sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Entrevista | Carlos Melo: ‘A tentativa de golpe acabou sendo um grande tiro no pé’

Cientista político ressalta atuação dos três Poderes e da comunidade internacional na resposta à intentona bolsonarista

Por Lucas Ferraz / Valor Econômico

A seguir os principais pontos da entrevista de Carlos Melo ao Valor:

Valor: Como o senhor vê o Brasil um ano depois do 8 de Janeiro?

Carlos Melo: Com certo alívio. Poderia ser muito pior. O 8 de Janeiro não deu certo, houve uma tentativa de golpe e escapamos. Um ano depois, poderíamos estar em situação muito complicada. De alguma forma, o país conseguiu sair com sabedoria desse processo. Quero destacar a inteligência do presidente Lula, porque parecia tudo uma cilada. Qual cilada? Ele chamar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para colocar o Exército na rua e perder o controle. Soubemos depois que, se não era o Alto Comando ou o Exército institucionalmente, havia muitos oficiais, coronéis, majores, generais, muitos generais da reserva, todo mundo envolvido. Havia setores das PMs. Então poderia ser muito ruim. Houve certa sagacidade do presidente de não cair nisso e fazer uma intervenção civil conduzida pelo Ministério da Justiça, por meio do Ricardo Cappelli, que foi uma figura importante. Ele teve postura e autoridade. Poderíamos estar nesse momento numa quadra histórica complicada, de perigo para os civis e com a democracia em perigo. Eles tentaram o que tentariam em algum momento, se não fosse o 8 de janeiro, seria 15 de janeiro, 16 de fevereiro, sei lá. Algumas instituições agiram, como o STF. Algumas porque a Procuradoria-Geral da República (PGR) se omitiu.

Valor: O termo “golpe” é questionado pelos bolsonaristas. Do ponto de vista da ciência política, que elementos temos para dizer que houve uma tentativa de golpe?

Melo: Um motivo simples: você ocuparia o centro do poder em Brasília, a Praça dos Três Poderes. E aí o recurso às Forças Armadas, por meio da GLO, poderia se voltar contra o presidente eleito. Não foi um golpe porque não aconteceu, mas houve uma tentativa. Há elementos clássicos, como o virtual envolvimento das Forças Armadas. Parecia haver um roteiro para que isso ocorresse, para que setores das Forças Armadas se mobilizassem ou se amotinassem.

Valor: Houve certo grau de sofisticação no planejamento do 8 de Janeiro?

Melo: Não foi uma revolta popular. As pessoas ficaram acampadas na frente dos quartéis por mais de dois meses, financiadas. Churrascos, festas, ônibus. Não foi uma ação espontânea, dizer isso é fugir da realidade. Soubemos depois que havia planejamento, financiamento. Não dá para dizer que foi coisa de meia dúzia de maluco inconformado, isso é má-fé, tentativa de mistificação política, de falsear o episódio tentando minimizá-lo.

Valor: A reação institucional dos Três Poderes foi satisfatória?

Melo: No final das contas, foi. Achei interessante a visita do presidente aos escombros do STF, com os ministros, seguido de parlamentares. Foi importante. O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também teve postura ativa. Houve um alinhamento que lamento que não tenha sido acompanhado, com a mesma postura e determinação, pela PGR, que deveria ter cumprido o seu papel. Augusto Aras tem posição bastante controversa nisso tudo. Ele e a subprocuradora Lindôra de Araújo tiveram papel ativo na tentativa de minimizar e não responsabilizar os responsáveis. Essas coisas marcam uma postura da PGR que, a bem da verdade, não se restringe ao 8 de Janeiro, já vem de antes.

Valor: O terceiro mandato de Lula começou sob pressão em razão da questão militar, mas de que forma o 8 de Janeiro muda o seu governo?

Melo: O 8 de Janeiro dá força para o governo. Os agressores transformaram o presidente e a democracia em vítimas. Houve por parte da sociedade, das instituições, do Congresso, da Justiça, da imprensa, da opinião pública, enfim, independente da perspectiva que se tinha do presidente Lula ou de seu governo, e das restrições que se pudessem fazer ao governo do PT, aquilo demarcou um divisor de águas. Quem estiver a favor disso, não está no campo da democracia. Acabou sendo um grande tiro no pé de quem tentou. Note que [o 8 de Janeiro] conseguiu alinhar uma grande parte da sociedade ao lado não do presidente, mas das instituições democráticas. Também a opinião pública internacional foi importante, como a política internacional. As manifestações do presidente Macron, de Biden... A reação internacional foi rápida e absolutamente necessária para ter claro que não haveria apoio a aventura, o contrário de 1964. Não haveria apoio dos americanos, da União Europeia, nem da América Latina. Foi importante para que os radicalizados mais inteligentes e moderados percebessem que estavam sozinhos. Se é que é possível usar essa categoria, inteligentes e moderados, para eles.

Valor: Terminamos o ano com os militares de novo envolvidos numa GLO, agora numa operação contra o crime organizado. O governo Lula evitou certas pautas para não melindrar os militares. Esse tema poderia ter sido enfrentado de outra maneira?

Melo: Dizer que poderia é fácil, não temos a responsabilidade de decidir. Manifestações de força, mais acaloradas ou voluntaristas, talvez não colaborassem com nada. Foi necessário tratar desse processo com cuidado e zelo. O fato é que, um ano depois, a temperatura baixou. O clima arrefeceu, precisa arrefecer mais. Ajustes precisam ser feitos, como uma reforma institucional das Forças Armadas na sua própria formação. Mas isso não se faz de supetão. O governo tem quatro anos, ainda dá para encaminhar pautas importantes. Precisa olhar o que foi o governo Bolsonaro. O que houve quando ocorre o julgamento do Lula e o comandante do Exército faz nota em rede social... Havia um alinhamento de setores importantes das Forças Armadas. Havia um ambiente complicado, muito radicalizado. É a hora dos incendiários ou dos bombeiros? Parecia mais razoável que os bombeiros atuassem. Precisamos ter uma relação mais democrática e moderna com as Forças Armadas. Não podemos, a cada conflito, ficar na dependência de como elas vão se posicionar. Algumas coisas começaram a acontecer, uma lei que veda a atuação de militares da ativa na política foi aprovada. Tiveram andamento lento? Talvez. Mas dentro do possível, houve [um andamento].

Valor: O senhor vê excessos na atuação do Judiciário no episódio?

Melo: Como a questão militar, o Judiciário requer um processo gradual de ajuste e aperfeiçoamento institucional. Houve um empoderamento, mas foi ele quem segurou a onda. Foram sobretudo o TSE e o STF que fizeram o enfrentamento ao bolsonarismo, na eleição e depois. É natural que tenha havido um robustecimento, agora precisa voltar ao eixo. Não pode um poder cercear o outro, coibir pautas conservadoras, orçamento secreto, dizer como o Congresso vai fazer. A conjuntura puxou os ministros do STF para a política além do razoável, mas isso num momento de barbaridade. Como posso dizer que aquilo não é razoável quando não há normalidade? O pêndulo precisou ir para um lado, agora precisa ocupar a sua oposição no meio, em condições normais. Acho que isso irá acontecer por iniciativa do próprio STF. A ex-ministra Rosa Weber baixou uma série de medidas sobre ritos e pedidos de vista. Isso foi importante. Não pode haver uma queda de braço [entre os Poderes], é preciso ser feito de forma institucional e o país se reorganizar. Há um desafio de organização institucional. O 8 de Janeiro expressou não só uma algazarra, mas um limite de desorganização institucional que precisa ser repensada para se restabelecer a normalidade democrática.

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