O Globo
Respeito consiste, principalmente, em não
fazer do morto, de sua trajetória, um pretexto para desfilar nossos
preconceitos
Fernando Pessoa já ensinava, por meio de
Ricardo Reis:
— Para ser grande, sê inteiro: nada/Teu
exagera ou exclui.
Vale para quando ostentamos virtude no
finado Twitter; vale para quando não deixamos entrever sequer um fiapo de nossa
vidinha besta no Instagram. Deveria valer também para quando nos cabe falar da
vida alheia —principalmente de uma vida que acaba de se encerrar.
Morte não implica a canonização automática do morto. Não é remissão dos pecados, não concede indulgência plenária. Não transforma água em vinho, rascunho em arte final. Mas respeito é bom — e não se confunde com bajulação. Entre a hagiografia e o vilipêndio, há bom espaço para uma análise equilibrada.
Respeito consiste, principalmente, em não
fazer do morto, de sua trajetória, um pretexto para desfilar nossos
preconceitos ou para montar, em cima do caixão alheio, um palanque para nossas
causas.
No dia mesmo da sua morte — aos 26 anos,
num acidente aéreo — uma das artistas mais populares do país foi tratada como
uma “gordinha” que “brigava com a balança”. A família ainda não havia recebido
o corpo para o sepultamento, e esse corpo já tinha, no obituário, um peso
exagerado.
Outra cantora ainda era homenageada por
milhares de fãs em seu velório, e suas canções reverberavam na memória dos
milhões que a tiveram como trilha sonora da infância, da juventude, da
maturidade — mas achou-se por bem dar destaque ao abuso de drogas e à crença em
discos voadores (sem deixar de mencionar um estupro, o sexo livre e uma série
de anedóticas transgressões).
Da apresentadora que fez história na
televisão, coube salientar que escondia a idade. Da grande atriz, de papéis
memoráveis, que não se casou e praticou aborto.
Odiadores de plantão fazerem isso, na
internet, é de esperar. Que a grande imprensa entre nessa — com manchetes
caça-cliques e reportagens talhadas para gerar polêmica — é deplorável.
A intenção talvez seja naturalizar
comportamentos (“Está vendo? Pessoas boas também abortam”; “Dizem que drogas
destroem a capacidade cognitiva, mas olhaí: viveu até os 75, perfeitamente
lúcida”). O resultado, porém, acaba sendo depreciar o artista e sua obra, além
de ajudar a perpetuar o estigma que envolve certos assuntos.
Daqui a alguns anos, haverá espaço nas
biografias para os detalhes escabrosos, as misérias, as fofocas. Ou, a depender
do biógrafo, para a construção daquele vasto painel que retrata o personagem em
toda sua humanidade. Mas, no dia da morte, na dor do luto, tirar o foco do
legado para falar de gordura, vício, idiossincrasias ou abortos soa apenas como
mesquinharia, sordidez. Como exercício do pequeno (ínfimo) poder de apontar os
pés de barro do ídolo, de mostrar irreverência trazendo para a manchete o que
não deveria passar de nota de rodapé.
Há nisso um método cruel: a vítima
preferencial têm sido as mulheres. Não se encontrará nada parecido nos
obituários de Erasmo Carlos,
Zé Celso, João Donato, Aderbal
Freire-Filho. A estes, couberam o merecido reconhecimento do valor
artístico e as manifestações de pesar.
— Põe quanto és/No mínimo que fazes —
escreveu Pessoa. Grandes artistas seguem o conselho. Jornalistas e editores
também — só que alguns têm posto o pior de si.
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