O Globo
Pensar que o Hamas representa os palestinos é uma mentira e um contrassenso que deslegitima toda a esquerda que não pensa desse jeito
A surpresa é fator essencial para qualquer
ação terrorista, mas desta vez sua eficácia foi amplificada por uma variável
adicional: a desatenção coletiva da sociedade israelense. Polarizada e exaurida
pelo discurso do ódio, Israel estava
atordoada e afogada em intensos conflitos políticos internos provocados por
Netanyahu e seus aliados de extrema direita.
A psicanálise nos mostra que a energia emocional humana não é ilimitada: o amor e o ódio são endereçados a alvos específicos a cada vez, mas são deslocáveis. O resto sofre uma espécie de esvaziamento de importância — ou desinvestimento. E o Hamas foi absurdamente esquecido. O destino da atenção suspeitosa, do alerta de risco iminente foi transferido para os lados opostos da disputa interna, um dos quais sentindo a democracia seriamente ameaçada.
Israel sofreu um apagão da atenção, e até o
mais inteligente serviço secreto do mundo teve seu momento de burrice. Já
acontecera na Guerra do Yom Kippur, em 1973. Pois o dispositivo da freudiana
negação é uma virtualidade psíquica pronta a se infiltrar e nos afastar da
realidade. Não convém negar que a negação sempre está prestes a agir
perturbando a visão. Israel não enxergou até que ponto o Hamas poderia avançar
em sua explícita determinação de varrê-la do mapa. De forma arrogante e
onipotente, não só dormiu com o vizinho sanguinário, grupo que deveria
eliminar, como o instigou com assentamentos, cercos e humilhações, alimentando
um ódio palestino inesquecível e manipulado pelo Hamas — enquanto Tel Aviv
sonhava com uma ilusória estabilidade da Faixa de Gaza.
Se estivesse mais alerta, Israel poderia ter
abortado, contido ou dissuadido o ataque absurdo? A polarização exaure e
atordoa outros países do mundo, inclusive o Brasil, perturbando o foco. A
divergência converteu-se em ódio, conflito de opinião virou intolerância
pessoal e inimizade. Reduzem-se todos a suas posições ideológicas, como se
estas fossem a síntese do caráter. A própria formação da personalidade é
abortada e simplificada pelo slogan político, time de futebol e gênero. A
singular subjetividade de cada um foi reduzida, e assim é mais fácil matar ou
morrer em guerras — invasão da Ucrânia e de Israel — que apontam para o retorno
da barbárie que os iPhones de titânio anunciam.
O mundo virou uma estreita faixa de gente
amontoada em redes sociais, todos muito perto uns dos outros em pequena aldeia
digital, onde a intolerância é exponencial. Já vi análises que atribuem ao
mundo multipolar a causa do caos atual, evocando a nostalgia dos fortes atores
da era bipolar, ou até da unilateral pax americana. Mais um pouco, e teremos de
voltar a ler “Totem e tabu”, de Freud, para entender o que se passa. Enfim, o
assassinato do pai primevo, a emergência de uma luta fratricida caótica — e isso
pode acabar em fascismo, ou no reforço das leis e da civilização.
O curioso é que, em vez do mundo multipolar,
emerge um binarismo político e cultural paradoxal no interior das nações e
entre as pessoas. Como se, no alfabeto, só existissem letras como L ou B. Mas o
alfabeto vai do A ao Z. Com todas essas letras, somos capazes de formar
criativamente infinitas ideias lúcidas e independentes. A política não precisa
ser essa simplificação ideológica mediocrizada, com ridículas adesões
impensadas, mecânicas e automáticas.
A faixa da esquerda míope tem pudor de
condenar o Hamas, como se este representasse o povo palestino em seu inequívoco
direito a um Estado independente (que torcemos para ser constituído em breve).
Pensar que o Hamas representa os palestinos é uma mentira e um contrassenso que
acaba desacreditando e deslegitimando toda a esquerda que não pensa desse
jeito, dando munição que seus adversários agradecem. O grupo terrorista na
verdade é o carrasco totalitário de seu povo. Ao ameaçar eliminar Israel, e
constantemente atacá-lo, sem acenar para uma saída, se deslegitima, provoca
respostas mortíferas e acirra o extremismo israelense, além de adiar a paz e a
constituição de um Estado da Palestina.
*Paulo Sternick é psicanalista
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