domingo, 13 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Lula deu aula de civilidade em lançamento do PAC

O Globo

Desagravo a governador Cláudio Castro, vaiado pela plateia, traz recado necessário à democracia

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ser criticado por um sem-número de motivos — do apego a ideias econômicas equivocadas às práticas políticas retrógradas. Mas, ao longo de sua história, ele deu inúmeras provas de uma qualidade que o distingue no mundo de hoje: o respeito à democracia, a crença no diálogo. É uma qualidade essencial diante de um ambiente conflagrado pela polarização, que tem tornado mais difícil às instâncias políticas atender às necessidades urgentes do Brasil.

Na última sexta-feira, no lançamento do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Rio de Janeiro, Lula deu uma prova de maturidade política e uma aula de civilidade ao repreender a plateia pela reação agressiva com o governador Cláudio Castro (PL). Adversário político do PT e aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, Castro era vaiado todas as vezes em que seu nome era mencionado. Chegou a desistir de discursar no evento, apesar de o Rio ser o estado contemplado com mais recursos do PAC (e o escolhido para o lançamento do programa).

Ao subir ao pódio para falar, Lula decidiu enfrentar a plateia amiga, em geral habituada a seus afagos e aos elogios ao PT. Fez um desagravo a Castro num tom hoje em dia tão raro na política que precisa ser reconhecido e valorizado. “A gente vai ter que aprender algumas lições”, afirmou. “Este ato não é para nós do PT, para nós do governo. Este ato é para a sociedade brasileira. E nós temos de compor com as pessoas que fazem parte da sociedade brasileira. O governador do Rio de Janeiro não está aqui porque quer estar. Está aqui porque nós o convidamos.”

Em seguida, lembrou ao público o óbvio: democracia é o regime que exige não apenas convívio e respeito à diferença, mas também que se trabalhe com quem pensa diferente. Para ilustrar seu ponto, Lula tomou “o exemplo do Arthur Lira que está aqui, o presidente da Câmara”. “Ele não está aqui como Arthur Lira, está aqui como presidente de uma instituição”, disse. “O Poder Executivo precisa mais dela que ela do Poder Executivo.”

Nada mais sensato nem mais necessário que tal mensagem de união neste momento. Líderes das várias instituições da República sempre terão ideias divergentes, opiniões distintas sobre as melhores respostas aos desafios políticos. Isso é da natureza da democracia. Assim como é da natureza da democracia que essas divergências sejam expostas, debatidas e resolvidas por meio do diálogo nas instâncias adequadas. Não é porque o outro pensa diferente de nós que deve ser vaiado, agredido ou eliminado. É porque pensa diferente de nós que devemos ouvi-lo e tentar entender suas razões. Só assim será possível chegar a um acordo produtivo para todos.

Seria mais fácil para o Brasil e para todo o planeta, hoje tomados por debates estéreis entre grupos ideologicamente antagônicos que almejam à destruição mútua, se outros políticos entendessem isso e tivessem a atitude civilizada expressa na mensagem de convívio de Lula. Nas palavras dele: “É esse comportamento que nós temos de ter, para a gente poder consolidar o processo democrático neste país. É a convivência democrática na adversidade”. Impossível ser mais claro. Nem mais oportuno.

Britânicos se arrependem do Brexit, e não se vislumbra novo rumo do país

O Globo

Enquanto mesmos problemas dos vizinhos persistem, surgiram outros como resultado do divórcio da UE

Não foi por falta de aviso. Sete anos após o plebiscito que aprovou a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), sob o discurso isolacionista de que assim o país teria novamente seu destino nas próprias mãos, a maioria dos britânicos gostaria de voltar a fazer parte do bloco. Os 52% a favor do Brexit no plebiscito de 2016 já não eram uma maioria sólida, mas hoje apenas um terço, 33%, insiste que o divórcio da UE foi uma decisão acertada, contra a opinião de 55%, segundo o Instituto YouGov. De acordo com a Redfield & Wilton for UK, dos que apoiaram o Brexit no plebiscito, 36% mudariam o voto se houvesse outra consulta popular.

Consumada a separação, os discursos ficaram para trás, e os britânicos tiveram de enfrentar os efeitos do Brexit no cotidiano. De um lado, as agruras enfrentadas pelos demais países do continente — como inflação ou influxo de migrantes ilegais — não arrefeceram. De outro, surgiram problemas autoinfligidos pelo próprio Brexit, como a falta de mão de obra. Escasseiam braços na lavoura para as colheitas. Oficinas mecânicas em Londres só têm horário disponível para setembro — a quem tem pressa, aconselha-se chamar o serviço de emergência do seguro. Alguns levaram um ano e meio para registrar seu animal doméstico na clínica veterinária mais próxima de casa, devido à dificuldade de substituir funcionários estrangeiros que tiveram de voltar para o continente por causa do Brexit.

A saída da UE não provocou apenas falta de produtos nas prateleiras dos supermercados e de combustíveis nos postos. Também afetou os preços. A vida ficou mais cara. Em junho a inflação anual ficou em 6,4%, apenas 0,1 ponto percentual abaixo de maio, quando atingiu o patamar mais elevado desde novembro de 1991. Em julho, 2,4 milhões de famílias deixaram de pagar pelo menos uma conta. Acrescentem-se a isso as filas de checagem de passaporte para as viagens de férias de verão no continente e as dificuldades burocráticas de exportadores e importadores para fechar seus negócios, o oposto do que prometiam os partidários do Brexit.

Um estudo estima que o Reino Unido perde € 100 bilhões por ano com o Brexit. Os danos se refletem na baixa taxa de crescimento. No primeiro trimestre, a economia cresceu 0,1%, mesma taxa do trimestre anterior. No início do ano, a economia britânica ainda estava 0,5% abaixo do nível de 2019, antes da pandemia, enquanto a americana estava 5,3% acima, a italiana 2,4% e a francesa 1,3%.

No plano político, o Partido Conservador, há 14 anos no poder, deverá pagar o preço nas eleições do ano que vem. A volta à UE é considerada hoje alternativa descartada, tantas as complicações. Não há qualquer simpatia europeia para receber o Reino Unido, por mais que pesquisas mostrem arrependimento na população. Os britânicos continuarão a arcar com os custos do isolamento, enquanto o país fica sem rumo definido na integração global.

Ajustar a reforma

Folha de S. Paulo

Proposta sensata do MEC busca preservar objetivos centrais do novo ensino médio

O Ministério da Educação anunciou que pretende apresentar até o início de setembro um projeto de lei com mudanças na grade curricular do novo ensino médio.

As medidas incluem a ampliação da carga horária dedicada à parte comum (disciplinas tradicionais como português e matemática) e a redução da quantidade dos chamados itinerários formativos, que passariam de cinco para dois.

Não se trata de inovação ambiciosa —o que é bem-vindo. A intenção do MEC é resolver o básico, e são muitas as circunstâncias em que o poder público não deve ter a pretensão de reinventar a roda.

A crise do ensino médio combina preconceito ideológico com problemas técnicos na implementação da reforma aprovada no governo de Michel Temer (MDB).

Associações de alunos e professores mais identificados com a esquerda nunca aceitaram a medida, porque ela veio de uma gestão não só vista como direitista mas também acusada de golpismo. Pouco importa que as discussões que resultaram na reforma tenham começado em governos do PT. Esses grupos exigiam a revogação total.

Ceder a essa demanda teria sido um erro, já que a premissa básica da remodelação —ampliar a autonomia dos alunos para que desenhem suas próprias trajetórias a fim de tornar o curso mais atraente e, assim, reduzir a evasão escolar— permanece válida.

As alterações, no entanto, eram de grande alcance, e as redes não estavam preparadas para implementá-las. O resultado foram situações caóticas, que demandavam uma intervenção do MEC.

A reforma prevê 60% da carga horária para o currículo comum e 40% para os itinerários. Contudo poucas unidades de ensino conseguiam oferecer ao corpo discente todas as trajetórias optativas previstas. Fazê-lo, afinal, demandaria mais professores e maior infraestrutura (laboratórios, salas de aula, material didático).

Na prática, portanto, a oferta acaba limitada e repleta de improvisos. Como consequência, a autonomia dos alunos, um dos objetivos da reforma, não foi ampliada.

Em alguns casos, estudantes passaram a ter menos aulas das disciplinas básicas, o que os deixava em desvantagem nos processos de seleção para universidades.

A recalibragem com a qual o MEC agora acena é sensata. O currículo comum passaria a 80% da carga horária, e o diversificado, para 20%. Os itinerários seriam apenas dois: humanas e exatas/biológicas.

Ainda há uma infinidade de detalhes a acertar, mas espera-se que, com a nova alteração, as redes consigam se reorganizar e, no futuro, possam oferecer um currículo de fato diversificado, com mais opções para os estudantes.

Alternância preciosa

Folha de S. Paulo

Com troca de governo, fecha-se o cerco sobre Bolsonaro, mas deve-se seguir a lei

Torna-se mais claro, a cada novo dia, que Jair Bolsonaro (PL) de fato contava com a impunidade na hipótese de ser reeleito presidente. É difícil identificar outra explicação razoável para a desfaçatez com que ele e aliados atacaram as instituições democráticas e escarneceram da coisa pública.

No episódio mais recente, investigações da Polícia Federal indicam que Bolsonaro se valeu da estrutura do governo federal para negociar bens preciosos recebidos de autoridades estrangeiras.

Entre os suspeitos de participar da falcatrua está Frederick Wassef, o advogado de Bolsonaro notabilizado após o policial aposentado Fabrício Queiroz ter sido preso na sua propriedade em Atibaia (SP).

Além dele, são alvo das apurações Osmar Crivelatti, tenente do Exército que atuou na ajudância de ordens da Presidência, e Mauro Lourena Cid, general da reserva e pai de Mauro Cid, também ex-ajudante de ordens e personagem recorrente nas tramas bolsonaristas.

Coube ao tenente-coronel Cid, como se sabe, armazenar em seu celular um arsenal de teorias heterodoxas que justificariam uma possível intervenção militar depois da eleição vencida por Lula (PT).

Em outra frente, Silvinei Vasques, ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, é investigado sob suspeita de ter utilizado a corporação para interferir no segundo turno das eleições de 2022.

Apura-se ainda se a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) se conectou a um famigerado hacker para, entre outras finalidades, prejudicar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

Todos esses, para não citar rol ainda mais extenso de aliados do ex-presidente, tornaram-se alvo da PF neste ano —e é pouco provável que encontrassem destino semelhante num eventual segundo mandato de Bolsonaro.

Colhem-se, dessa forma, alguns dos benefícios da alternância de poder: o aparelhamento das instituições de Estado se desfaz com a chegada de um novo grupo político e, ao menos na teoria, elas operam durante certo tempo sob a lógica pura da administração pública.

Disso decorre que as investigações, bem como as determinações judiciais, precisam de máximo rigor ao seguir a lei, para que de nenhum modo se confundam com um revanchismo rasteiro. Prisões mal fundamentadas como a de Silvinei Vasques, por exemplo, em nada ajudam na recuperação do vigor democrático brasileiro.

Os mais vulneráveis entre os vulneráveis

O Estado de S. Paulo

A pobreza no Brasil está concentrada nas crianças e, conforme o Banco Mundial, o sistema fiscal é parte do problema. Se o País quiser um futuro melhor, precisa reverter essa lógica

A população brasileira está envelhecendo, e nas próximas gerações começará a encolher. Os cidadãos em idade ativa diminuirão crescentemente e serão cada vez mais sobrecarregados, por exemplo, pela sustentação da Previdência de um contingente de idosos cada vez maior e mais longevo. Se não por mais nada, essa perspectiva econômica deveria motivar o País a promover políticas de incentivo à natalidade. Contudo, não só não há iniciativas substanciais nesse sentido, como o Brasil, que já é um dos países mais desiguais do mundo, concentra sua pobreza nas crianças.

A proporção de cidadãos em vulnerabilidade decresce conforme a idade. Entre os brasileiros com até 14 anos (22% da população), cerca de 10% vivem com até US$ 1,90 por dia e 20% com até US$ 3,20, enquanto entre os idosos (15% da população) esse porcentual é, respectivamente, algo em torno de 2% e 4%. Essa desproporção se reflete em todas as outras dimensões de vulnerabilidade, como alimentação, moradia ou saneamento.

Não se trata de um fenômeno novo no Brasil nem incomum no resto do mundo. O dado novo, levantado pelo Banco Mundial, é que o sistema fiscal brasileiro reduz a pobreza dos mais velhos, mas, ao mesmo tempo, agrava a dos mais novos.

O estudo mostra que as políticas fiscais aliviam a pobreza de um modo geral, reduzindo a pobreza extrema em 5,9 pontos porcentuais e a moderada em 0,6 ponto. Isso porque, ainda que os impostos indiretos tenham um efeito regressivo, aumentando a pobreza em 6,1 pontos porcentuais, esse impacto é amplamente compensado por programas sociais, como as pensões rurais, o Abono Salarial, o Benefício de Prestação Continuada e, sobretudo, o Bolsa Família.

Ocorre que na clivagem por idade há uma inversão. O impacto das políticas fiscais reduz as taxas de pobreza entre os idosos de 37,6% para 14,8%, enquanto entre as crianças ele as amplia de 54,2% para 56,6%. Assim, a presença de um idoso em uma família pobre tende a elevar a renda familiar, enquanto a de uma criança gera o efeito oposto.

Essa iniquidade sistêmica é tanto mais perniciosa quando se considera que o impacto da pobreza sobre as crianças (em processo de desenvolvimento físico e psíquico) é muito maior e mais duradouro (por vezes irremediável) do que entre os adultos. Inversamente, benefícios focalizados em crianças têm um potencial muito maior de reduzir a pobreza. E a literatura científica mostra que, quanto menor a idade em que o investimento é feito, maior é a taxa de retorno. Afinal, é mais fácil compensar as desvantagens de crianças pequenas do que tentar remediar essas desvantagens ao longo dos anos.

Nesse contexto, o aumento substancial do Bolsa Família e a retomada de um adicional para os filhos (R$ 150 até 7 anos e R$ 50 até 18 anos) foram medidas extremamente sadias. Ainda assim, famílias com filhos são desfavorecidas. Enquanto um casal sem filhos recebe R$ 300 por cabeça, um casal com uma criança e um adolescente, por exemplo, recebe R$ 200 por cabeça.

De resto, mesmo um programa de transferência de renda bastante robusto, progressivo e focalizado nos vulneráveis, como o Bolsa Família, pode ser uma condição necessária para promover a emancipação de crianças em alta vulnerabilidade, mas não é suficiente. Como a pobreza não é só monetária, é multidimensional, é preciso combinar transferências de renda com políticas complementares, desenhadas especificamente para os ciclos de vida, como é o caso, atualmente, do Programa Criança Feliz, para a primeira infância.

Priorizar crianças nas políticas sociais não é só um imperativo moral, dada a sua condição de total dependência do mundo adulto, mas econômico: sem investimento em capital humano no presente, não haverá capital material no futuro. Desde um passado imemorial, o Brasil se mostra muito competente em promover desigualdades e muito incompetente em promover o desenvolvimento infantil. Ao fim, são só duas peças da mesma armadilha. Se o Brasil não for capaz de reverter esse círculo vicioso, pode até continuar a se crer o “país do futuro”, mas esse futuro será cada vez mais pobre.

O alto custo das benesses na reforma

O Estado de S. Paulo

Não fossem as exceções incluídas na reforma tributária, o novo imposto poderia ser de 20% em vez de 27%. Cabe ao Senado revê-las e trabalhar pela menor alíquota possível

Um estudo do Ministério da Fazenda estimou que a alíquota padrão do futuro Imposto sobre Valor Agregado (IVA) poderá variar de 25,45% a 27%. O cálculo leva em conta os termos do texto da reforma tributária aprovado pela Câmara dos Deputados. O porcentual colocaria o Brasil ao lado da Hungria na constrangedora liderança do ranking dos países com o maior IVA sobre o consumo de bens e serviços, de acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A priori, esta seria uma notícia trágica, que daria razão aos que criticam a reforma. Mas ela traz uma oportunidade única de o País enfrentar um tema tão relevante para estimular o investimento e o crescimento. Em primeiro lugar, o País já tem a maior carga sobre consumo: ela é de 34,4%, considerando PIS, Cofins e ICMS. Essa tributação, sem dúvida alguma elevada, reflete as escolhas de um País que arrecada muito, mas gasta ainda mais.

Em segundo lugar, o texto que passou pela Câmara, que deu base ao estudo, não é definitivo. A alíquota final do tributo ainda pode mudar. Pode ser maior, se o Senado optar por aumentar o rol de setores privilegiados pelo imposto reduzido, ou menor, se os senadores enfrentarem o tema com a seriedade e o rigor que ele requer.

O estudo do Ministério da Fazenda foi apresentado a pedido do relator da reforma do Senado, Eduardo Braga (MDB-AM). O porcentual não está no texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) – e é bom que não esteja, para proteger a Carta Magna. Tal definição ficará para um projeto de lei complementar, etapa posterior à apreciação da PEC.

Para o relator, no entanto, o Senado, enquanto Casa da Federação, não poderia aprovar a reforma às cegas, sem ter conhecimento sobre as alíquotas de um imposto que substituirá outros cinco, entre os quais aquele que é a maior fonte de receitas dos Estados.

Agora conhecido, o estudo tem muitas virtudes. Com transparência, ele revela que as bondades que os deputados concederam a alguns setores têm um custo, o que não deveria causar surpresa. Afinal, uma vez que a neutralidade é uma premissa da reforma e o atual nível de arrecadação terá de ser mantido, se alguns pagarem menos, outros terão de desembolsar mais para compensar as benesses alheias.

Se apenas as exceções originalmente previstas na proposta tivessem sido mantidas, como o Simples Nacional e a Zona Franca de Manaus, o IVA poderia variar de 20,7% a 22%, já consideradas as perdas com sonegação e elisão fiscal. Os deputados, no entanto, optaram por incluir novos setores entre aqueles que terão tratamento especial, como agronegócio, saúde e educação; além disso, ampliaram o benefício a que eles teriam direito de 50% para 60% da alíquota cheia.

A Câmara decidiu ainda zerar o imposto de metade dos itens da cesta básica, quando poderia ter garantido esse direito apenas às famílias vulneráveis cadastradas em programas sociais. Qual a necessidade de conceder alíquota zero aos alimentos consumidos pela população de maior renda?

Até bares foram contemplados com a alíquota reduzida. Sem juízo de valor, a medida desrespeita o espírito da reforma. As bebidas alcoólicas estão justamente entre os produtos sobre os quais deverá incidir um imposto seletivo, ou seja, majorado, para desestimular o consumo. Foi com esse tipo de manobra – decisões políticas sem qualquer justificativa minimamente técnica para ampará-las – que o sistema tributário brasileiro se tornou um dos mais complexos do mundo.

A reforma em tramitação no Senado é a melhor chance de o País deixar para trás um sistema confuso, injusto e regressivo, que só beneficia quem faz uso de brechas legais e interpretações jurídicas peculiares para pagar menos imposto do que deveria. Os ganhos diretos e indiretos que a aprovação da proposta trará em termos de simplificação, transparência, equanimidade e produtividade são inestimáveis. O Senado deve reconhecê-los, sem perder a chance que tem em suas mãos para corrigir o texto e retirar todas as suas distorções. Só assim as alíquotas poderão ser menores.

Arquipélago Gulag 2.0

O Estado de S. Paulo

O suplício de Alexei Navalny escancara a brutalidade – e o nervosismo – crescente de Putin

Se havia dúvida de que Vladimir Putin não hesitará em esmagar qualquer dissidência sob sua máquina de propaganda nem em cometer crimes e usar força letal contra seu próprio povo para perseguir suas ambições, ela foi incinerada pela guerra na Ucrânia. Nada simboliza mais esses horrores que o martírio de Alexei Navalny.

Navalny se notabilizou por publicar materiais sobre corrupção e organizar protestos por meio de sua Fundação Anticorrupção. Após ser envenenado em 2020, violou sua condicional para ser socorrido em Berlim, e em 2021 voltou à Rússia sabendo que seria detido. Um julgamento farsesco o condenou a nove anos por fraude. Agora, foi sentenciado a mais 19 anos por acusações de “extremismo” que em qualquer tribunal independente nem sequer seriam aceitas. Colaboradores relatam que ele está há meses confinado numa solitária. Sua última condenação o enviará a um “regime especial” numa colônia penal onde ficará ainda mais isolado.

Navalny é só a ponta do iceberg. Todas as atividades de sua fundação foram criminalizadas desde 2011. Diversos membros foram ou estão para ser condenados a penas até maiores. Mesmo seus advogados se tornaram alvos. Segundo a Anistia Internacional, até 20 mil russos sofreram represália por protestar contra a guerra. Muitos respondem a “combos” de acusação que aglutinam de infrações administrativas a desinformação e traição. Segundo o grupo Memorial de direitos humanos – dirigido por Oleg Orlov, também julgado por “desacreditar” as Forças Armadas –, o número de casos lembra a era Brejnev, nos anos 60 e 70, mas a brutalidade se assemelha ao “tempo de Stalin”.

Navalny não tem ilusões. “O número não importa”, disse nas redes sociais, através de interlocutores com acesso a seu perfil. “Entendo perfeitamente bem que, como muitos prisioneiros políticos, estou cumprindo uma prisão perpétua – onde a perpetuidade é medida pela duração da minha vida ou da vida deste regime.”

Como ele, outros ativistas estão decididos a ficar na Rússia, mesmo ante a perspectiva certa de imolação. Uma das razões, disse a advogada de direitos humanos Maria Eismont, é que nas cortes russas “você pode dizer abertamente coisas que estão, há muito tempo, proibidas em outros lugares”.

Com sua capacidade de negociação com o Kremlin no nível mais baixo desde a guerra fria, não resta ao Ocidente senão denunciar ostensivamente os crimes de Putin para tentar sensibilizar o povo russo. Mesmo autocratas precisam de uma fachada de legitimidade, e a comunidade internacional, especialmente políticos, diplomatas, ONGs e a imprensa, deveria usar toda oportunidade à mão para marretar a fachada podre de Putin. A escalada da selvageria é já um sinal de desespero.

“Vocês estão sendo forçados a entregar sem luta a sua Rússia a uma gangue de traidores, ladrões e canalhas que tomaram o poder”, disse Navalny a seus compatriotas. O mundo civilizado não deveria poupar esforços para dar voz aos russos dispostos a sacrificar suas vidas para livrar seu país, a Ucrânia e, no limite, todo o planeta das garras dessa gangue.

América Latina e o crime organizado

Correio Braziliense

Para onde quer que se olhe, os índices de homicídios na guerra urbana não param de subir. E, agora, o descalabro avança sobre a política, colocando em risco a democracia

A violência na América Latina se banalizou por completo. O assassinato de Fernando Villavicencio, candidato à Presidência da República no Equador, na última quarta-feira, foi apenas mais um capítulo das tragédias que têm se repetido em toda a região, tomada pelo crime organizado e pelo narcotráfico. Para onde quer que se olhe, os índices de homicídios na guerra urbana não param de subir. E, agora, o descalabro avança sobre a política, colocando em risco a democracia. As eleições equatorianas estão mantidas para 20 de agosto, e o país decretou Estado de exceção.

Villavicencio foi o terceiro político assassinado no Equador neste ano. No mês passado, o candidato ao Legislativo Rider Sánchez foi morto na cidade de Quinindé, a noroeste do país. Em fevereiro, Omar Menéndez teve a vida ceifada a tiros um dia antes das eleições em que saiu vitorioso, com 46,2% dos votos, para prefeito de Puerto López. Esses crimes coincidem com o salto impressionante nos indicadores de violência no país. Em 2017, o Equador chegou a ter o menor número de homicídios por 100 mil habitantes: 5,8. Agora, esse índice subiu para 36, próximo de países em guerra.

Ao sul da América Latina, a Argentina vive o mesmo fenômeno de descontrole da violência às vésperas de eleições. Três mortes nos últimos dias colocaram o tema nos debates dos presidenciáveis, estimulando discursos populistas, em especial da extrema-direita. A menina Morena Domínguez, 11 anos, morreu depois de ter a mochila roubada na porta da escola por dois motoqueiros. O manifestante de esquerda Facundo Morales, 47, teve um mal súbito ao ser detido pela polícia em uma manifestação. O médico Juan Carlos Cruz, 52, faleceu ao ser baleado quando ladrões roubavam o carro dele.

A Argentina sempre foi uma das nações mais seguras da região. Mas políticas equivocadas, que empurraram o país para a mais grave crise econômica de sua história, com 40% da população na pobreza, mudaram a realidade dos argentinos. A taxa de homicídio no país vizinho alcançou 4,2 homicídios por 100 mil habitantes, ainda bem distante do índice brasileiro, de 19,5. O clima de insegurança perturba os eleitores, que apontam o tema como o mais importante depois da inflação galopante. A região metropolitana de Buenos Aires concentra quase 40% dos crimes.

Dados recentes do Fórum de Segurança Pública mostram que o número de homicídios no Brasil caiu ao menor nível em uma década. Porém, quase 50 mil pessoas ainda são vítimas de armas de fogo todos os anos. Crimes como estupros e feminicídios batem recorde. Jovens negros são os que mais morrem nessa guerra diária. Entre setembro de 2020, às vésperas de eleições municipais, e 2 de outubro de 2022, primeiro turno do pleito presidencial, foram identificados 523 casos de violência política, sendo 54 assassinatos de candidatos a cargos eletivos e de pessoas com mandatos. Cinco anos se passaram, e até hoje não se sabe, efetivamente, quem mandou matar a vereadora Marielle Franco e o motorista dela, Anderson Gomes.

A luta contra a violência na América Latina tornou-se mais do que urgente. Exige uma ação coordenada de todos os países da região para combater o narcotráfico e as organizações criminosas que têm se mostrado, em alguns países, fortes o suficiente para enfrentar os poderes constituídos na tentativa de fazer valer seus interesses. A ramificação desses grupos é tão ampla que ações isoladas de nada adiantarão. Ou os governos se unem, ou o Estado paralelo passará a dar as cartas, corrompendo os que têm o poder da caneta, o Judiciário e aqueles que fazem as leis.

O enfrentamento não poderá se restringir a medidas na área de segurança. Passa por políticas eficientes e inclusivas na economia, de forma que os jovens que se sentem excluídos não sejam cooptados pelo crime. Essa não pode ser uma guerra perdida, pois as consequências serão pesadas para todos.

 

 

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