Valor Econômico
Multinacionais planejaram fazer de Brasil e Argentina uma estrutura única de manufatura, mas a lógica industrial foi muitas vezes atropelada por crises e caprichos políticos
Há poucos dias, o presidente da Renault do
Brasil, Ricardo Gondo, mostrou estar ansioso pelo início das vendas no Brasil
de um veículo produzido na Argentina. O Kangoo, um modelo multiuso fabricado em
Córdoba, será vendido no mercado brasileiro a partir do próximo ano. Essa
importação facilitará o movimento no sentido contrário: o envio, para o mercado
argentino, de carros produzidos pela Renault na fábrica do Paraná. A exportação
a partir do Brasil ficou prejudicada nos últimos dias, segundo Gondo, pela escassez
de divisas no país vizinho.
Há quatro meses começou, também em Córdoba, a produção experimental da Volkswagen Caminhões e Ônibus. A montadora alemã vende veículos comerciais na Argentina há 25 anos. Mas até aqui eram importados da fábrica de Resende (RJ). Anunciado no fim de 2022, o novo plano, que vai absorver investimento de US$ 50 milhões, prevê produzir, em Córdoba, a partir do início de 2024, cinco modelos para atender o mercado interno. Dessa forma, a empresa deixará de depender da disponibilidade de dólares no país vizinho para vender seus produtos e ainda o ajudará a reduzir o déficit comercial.
As recentes decisões de Renault e Volks
mostram que a indústria automobilística conhece bem as vantagens de produzir
num país carente de reservas cambiais e isso, para esse setor, independe de
quem seja o vencedor no segundo turno da eleição presidencial em 19 de
novembro.
A maior parte das montadoras instaladas no
Brasil também tem fábricas na Argentina e faz intercâmbio comercial. Estão,
porém, em situação muito mais confortável para receber dólares pelos veículos
exportados do Brasil para o outro lado da fronteira empresas que também mandam
produtos de lá para cá. Principalmente as que enviam modelos mais caros.
É o caso da Toyota, com toda a produção da
picape Hilux feita em Zárate, na província de Buenos Aires. A Ford é um caso à
parte. Desde que deixou de produzir no Brasil, há dois anos, a empresa parou,
consequentemente de exportar do Brasil e passou apenas a importar do país
vizinho a picape Ranger, feita em General Pacheco, região metropolitana de
Buenos Aires.
O cuidado em manter produção do outro lado da
fronteira foi redobrado nos últimos 12 anos, desde que as reservas argentinas
começaram a minguar, independentemente de quem estava no comando da Casa
Rosada.
Produzir veículos na Argentina hoje oferece
várias vantagens. No mercado interno, carros foram incluídos no “Precios
Justos”, um programa federal de controle e congelamento de preços utilizado
para tentar conter a pressão inflacionária.
De nove modelos incluídos no “Precios
Justos”, seis são produzidos na Argentina (Citroën Berlingo, Fiat Cronos, Ford
Ranger, Nissan Frontier, Peugeot Partner e Renault Alaskan) e três no Brasil
(Chevrolet Montana, Toyota Yaris e Volkswagen Polo Track).
No início do ano, o ministro da Economia e
candidato à eleição presidencial, Sergio Massa, anunciou benefícios fiscais
para os veículos exportados que excedessem o total do ano passado (322,2 mil
unidades). Com aumento de 6,2% em relação ao mesmo período de 2022, as
exportações de janeiro a setembro já alcançaram 245,1 mil unidades, segundo a
Adefa, associação que representa o setor. Haverá, portanto, o excedente
esperado por Massa.
O Brasil ajuda, e muito, a Argentina a conter
a saída de dólares. O país foi o destino de 63,6% dos veículos embarcados pelos
argentinos ao exterior no acumulado até setembro, segundo dados da Adefa. Já a
Argentina tem perdido espaço nas exportações brasileiras de veículos. Ainda é o
principal destino, mas sua participação diminuiu ao longo dos anos. Chegou a
71,2% em 2017 e no ano passado ficou em 27,8%.
Na contramão do que acontece em outros
setores, o automotivo terá motivos para comemorar este ano na Argentina. A
produção de veículos acumula alta de 18,1% de janeiro a setembro, segundo a
Adefa.
Além do peso do Brasil nas exportações, no
mercado interno, as vendas a concessionárias registraram alta de 23,5% no
acumulado dos nove meses. Favorece o setor um aspecto da cultura argentina,
provocado pelos anos de inflação e desvalorização da moeda local: o automóvel
serve como porto seguro para quem não confia no sistema bancário para deixar
suas economias.
As montadoras não parecem esperar para saber
o resultado das eleições. A tendência é continuarem a investir na expansão da
produção na Argentina como forma de evitar atropelos no intercâmbio comercial
com o Brasil.
A ideia da indústria automobilística de
produzir nos dois lados da fronteira ganhou força a partir do tratado do
Mercosul, em 1991, que permitiu o intercâmbio comercial livre de tributos.
Os dirigentes globais dessas multinacionais
planejaram fazer dos dois países uma estrutura única de manufatura. Mas a
lógica industrial foi, muitas vezes, atropelada por crises econômicas, em ambos
os lados. E teve, em várias ocasiões, que andar ao sabor de caprichos
políticos.
Esses dirigentes aprenderam, porém, a fazer
ajustes, “dançar conforme a música”. Desta vez aguardam para ver qual será o
tom do próximo tango.
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