Folha de S. Paulo
Ele é necessário, mas sua prática deve ser
feita com cautela
"As instituições brasileiras têm se
demonstrado mais efetivas na defesa da democracia do que as
norte-americanas."
A constatação não foi feita por um
brasileiro ufanista, mas pelo professor Steven
Levitsky, autor do festejado livro "Como as Democracias Morrem"
(2018), em recente seminário em São Paulo. A possibilidade de que Donald Trump
venha a se candidatar nas próximas eleições, mesmo que seja condenado pelos
diversos crimes pelos quais está sendo julgado, aponta para a fragilidade dos
mecanismos de autodefesa da democracia norte-americana.
No Brasil, por sua vez, testemunhamos, ainda que aos trancos e barrancos, uma postura combativa por parte tanto do TSE como do STF na defesa da democracia e do processo eleitoral, assim como pela independência do próprio Poder Judiciário. São exemplos dessa postura defensiva dos tribunais a instauração de inquéritos voltados a apurar atos antidemocráticos, o policiamento do processo eleitoral, assim como o julgamento daqueles que atentaram contra o Estado democrático de Direito durante a intentona de 8 de janeiro.
A condenação de Jair Bolsonaro pelo TSE,
que suspendeu os direitos políticos do ex-presidente por abuso de poder
político durante as eleições, demonstra a disposição dos tribunais brasileiros
de aplicar, em toda a sua extensão, os mecanismos de defesa da democracia
estabelecidos pela Constituição e pela legislação eleitoral e penal brasileira.
Países que passaram por experiência
autoritárias certamente têm mais razões para erigir mecanismos institucionais
para a defesa da democracia do que países onde o grau de consenso em torno das
premissas do jogo democráticos se demonstrou mais arraigado ao longo do tempo.
Como salientou nesta semana o presidente
alemão, Frank Walter Steinmeier, em seu discurso de comemoração dos 75 anos da
convenção responsável pela elaboração da Lei Fundamental de 1949, "nossa
democracia deve ser defensiva (...). Nossa Constituição tem não só amigos como
inimigos (...). Nossa lei básica tolera disputas difíceis e duras (...).
Oposição política é uma coisa, hostilidade à constituição é outra completamente
diferente".
A ideia de que a democracia deve se
defender de maiorias antidemocráticas é apontada por muitos autores, no
entanto, como uma contradição. Uma ideia elitista, destituída de coerência.
Como dizia Hans Kelsen, "uma democracia que se defende da maioria (...) já
deixou de ser democrática" há tempos. Mais do que uma ideia contraditória,
para alguns cientistas políticos a democracia defensiva pode ser
contraproducente na medida em que corrobora a narrativa de exclusão alimentada
por populistas autoritários.
Não são objeções triviais. O fato, porém, é
que, se as instituições democráticas não buscarem se defender durante ciclos
autocráticos daqueles que empregam as liberdades democráticas com a finalidade
de suprimi-las, a democracia pode se transformar em um pacto suicida, colocando
em risco não apenas as liberdades daqueles que tomaram a decisão mas também o
direito das futuras gerações de viver em liberdade.
O exercício da democracia defensiva, como
tem sido praticado pelos tribunais brasileiros, não é uma prática destituída de
riscos. Deve ser empregado com cautela. No dizer do ministro Fachin, ao julgar
a validade dos inquéritos sobre os atos antidemocráticos, é preciso cuidar
"para que a dose do remédio não o torne um veneno". No mesmo sentido
está a advertência de John Rawls: você pode restringir a liberdade do
intolerante quando a Constituição estiver em risco, "mas quando esta
estiver segura, não há razão para negar liberdade ao intolerante".
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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