O Globo
STF enfrenta uma velha tradição brasileira
— a maldição do golpe de Estado
Embora o Manifesto Dias
Toffoli tenha confirmado, em letras garrafais, a máxima tupiniquim —
“no Brasil, até o passado é incerto” —, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga
nos próximos dias os primeiros réus do 8 de Janeiro. À beira de sua
aposentadoria, a presidente do tribunal, Rosa Weber,
num gesto simbólico de contemporaneidade, pôs temas candentes em pauta, entre
eles a questão do aborto e os golpistas bolsonaristas.
A carta toffolesca de perdão e súplica, a quem interessar possa, por certo nubla a despedida de Rosa Weber. Difícil ombrear em pompa e chiste com o arrazoado mal disfarçado de quem some com o mapa do tesouro. Ainda bem que a manifestação de caráter revisionista não se dá sob a fatwa lulista do voto (ou despacho) secreto. Assinada e datada, a decisão monocrática, mesmo com a evidência de bilhões de dólares devolvidos, já figura no folclore brasileiro, ao lado do terraplanismo, da manga com leite e da lepidez injuriosa de Barrichello. Soa contaminada pelo jeito Moro de julgar — um olho na plateia e outro no aplauso bacharelesco.
Ainda em setembro, depois de centenas de
investigações e interrogatórios, o STF enfrenta uma velha tradição brasileira —
a maldição do golpe de Estado. Quis o destino, e certa falta de educação e
civilidade, que fosse algo tão habitual quanto o domingo preceder a
segunda-feira. Até que as armas digam o contrário. Do Deodoro da Fonseca à
ditadura de 1964, em pele militar ou marionete civil, o regime democrático
quase sempre carregou a sombra de ser subvertido, vilipendiado.
Ainda em 2023, passadas mais de três
décadas da redemocratização, o país depara com entulhos autoritários, numa
espécie de liberdade vigiada. Desde o tuíte do general Villas Bôas, com ameaça
velada ao ministro Fachin, aos vitupérios diários do ex-presidente, com
evocações tenebrosas ao “seu Exército”, o voto da maioria nunca pareceu sólido
para ser respeitado — até prova em contrário.
Pergunta-se como um país que se deixa
amedrontar por mensagens fardadas ainda assim se deseja criativo e
independente. Não é samba.
Foi assim durante todo o infausto período
de Bolsonaro na Presidência, quando o mesmo Dias Toffoli, esse que agora roga
perdão a seus outrora pares petistas, deixou-se subjugar pelos caprichos
autoritários do capitão. Além das adulações e nada envergonhadas genuflexões.
Não se deve esquecer que o próprio, ao gosto da bozofrenia de então, renomeou o
Golpe Militar de 1964 — “[agora] eu me refiro a movimento de 1964”, pontificou
enquanto presidente do Supremo.
Sob tal moldura, diante de esgares
verde-oliva, assim chegamos aos julgamentos dos golpistas do 8 de Janeiro. Não
é uma tarefa fácil, porque os militares que toleraram — apoiaram? — a sedição,
no já clássico movimento corporativista, lutam para que não sejam arrolados nos
processos. Do mesmo jeito que Toffoli anulou diversas provas, busca-se apagar
da memória recente os acampamentos à porta dos quartéis. Com sambão-joia e
sopão.
Nem por isso o julgamento pautado pela
ministra Rosa Weber deixa de ser histórico — e poderá vir a ser simbólico. No
Brasil, os golpistas jamais foram punidos, tampouco os torturadores e
assassinos de adversários políticos. Rema-se habitualmente no caráter dito
contemporizador do brasileiro, aquele em que sempre se perdoam os poderosos ou
bem apadrinhados.
Estarão de início no banco dos réus três
janízaros bolsonaristas, acusados de tentativa de abolição violenta do Estado
Democrático de Direito, associação criminosa, tentativa de golpe de Estado e
dano ao patrimônio público. É histórico por a Justiça enfim enfrentar o poder
político e também pela rapidez do andamento dos processos. Passaram-se apenas
nove meses da sedição, centenas de golpistas foram presos, Bolsonaro está
afastado das urnas por oito anos, a um passo da cadeia, e o Brasil, que penou
com algumas ditaduras desde o Marechal Deodoro, deverá condenar enfim seus
primeiros mercenários. Nunca é tarde.
Para nos inspirar, vejamos exemplos
semelhantes. Nos Estados Unidos, os golpistas trumpistas, cuja invasão ao
Capitólio foi emulada pelos patriotas do sopão, choram diante das penas
recebidas. Ethan Nordean, líder dos Proud Boys, uma milícia de extrema direita,
ficará 18 anos atrás das grades. Dominic Pezzola, um dos primeiros invasores,
teve sorte — estará preso por meros dez anos. Em maio passado, Stewart Rhodes,
chefe de outra organização direitista, a Oath Keepers, se viu premiado também
com 18 anos de detenção, condenado por tentativa de abolição violenta do Estado
de Direito Democrático. Lá, ante tamanha punição, dificilmente haverá outra
sedição.
Um comentário:
Muito bom!
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