O Globo
Legalização que estamos iniciando precisa
vir com política de desestímulo
A guerra às drogas fracassou. O combate
impiedoso ao tráfico não foi capaz de reduzir o consumo e ainda promoveu uma
explosão da população carcerária que é injusta, onerosa e alimenta o crime
organizado. O Brasil, com 832 mil presos, tem a terceira maior população
carcerária do mundo em números absolutos e a 26ª em números relativos (per
capita). Cerca de 25% dos nossos presos foram acusados de tráfico.
Nos últimos anos, o cenário de fracasso generalizado tem levado vários países a descriminalizar o uso. Nos Estados Unidos, país que liderou a guerra às drogas entre os anos 1970 e 1990, a descriminalização começou pela legalização do uso medicinal da Cannabis em alguns estados e aos poucos está levando à legalização do uso recreativo.
O Brasil parece seguir caminho semelhante.
A Cannabis medicinal é autorizada pela Anvisa desde 2015, e 25 medicamentos com
base na substância já estão legalmente disponíveis. Até o governador
bolsonarista Tarcísio de Freitas sancionou uma
lei estadual garantindo o fornecimento desse tipo de
medicamento pelo SUS em São Paulo.
Na Justiça, o processo também caminha. Na
semana passada, o STF avançou no
debate sobre a descriminalização do porte de drogas para uso
pessoal. O placar a favor da descriminalização já está em 4 a 0. Os ministros
discutem um critério objetivo para definir o que é uso pessoal. Segundo
um estudo do
Ipea, se o critério sugerido pelo ministro Luís Roberto Barroso
vingar (porte de até 25 gramas de maconha considerado
uso pessoal), 27% de todos os condenados por tráfico poderão ser absolvidos.
Nos Estados Unidos, a estratégia de começar
a descriminalização pelo uso medicinal foi aplacando as resistências de um
público educado pela retórica da guerra às drogas. Hoje, 59% dos americanos
apoiam a legalização do uso recreativo e medicinal da Cannabis, e 30% apenas do
uso medicinal. Ao todo, nove em cada dez americanos são favoráveis a algum tipo
de legalização — até os anos 2000, eram apenas 30%. Mas a estratégia de começar
a descriminalizar e legalizar pelo uso medicinal tem uma consequência ruim para
a qual devemos estar atentos no Brasil: diminui a sensação de risco do uso da
Cannabis, sobretudo entre adolescentes.
Acostumados a ouvir falar sobre os
benefícios terapêuticos da maconha, eles pensam que o que cura não pode fazer
mal e, por isso, episódios de uso abusivo têm crescido. Mas ela não é
inofensiva e também não é terapêutica fora dos contextos em que há indicação
médica. O uso da maconha — sobretudo o abusivo — traz problemas
cardíacos, respiratórios, cognitivos e
mentais.
Pesquisas nos Estados Unidos mostram que
a percepção de risco do uso de maconha vem diminuindo
drasticamente, especialmente entre adolescentes, desde que o processo de
legalização começou. A percepção de risco é maior nos estados que legalizaram a Cannabis medicinal que nos
demais.
É importante aprender com a experiência
americana. Por um lado, é preciso pôr fim quanto antes à guerra às drogas. Por
outro, o caminho que começa com a descriminalização do porte para uso próprio e
pela legalização do uso medicinal e evolui depois para a legalização do uso
recreativo precisa ser acompanhado de uma campanha bem planejada de educação e
desestímulo.
Temos no Brasil uma política exemplar de
combate ao tabagismo, com impostos elevados, proibição da publicidade,
mensagens de alerta, campanhas de esclarecimento e a proibição do fumo em
ambientes fechados. Tais medidas reduziram o
número de usuários do tabaco em 36% em pouco mais de uma
década. Com a maconha, a legalização que estamos iniciando precisa vir
acompanhada de política de desestímulo semelhante.
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