domingo, 13 de agosto de 2023

Rolf Kuntz - Credibilidade

O Estado de S. Paulo

Prenúncios bem vistos por tanta gente, como o recente corte de juros pelo BC, podem ser menos entusiasmantes para quem valoriza a memória

Bom sinal para o governo, para o consumidor e para os empresários, o novo corte de juros foi um lance arriscado para o Banco Central (BC), principal protetor da moeda e supervisor do sistema financeiro. Pressionado e injuriado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o chefe do BC, Roberto Campos Neto, coordenou a recente deliberação do Copom, o Comitê de Política Monetária, em condições especialmente difíceis. Anunciada a redução de 0,5 ponto porcentual, o dobro da estimada pela maior parte do mercado, a dúvida se espalhou: decisão política, técnica ou meio a meio? A participação de dois novos diretores, carimbados publicamente como representantes da Presidência da República, favoreceu a desconfiança.

A preocupação com a imagem foi explicitada, com notável clareza, na ata da reunião do Copom. Seria o BC, em algum momento, percebido como “mais leniente no combate à inflação”? Lançada essa hipótese, o documento reafirma a importância de garantir “a credibilidade e a reputação” da entidade. Mais que isso: será preciso manter essa credibilidade “independentemente da composição da diretoria colegiada”. Essa é uma referência evidente à presença dos novos diretores – um deles ocupante, anteriormente, da Secretaria Geral do Ministério da Fazenda, posto equivalente ao de vice-ministro.

Expectativas são um tema frequente nos comunicados e atas do Copom. Inflação maior ou menor depende em parte das previsões, confianças e desconfianças de quem produz, comercializa e consome bens e serviços, como recordam com insistência os membros do comitê. Produzir a “ancoragem” dessas expectativas tem sido um dos objetivos centrais do BC. Houve, segundo a ata, uma ancoragem parcial desde a reunião de junho. Nesse período, a inflação recuou e as projeções melhoraram. Ao tema das expectativas foi agora acrescentada, no entanto, a preocupação com a credibilidade do BC.

Mexer nos juros e nas condições de crédito é atividade rotineira – e essencial – de bancos centrais de todo o mundo. Em países capitalistas avançados ou emergentes essa função é cumprida sem pressões e sem interferências da chefia do governo. Nos primeiros mandatos, o presidente Lula, aconselhado pelo ministro Antonio Palocci, deixou em paz o BC, chefiado por Henrique Meirelles. Não vigorava, ainda, a lei de autonomia operacional da instituição, mas o ministro da Fazenda conhecia e soube valorizar a prática seguida nas economias mais desenvolvidas.

Sucessora de Lula, a presidente Dilma Rousseff restabeleceu o poder do Executivo sobre o BC. A política monetária foi afrouxada em 2011 e permaneceu leniente até abril de 2013. Nesse período a inflação disparou, num cenário de amplo desarranjo fiscal, generosa distribuição de benefícios tributários, prioridades erradas e muita incompetência administrativa. O resultado mais visível foi a recessão iniciada em 2014, aprofundada nos dois anos seguintes e com efeitos prolongados ao menos até 2019.

Sucessor da presidente Dilma Rousseff, o vice-presidente e depois presidente Michel Temer iniciou o reparo dos danos fiscais mais visíveis e conseguiu a aprovação de um teto constitucional de gastos. No BC, a equipe chefiada pelo recém-nomeado Ilan Goldfajn derrubou a inflação com um forte aperto monetário e iniciou em pouco tempo a normalização do crédito.

O político Luiz Inácio Lula da Silva parece nunca haver aprendido o suficiente com a desastrosa experiência de sua sucessora. Ao contrário: já criticou a autonomia do BC e temse mostrado disposto a pressionar, até com grosserias, o presidente da instituição.

Para a maior parte do mercado, o status legal do BC talvez nem seja relevante. Líderes empresariais apoiam o presidente da República no jogo de pressões. Empresários e consumidores apenas apreciam o corte inicial de juros como sinal de boas mudanças. Com a indústria emperrada, o varejo fraco e o consumidor muito endividado, qualquer prenúncio de crédito mais barato pode ser animador. Não avaliam, aparentemente, a importância do ordenamento da administração pública.

A baixa recém-anunciada, de apenas 0,5 ponto, é só uma promessa de menor aperto para os negócios. Mesmo com novos cortes, a taxa básica deverá diminuir dos atuais 13,25% para 11,75% no fim do ano, permanecendo entre as mais altas do mundo. Mas o movimento começou e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode faturar politicamente.

Prenúncios bem vistos por tanta gente podem ser menos entusiasmantes para quem valoriza a memória. Ainda sem um claro roteiro fiscal e sem fontes bem definidas de recursos, o presidente promete programas ambiciosos de investimentos e de expansão econômica. O ministro da Fazenda, principal fiador do governo, talvez tente limitar com algum bom senso o entusiasmo presidencial. O risco é claro. Depois de entregar à companheira Dilma Rousseff a chefia do banco do Brics, o presidente Lula recrutou para postos importantes velhos aliados com históricos muito discutíveis na administração federal. Não se pode menosprezar a hipótese de um governo Dilma 3.

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