix, aos 8, em 2019; Rafaela, João Pedro Matos Pinto, aos 14, em 2020; Ana Lúcia e Renata, as primas Emily Vitória da Silva, aos 4, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, aos 7, no mesmo ano. Foram todos casos emblemáticos a confirmar que o assassinato de crianças no Rio por ferimento à bala não é crime fortuito, mas costumeiro.
Há algo muito errado numa sociedade que
naturaliza a morte de crianças, que não se insurge contra o futuro abatido a
tiros, consequência de um modelo de segurança ancorado no confronto, não na
inteligência. Ainda ontem, o Instituto Fogo Cruzado informou que neste ano, que
acabou de adentrar o segundo semestre, 101 pessoas foram vítimas de bala
perdida na Região Metropolitana do Rio. Dos alvejados, 31 morreram, 70 ficaram
feridos. Cinco crianças e três adolescentes perderam a vida.
O menino estava de mãos dadas com a mãe, a
caminho da escola, quando foi alvejado por um projetil que atravessou o seu
corpo, perfurou a mochila de uma colega e só parou ao alcançar o carro de um
vizinho do conjunto habitacional, em Maricá. Dijalma morreu de uniforme, tal
como Marcos Vinícius, atingido durante uma operação da Polícia Civil e
do Exército no conjunto de favelas da Maré, na capital
fluminense.
Famílias e vizinhos de Dijalma acusam
policiais militares pelo crime:
— A polícia atirou sem mais nem menos —
disse Adijailma.
A PM informou que “equipes do 12º BPM
(Niterói) realizavam policiamento, quando foram atacadas por criminosos
armados”, nota-padrão nesse tipo de ocorrência. Os agentes levavam microcâmeras
nas fardas; as imagens serão enviadas à Delegacia de Homicídios da região,
encarregada do caso.
Tragédias anteriores sugerem que a justiça
tarda. E falha. Como escreveu Daniel Sarmento, advogado e professor de Direito
Constitucional na Uerj, em artigo no GLOBO, no início da semana: “A resposta
institucional do Estado é pífia. A impunidade impera, absoluta”. O Ministério
Público falha na atribuição constitucional de efetuar o controle externo da
polícia. É comum que inquéritos referentes a homicídios decorrentes de
operações policiais não sejam sequer concluídos. Por isso, não costumam chegar
à Justiça. Quando chegam, dificilmente há condenação.
Um ano atrás, o Rio de Janeiro ocupava a
quarta posição entre as unidades da Federação com maior número de pessoas
mortas pela polícia, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. À
frente estavam Amapá, Sergipe e Goiás. Desde 2020, o Rio está sob restrições
impostas pela ADPF das Favelas. Foi depois da morte do menino João Pedro,
durante uma operação conjunta das polícias Civil e Federal no Complexo do
Salgueiro, em São Gonçalo, que o STF proibiu
ações injustificadas em comunidades durante a pandemia da Covid-19. Além disso,
elencou um conjunto de medidas a serem aplicadas pelo governo fluminense, entre
as quais um plano de redução de homicídios e instalação de câmeras em viaturas
e fardas.
Cinco dias antes de o menino Dijalma se
tornar a 15ª criança baleada no Grande Rio em 2023 — duas por mês — ,o
governador Cláudio Castro celebrava a chegada de 500 fuzis M400 para a Polícia
Civil fluminense. Arma em punho, ele agradeceu ao senador Flávio Bolsonaro,
filho do ex-presidente armamentista, pela destinação dos R$ 3 milhões em emenda
orçamentária que permitiram a compra.
Semanas antes, o ministro da Justiça,
Flávio Dino, veio ao Rio anunciar R$ 112 milhões em investimentos para combater
a violência no
estado. Avisou que o governo federal construirá, em parceria com o local, duas
penitenciárias com mil vagas, das quais 200 de segurança máxima.
Dijalma morreu na véspera do aniversário do
ECA, a caminho da Escola Municipal Professor Darcy Ribeiro, pesar adicional na
tragédia que sofreu. Antropólogo, historiador, escritor e político, morto em
1997, Darcy foi um ativista da alfabetização das crianças, do acesso à
educação, da qualidade universitária. Autor de frases memoráveis, alertou:
—Se nossos governantes não fizerem escolas,
em 20 anos faltará dinheiro para construírem presídios.
Um comentário:
Darcy era bom de frase, mas inútil em proposições. Portanto, igual à ela.
MAM
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