Enigma da Abin lança suspeita sobre rede ilegal de espionagem
Há cinco meses o Congresso tenta, sem êxito,
decifrar um enigma: a “Operação 06” da Agência Brasileira de Inteligência
(Abin).
Sabe-se que foi uma ação secreta no Rio. Há
indícios de gastos expressivos, com estimativas variáveis entre 2 e 6 milhões
de reais. As despesas, aparentemente, foram concentradas em equipamentos,
softwares, transporte e pessoal em áreas controladas pelo crime organizado —
milícias de policiais e de narcotraficantes.
Sabe-se, também, que começou em 2021 e durou até meados do ano passado. Por coincidência, época em que partidos definiam candidaturas para as eleições de outubro. Foram selecionados 1 037 candidatos para as 46 vagas da bancada do estado do Rio na Câmara.
Em maio, o ex-presidente do Senado Renan
Calheiros (MDB-AL) aprovou na Comissão Mista de Controle das Atividades de
Inteligência um pedido à Casa Civil da
Presidência da República para a entrega de toda a documentação sobre os
objetivos, as metas e os resultados dessa iniciativa clandestina coordenada
pela superintendência regional da Abin. Além disso, requisitou: cópias dos
relatórios de quatro dezenas de órgãos estatais envolvidos; listagem das
autoridades e servidores responsáveis; detalhes do orçamento e da execução
financeira em cada etapa das atividades até abril de 2022.
As respostas recebidas na comissão, por
enquanto, são consideradas insuficientes para decodificar a “Operação 06” no
governo Jair Bolsonaro.
Ela aconteceu durante a estadia do policial federal Alexandre Ramagem na
direção da agência. Em abril do ano passado, Ramagem saiu da Abin para se
candidatar a deputado federal e passou o comando a Victor Carneiro, até então
superintendente no Rio. Elegeu-se com 59 170 votos pela seção
fluminense do Partido Liberal, controlada por Bolsonaro. Na chegada à
Câmara preocupou-se em garantir vaga na comissão
legislativa que, agora, tenta desvendar a ação do serviço
secreto no Rio durante a sua gestão.
As atividades da Abin de Ramagem e Bolsonaro
estão sob investigação, simultânea, em várias instâncias (Congresso, Supremo,
Tribunal Superior Eleitoral, Polícia Federal, Ministério Público,
Controladoria-Geral e Tribunal de Contas da União). São múltiplas as suspeitas
sobre uso da estrutura, orçamento e equipamentos em espionagem doméstica com
objetivos políticos e econômicos privados. O governo já sabe o que e como
aconteceu. Lula resumiu,
na semana passada: “Estamos vendo escutas telefônicas de gente que não deveria
ter (sido) escutada, e que não tinha decisão judicial”.
Dias antes, o juiz do STF Alexandre de
Moraes havia determinado a prisão de dois dirigentes, afastado
outros cinco funcionários e autorizado buscas em escritórios e residências de
São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Goiás e Brasília. Na casa de um diretor da
agência, demitido há uma semana, foram apreendidos 170 000 dólares
em espécie, o equivalente a 850 000 reais. “É poupança
familiar”, alegou o oficial de inteligência
na sua segunda passagem pela polícia em quinze anos,
pelas mesmas razões.
O caso da Abin é parte de mosaico de
espionagem ilegal que, suspeita-se no Congresso, envolve organismos federais e
estaduais de segurança. É condimentado pelo aumento exponencial de gastos
públicos na compra de equipamentos e softwares para rastreamento, coleta e
extração de informações pessoais em todo o país, sempre em nome da segurança
pública, sem fiscalização e controle das atividades dos agentes usuários.
Esse tipo de despesa aumentou muito na última
década, até 100 vezes em alguns estados. A organização independente Derechos
Digitales concluiu em novembro uma análise de 209 contratos públicos para
máquinas e programas de espionagem. Os pesquisadores André Ramiro, Pedro
Amaral, Mariana Canto e Marcos Pereira vislumbraram os contornos de um mercado
onde, praticamente, não existe fronteira real entre interesse público e
privado. A vulnerabilidade, acham, começa nos principais fornecedores, as
empresas israelenses Cellebrite e Verint. Elas são donas de 80% das vendas
nacionais e guardam um histórico de “escândalos de vigilância governamental
abusiva” no exterior.
O caso da Abin sugere mais do que abuso
eventual em órgãos de investigação. Há indícios de manipulação de orçamentos
federais e estaduais na expansão de um arsenal de ferramentas contra as quais
não existe segurança para informações individuais. Sem regulação e supervisão
efetivas, governos estimulam grandes negócios na espionagem política e
econômica — e tudo subsidiado com dinheiro público.
*Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866
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