Folha de S. Paulo
Investidas de desmonte não faltaram nos
quatro anos do pesadelo do qual o país há pouco despertou
Quem hoje discute como o país e a
democracia sobreviveram a Bolsonaro aponta, com razão, o papel desempenhado
pelo STF (Supremo
Tribunal Federal) e o TSE
(Tribunal Superior Eleitoral); pelo Congresso; por estados e
municípios; pela grande imprensa; e por ampla parcela da sociedade civil
organizada. Juntos, ergueram uma barreira que não só limitou a capacidade do
ex-capitão de produzir estragos irremediáveis, mas fez gorar seus planos
golpistas, depois da derrota nas urnas.
Ainda assim, a história da resistência democrática não estará contada por
inteiro sem que nela se inclua a ação silenciosa de setores importantes da
burocracia às tentativas de desmanche da capacidade de ação estatal orientadas pelo Planalto. Esse capítulo pouco conhecido é um
dos assuntos centrais do livro "Desmonte e reconfiguração de políticas
públicas (2016-2022)", recém-publicado pelo Ipea (Instituto e Pesquisa
Econômica Aplicada). É o respeitável resultado do trabalho de 40 pesquisadores
coordenados por Alexandre de Avila Gomide, Michelle de Sá e Silva e Maria
Antonieta Leopoldi.
Como a ninguém é dado ignorar, investidas
de desmonte não faltaram nos quatro anos do pesadelo de desgoverno do qual o país há pouco
despertou. Só que, em vez de apenas fazer a autópsia do desastre, a obra
discute as condições que permitiram que a ele se resistisse, ora ganhando, ora
perdendo.
Políticas mais antigas, ancoradas em estruturas estatais com burocracias
fortes, dirigidas a um leque amplo de beneficiários e com reconhecimento social
se revelaram mais resilientes do que políticas de criação recente, cercadas de
menor consenso social e implementadas por estruturas mais frágeis.
Assim, embora a saúde, a cultura, o meio ambiente e a proteção das populações
indígenas tenham sido igualmente expostas à mistura tóxica de ignorância,
incompetência e más intenções do último quadriênio, as duas primeiras áreas
sobreviveram melhor a suas investidas de terra arrasada. Nelas, servidores
públicos experimentados tiveram condições de ir tocando as atividades em
silêncio e, não raro, à revelia de seus ministros.
Registrar e reconhecer essa resistência em surdina —bem como entender as
condições que a tornaram possível— é tarefa incontornável quando se trata de
fortalecer a capacidade estatal de prover respostas às muitas necessidades da
população. Isso certamente obriga deixar de lado estereótipos que descrevem um
Estado balofo e povoado por marajás que só pensam no seu bem-bom. Não há
política apta a ficar em pé sem burocracia bem preparada para executá-la.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Um comentário:
Mesmo porque a maioria do funcionalismo público ganha pouco,os marajás são poucos.
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