sábado, 13 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Pacote verde é mais um agrado para montadoras

O Globo

Setor já beneficiado por incentivos tributários pouco eficazes recebeu uma nova benesse de R$ 19 bilhões

É cheio de boas intenções o programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), lançado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva no fim do ano passado com o objetivo de estimular a descarbonização da frota de automóveis no Brasil. Mas elas não escondem que o programa promove mais um incentivo bilionário a montadoras que, há décadas, dependem da ajuda do Estado para sobreviver num mercado cada vez mais competitivo, que exige produtividade e criatividade.

Em 30 de dezembro, Lula assinou uma Medida Provisória que amplia as exigências de sustentabilidade na venda de carros e concede incentivos fiscais às empresas que investirem em descarbonização. A estimativa é que, até 2028, os créditos concedidos somem R$ 19 bilhões. Para este ano, estão previstos R$ 3,5 bilhões. Para 2025, R$ 3,8 bilhões.

Entre as exigências previstas, está a medição das emissões de carbono em todo o ciclo de energia, para todas as fontes — etanol, gasolina, bateria elétrica ou biocombustível. No caso da gasolina, ela será feita da extração do petróleo à queima do combustível. A MP prevê ainda a ampliação do uso de material reciclado na fabricação e um sistema de recompensa e penalização na cobrança de IPI às empresas. Quem poluir mais pagará mais.

Todas essas medidas são necessárias. Ninguém jamais negará que produzir veículos menos poluentes é medida bem-vinda. Mas a questão não se restringe a isso. Incentivar o transporte individual — sobretudo movido a combustível fóssil — não é exatamente uma medida que contribua para o planeta. Ainda que embrulhado numa embalagem verde, o pacote recém-lançado canaliza recursos públicos para um setor que deveria prescindir deles.

No ano passado, o governo já lançou um pacote de R$ 1,5 bilhão de incentivo às montadoras. O plano era aumentar a venda de carros de até R$ 120 mil (ironicamente chamados populares). Não adiantou muito. Nos quatro meses de vigência do programa, os pátios continuaram lotados. A despeito da baixa eficácia, o benefício foi prorrogado e recebeu mais R$ 300 milhões.

Nos governos Dilma Rousseff, montadoras já tinham sido brindadas com o programa Inovar-Auto, que distribuiu R$ 1,3 bilhão por ano em incentivos, sob pretexto de modernizar a indústria automobilística. Não só deu errado, como ainda rendeu ao Brasil uma condenação por práticas anticompetitivas na Organização Mundial do Comércio.

Incentivos tributários a empresas automobilísticas custaram mais de R$ 5 bilhões por ano ao contribuinte e sugaram mais de R$ 50 bilhões desde 2010, constatou uma análise do TCU, em parceria com a CGU. A inspeção, feita em 2022 e divulgada no ano passado, concluiu que as Políticas Automotivas de Desenvolvimento Nacional custam muito e geram baixo retorno aos territórios beneficiados. Não impede que os benefícios continuem a crescer. As isenções tributárias para o setor automotivo passaram de R$ 8,8 bilhões em 2022, 42% acima do ano anterior, segundo o Ministério do Planejamento.

Se realmente estivesse interessado em reduzir emissões, e não em salvar montadoras pouco competitivas, o governo deveria incentivar o transporte coletivo, especialmente meios de alta capacidade, como trens, metrôs, bondes e ônibus. Usar a pauta verde para dar mais subsídios a montadoras em apuros parece apenas mais uma jogada de marketing.

Liberação de recursos do FMI é primeira vitória substantiva de Milei

O Globo

Presidente argentino ganha confiança na economia, mas demonstra inclinação autoritária na política

Ao completar pouco mais de um mês de governo, o presidente argentino, Javier Milei, obteve sua primeira vitória crítica no front econômico. O Fundo Monetário Internacional (FMI) autorizou o acesso da Argentina a uma linha de crédito de US$ 4,7 bilhões. Sofrendo crônica escassez de dólares, o país não vinha cumprindo o acordo para saldar empréstimos de US$ 43 bilhões com o fundo. A decisão é um voto de confiança nos planos de ajuste fiscal anunciados em dezembro.

A quantia liberada pelo FMI inclui a antecipação de US$ 1,4 bilhão, mais US$ 3,3 bilhões presos desde novembro. Com parte desse dinheiro, a Argentina poderá fazer pagamentos a credores, inclusive ao próprio fundo (há um vencimento já no início de fevereiro). Não se trata de novo acordo. É uma tentativa de dar oxigênio ao governo nos primeiros meses. Depois de visitar Buenos Aires nesta semana, técnicos do FMI elogiaram a equipe econômica pela rapidez com que apresentou um pacote de políticas para restaurar a estabilidade. É fato. Já no discurso de posse, Milei fez um diagnóstico realista da situação econômica trágica herdada dos peronistas.

No campo político, porém, ele tem demonstrado menos lucidez. Antes do Natal, anunciou um pacote com mais de 300 medidas com o objetivo de desregulamentar diferentes segmentos da economia. Governos anteriores também lançaram mão de decretos, mas nenhum tão abrangente. Revogou leis de todo tipo (do aluguel à das estatais) e promoveu inúmeras modificações noutras (do Código Civil aos clubes de futebol). Logo na primeira semana do ano, a Justiça barrou o trecho que reformava as leis trabalhistas. Para os juízes, várias mudanças exigiam aprovação do Congresso.

Milei não ficou nisso. Uma semana depois do decretaço, enviou ao Parlamento uma proposta de legislação tão extensa que foi chamada de Lei Ônibus (omnibus em latim significa “para todos”). O texto prevê modificações no Código Penal, nas regras eleitorais, entre dezenas de outros pontos. Os trechos mais preocupantes restringem protestos e concedem ao presidente poder de aprovar medidas sem aval dos congressistas.

Governar a Argentina nunca foi fácil. Para um político de fora do peronismo, mais difícil ainda. Com a ajuda de sindicatos e movimentos populares, os peronistas raramente resistiram à tentação de usar a força das ruas para desestabilizar governos eleitos. A primeira greve geral de 2024 já está marcada para o final do mês. No caso de Milei, não ter maioria no Parlamento traz grande dificuldade.

Nada disso justifica os ímpetos autoritários. Tentar limitar a atuação de deputados e senadores, governar por decreto, ameaçar atropelar o Congresso com consultas populares ou impedir qualquer protesto nas ruas não condiz com as regras da democracia. A postura mais conciliatória de parlamentares da base de apoio do governo na negociação da Lei Ônibus na última semana traz esperança. Que a Argentina não se desvie do caminho democrático.

Vitória da autonomia

Folha de S. Paulo

Protegido de pressão política, BC traz inflação aos limites evitando sacrifícios

A taxa ligeiramente acima do esperado em dezembro nem de longe ofusca o sucesso do combate à inflação no primeiro grande teste do Banco Central autônomo no país.

O IPCA fechou o ano passado em 4,62%, retornando aos limites estipulados pela política monetária depois de estouros em 2021 (10,06%) e 2022 (5,79%). As cifras elevadas dos anos anteriores não refletem leniência com a alta dos preços.

Antes demonstram a flexibilidade do regime de metas de inflação —que, à diferença do que dizem críticos, não condena o país a seguir regras draconianas sem considerar as circunstâncias.

O BC não tentou cumprir a ferro e fogo as metas de 4% em 2021, 3,75% em 2022 e 3,25% no ano passado (com margem de 1,5 ponto percentual). Compreendeu-se que houve uma onda inflacionária global, resultante da recuperação econômica pós-pandemia de Covid-19.

Optou-se por um retorno gradual à normalidade —o que é menos simples do que pode parecer.
Há o risco, nessas ocasiões, de o gradualismo ser confundido com acomodação ante pressões políticas. O BC teve de ser convincente na comunicação e na ação.

Os juros começaram a subir em 2021 e chegaram a elevadíssimos 13,75% anuais em pleno ano eleitoral de 2022, enquanto Jair Bolsonaro (PL) promovia uma escalada de gastos públicos em busca de um novo mandato.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aprofundou a gastança e fez pressão contra a autonomia do BC, os juros e as metas de inflação. O petista, felizmente, não dispunha de força política para mudar as regras.

O Brasil usufrui de longo processo de fortalecimento institucional na política monetária, em especial após o Plano Real, de 1994. Há ritos para a definição das metas de inflação —a cargo, em última análise, do governo eleito— e dos juros, bem como a divulgação transparente dos motivos.

Desde 2021, os dirigentes do BC, indicados pelo Planalto e submetidos à aprovação do Senado, têm mandatos fixos e não coincidentes, de modo a evitar ingerência externa sobre suas decisões.

É evidente que nenhum arranjo do tipo está imune a erros e desvirtuamentos, mas a experiência brasileira e global inequivocamente favorece a fixação de normas estáveis e procedimentos técnicos para o controle da inflação, preservando a capacidade de influência de governantes e legisladores eleitos.

Um exemplo extremo, mas não único, do risco de sujeitar a gestão da moeda ao mero voluntarismo político se vê na vizinha Argentina e sua inflação de 211% em 2023. Lula, que deverá fazer neste ano a sua escolha para o comando do Banco Central, precisa abandonar o flerte com retrocessos.

Dengue em alta

Folha de S. Paulo

Recorde de mortes também tem relação com mudança climática, que exige adaptação

Dados recém-divulgados pelo Ministério da Saúde sobre a dengue confirmam o perigo sobre o qual especialistas e a Organização Mundial de Saúde alertavam: o número de mortes pela doença no ano passado foi o maior da série histórica iniciada em 2000.

As 1.094 vidas perdidas representam alta de 3,86% em comparação com 2022 e de 11% com 2015 —o terceiro ano com mais óbitos. Em 2001, foram só 43 mortes. Já o número de casos subiu 16,8% em relação a 2022; os 1.658.816 de 2023 só perdem para os 1.688.688 de 2015. No primeiro ano da série, foram pouco mais de 135 mil.

Essa tendência de alta tem aspectos multifatoriais. Um deles diz respeito ao fato de que há quatro sorotipos do vírus e que a imunidade é adquirida quando o indivíduo é contaminado por um deles, ficando ainda suscetível aos outros três.

O quarto sorotipo chegou ao Brasil em 2010 e foi naquele ano que o número de casos pela primeira vez chegou à casa de 1 milhão.

Há também fatores de longo prazo que sucessivos governos nas esferas federal, estadual e municipal têm negligenciado, como a infraestrutura precária do saneamento básico e a urbanização descontrolada a partir da derrubada de áreas verdes para construção de habitações irregulares.

A mudança climática causada pela emissão de gases de efeito estufa também piora a situação, com aumento das temperaturas, da duração das estações mais quentes do ano e das chuvas —condições ambientais favoráveis ao mosquito.

Essa conjuntura, aliada ao fenômeno El Niño, que aumenta a temperatura do oceano Pacífico, levou a OMS a emitir um alerta em janeiro do ano passado sobre a "ameaça pandêmica" da dengue e, em julho, outro sobre recorde de casos em 2023. Até mesmo regiões que historicamente não eram afetadas por casos autóctones, como Estados Unidos e Europa, agora são.

O Ministério da Saúde anunciou incorporação ao SUS da vacina japonesa Qdenga, aprovada para venda pela Anvisa em março de 2023, mas a autorização para uso no sistema público ficou presa até dezembro num labirinto burocrático.

No entanto o imunizante não deve servir como desculpa para que o poder público se exima de implementar medidas contínuas e de longo prazo que incrementem a infraestrutura sanitária e urbana e, principalmente, que se antecipem aos problemas gerados pela mudança climática.

Venda casada

O Estado de S. Paulo

Ao colocar Dino no STF e Lewandowski na Justiça, Lula deixa claro que o jogo político se dará no Supremo. Se é uma garantia de governabilidade, também é óbvia deformação do sistema

Atacada dupla de nomeações, consumada com a imagem do presidente Lula da Silva circundado por Flávio Dino e Ricardo Lewandowski no Palácio do Planalto, reafirma o movimento de aproximação entre o Executivo e o Judiciário como forma de sustentação da governabilidade. Pelas indicações casadas, pelo histórico de ambos e pelo discurso sem filtros de Lula, o gesto sela em definitivo aquilo que se avizinhava: uma aliança tática do governo com o Supremo Tribunal Federal (STF), o reforço da politização da Corte e sua consolidação como fiador de um novo arranjo institucional, no qual exerce papel crescente na arena política. Na cosmologia lulopetista, o sentido é o mesmo ao nomear como seu novo auxiliar um ex-integrante da Corte que deu sucessivas demonstrações de apreço e proteção jurídica ao próprio Lula e a muitos dos seus companheiros, e ao levar à instância máxima da Justiça um aliado de primeira hora, com perfil de notório saber político. A despeito dos desafios de ambos no estrito dever do cargo, aos dois reserva-se um papel inquestionável: ajudar Lula e seu governo.

De maneira otimista, pode-se dizer que essa ascensão do Judiciário significa uma reação inevitável do sistema de pesos e contrapesos da República, tisnado pela fragilização do Executivo diante de um Congresso hoje hostil, indócil e forte, e de uma base partidária de apoio ao governo frágil e fragmentada entre muitas e médias bancadas – elementos que criaram uma espécie de parlamentarismo bastardo, com poder gigantesco do Legislativo sobre o Orçamento e as agendas de interesse do Executivo. O mesmo presidencialismo de coalizão que manteve o funcionamento e o equilíbrio sistêmico durante os governos da Nova República colapsou com a crise de representação depois das manifestações de 2013. Os escândalos de corrupção e a Lava Jato completaram a crise e legitimaram a força do Judiciário nos anos seguintes.

Enquanto a independência do Executivo e do Legislativo se esvaía no mesmo compasso da força suprema do STF, a Corte sublinhava sua condição não apenas de guardiã da Constituição, como também de um tribunal penal político. Não sem excessos no protagonismo individual de seus ministros, com declarações políticas cada vez mais frequentes e desinibidas. Tudo isso resultou no que analistas vêm chamando de “judiciarismo de coalizão”. Em outras palavras, segundo essa tese, o regime presidencialista só funciona se o presidente tiver uma boa bancada no Supremo Tribunal Federal como parte do jogo político da governabilidade. É o que Lula vem fazendo.

O outro lado da moeda revela-se mais inquietante: a naturalidade espantosa com que o presidente demonstrou usar as nomeações e referir-se aos nomeados como parte desse jogo. Ou de admitir seu “sonho antigo”, palavras dele, de ter alguém com “cabeça política” na mais alta Corte do País.

Em sua fala, Lula exaltou a experiência política de Flávio Dino como sinônimo de sua competência futura na bancada lulista no STF, mandando às favas a própria tentativa do nomeado de se dissociar de tal papel, quando afirmou na sabatina no Senado que não seria influenciado pela sua carreira pública. Diz quem pode, acredita quem quer. Já de Lewandowski espera-se um pouco mais de equilíbrio e comedimento ao tratar dos temas de sua futura pasta, diferente da vocação midiática de Flávio Dino. Ele tem a confiança e o respeito dos seus ex-colegas do STF, respaldo no meio jurídico e, é inegável, uma enorme folha de serviços prestados à defesa de Lula e de outros réus petistas durante o calvário na Lava Jato. Do futuro ministro da Justiça, portanto, não se questiona a fidelidade ao novo chefe nem a capacidade de trazer-lhe dividendos políticos e institucionais junto à sua antiga casa.

No jogo de sobrevivência política, Lula ampliou seu cardápio de possibilidades de governabilidade para conter o Congresso, enquanto o STF aprofunda seu risco maior: ser visto cada vez mais com desconfiança, por imiscuir-se em demasia em questões políticas e partidárias. Maus presságios.

Tecnologia contra a democracia

O Estado de S. Paulo

A distorção da realidade por IA é o maior risco global no curto prazo, diz o Fórum Econômico Mundial. Governo e sociedade devem se preparar para lidar com inaudita ameaça à democracia

Lá se vão quase 20 anos desde que o cientista político Larry Diamond observou um movimento de enfraquecimento da democracia liberal mundo afora após um período de apogeu que vai desde o pós-guerra até o fim de ditaduras na América Latina, no Leste Europeu e em alguns países da África e da Ásia. O professor da Universidade Stanford chegou a cunhar a expressão “recessão democrática” para descrever a queda do número de cidadãos governados por democratas e a perda de qualidade da democracia nos países que, mesmo de forma claudicante, ainda mantinham hígidos alguns de seus atributos.

Passado todo esse tempo, nada indica um refluxo do movimento liberticida, ao contrário. O mesmo desenvolvimento tecnológico que tanto tem beneficiado a humanidade ao criar soluções inovadoras para problemas complexos e eliminar barreiras de toda sorte entre indivíduos e empresas, por outro lado, tem imposto desafios inauditos à democracia. Alguns destes ainda mais ameaçadores, como é o caso da fabricação da “realidade” por inteligência artificial (IA).

A dimensão dessa ameaça foi dada recentemente pelo Fórum Econômico Mundial. De acordo com o Relatório de Riscos Globais 2024, publicado pela organização no dia 10 passado, as informações falsas ou distorcidas produzidas por IA representam nada menos que o “maior risco global no curto prazo”. Neste ano, cerca de 2 bilhões de eleitores irão às urnas em diversos países, inclusive os brasileiros, que escolherão seus futuros prefeitos e vereadores em outubro. Poucas coisas corroem tanto os pilares democráticos quanto o falseamento da realidade.

Por excelência, ciclos eleitorais são os momentos mais propícios à discussão de programas de governo, avaliação de políticas públicas e orientação dos destinos de uma sociedade. É o tempo em que os cidadãos decidem sobre os caminhos que desejam trilhar coletivamente. Não há, nunca houve e jamais haverá convergência total entre eles, mas o brilho da democracia se irradia com mais força justamente nessa concertação entre os divergentes em bases minimamente consensuais sobre a realidade em discussão. Quando se perde a capacidade de distinguir entre fatos e falsidades no debate público, não se pode mais falar em democracia. Ou, parafraseando o professor Eugênio Bucci, articulista deste jornal, não existe democracia sem verdade factual.

Num passado não tão longínquo, quando o alcance da desinformação era limitado por obstáculos materiais e geográficos, era mais simples adotar regras que, a um só tempo, resguardassem a liberdade de expressão dos cidadãos e garantissem a qualidade do debate público a partir da valorização da verdade dos fatos. Essa tarefa se tornou um desafio dos mais complexos para os democratas mundo afora, em particular pela proliferação do uso de IA por indivíduos e grupos tão poderosos quanto mal-intencionados, que se valem da manipulação da realidade para minar as liberdades democráticas, tidas como entraves aos seus interesses políticos e econômicos.

Se não se pode de nenhuma maneira cercear a liberdade de expressão, também não é possível permitir que meia dúzia de gigantes da tecnologia, que hoje monopolizam o debate público e têm literalmente o poder de distorcer a pauta política por meio de algoritmos que privilegiam a desinformação e o ódio, siga sem qualquer responsabilidade. A simples inação não é uma opção. Ora, não é por outra razão, convém lembrar, que campanhas eleitorais são regidas por legislação própria, com vistas a preservar o interesse público do mau exercício de direitos individuais.

Há poucos dias, a propósito, o Tribunal Superior Eleitoral publicou uma minuta de resolução sobre o uso de IA na campanha de 2024. Mas só a Justiça Eleitoral não basta. É preciso que os eleitores escolham fontes de informação confiáveis, deixando de lado os discursos mentirosos, por mais sedutores que pareçam. Como parte essencial que são do processo eleitoral, os cidadãos têm responsabilidade no cuidado diário com a democracia.

Inflação, enfim, volta à meta

O Estado de S. Paulo

Espera-se que o governo reconheça a contribuição do BC para a economia e que faça sua parte

Pela primeira vez desde 2020, a inflação voltou a ficar dentro da meta traçada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA) encerrou o ano em 4,62%, acima do centro da meta de 3,25%, mas dentro do limite superior, de 4,75%. O resultado, sem dúvida alguma positivo, mostra o sucesso do trabalho do Banco Central (BC). Mesmo sob intensas críticas do governo e do presidente Lula da Silva, a instituição soube conduzir a política monetária de forma a cumprir seu objetivo principal.

A inflação do mês de dezembro mostrou, no entanto, que o desafio de domar os preços é um esforço permanente. É verdade que o resultado foi bem melhor do que se esperava no início de 2023, quando poucos acreditavam que a meta seria cumprida. Certamente o recuo nos preços dos alimentos e das cotações de petróleo, o comportamento dos bens industriais e a valorização do câmbio contribuíram de maneira fundamental para facilitar a tarefa do BC ao longo do ano, mas a autonomia formal da instituição garantiu que o trabalho fosse realizado a despeito das pressões, que vieram, inclusive, de parte do mercado financeiro.

O IPCA de dezembro avançou 0,56%, na menor variação para o mês desde 2018. O resultado, porém, veio acima do teto das estimativas dos analistas ouvidos pelo Projeções Broadcast, que previam um aumento de 0,38% a 0,55%. O motivo foi o comportamento do grupo Alimentos e Bebidas, que subiu 1,11%, bem mais que o esperado para o mês, mas nenhum grupo registrou deflação no período.

A prévia da inflação, medida pelo IPCA-15, já havia assustado os analistas. Divulgado no fim de dezembro, o índice surpreendeu ao subir 0,40%, também acima das projeções do mercado. À época, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mencionou que a única fonte de preocupação era o preço das passagens aéreas.

Agora, ficou claro que há mais itens a terem o comportamento monitorado com cuidado. Os serviços, que pressionaram a inflação durante o ano todo, subiram 0,60% em dezembro e, no ano, acumularam alta de 6,22%, e embora tenham recuado nos últimos meses, permanecem em nível elevado. Os núcleos da inflação de dezembro, que excluem os itens mais voláteis, ficaram em uma média de 0,45% a 0,50%, o que significa uma variação entre 4,5% e 5% em termos anuais – muito acima da meta de 3% definida para 2024.

Há dúvidas sobre se o resultado do mês passado é pontual e típico de fim de ano ou se expressa uma tendência de aceleração mais preocupante. Porém, nada indica que o BC deverá afrouxar a taxa básica de juros mais rapidamente, e o mercado continua a esperar cortes de 0,50 ponto porcentual nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) a serem realizadas em janeiro e março.

Com o retorno da inflação à meta, espera-se que o governo saiba reconhecer a contribuição do BC para a economia. A inflação elevada funciona como um imposto que corrói o poder de compra dos mais pobres. Cabe ao governo, por meio de uma política fiscal mais responsável, também fazer a sua parte.

Falha na segurança e nos direitos humanos

Correio Braziliense

Relatório da Human Rights Watch reconhece que o Brasil avançou na proteção da Amazônia e nos direitos das mulheres, mas critica que mais critica o fato de que mais de 80% das vítimas da a letalidade policial serem os negros

A violência prejudica a imagem do Brasil, apesar de todos os esforços do governo federal, no ano passado, para tirar o país da condição de pária no cenário mundial. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio de viagens internacionais, dedicou-se a mostrar que as políticas públicas seguiriam novos rumos a partir de então. Mas, internamente, pouco avançou no combate à violência institucional, que se mistura, e, em alguns momentos, se confunde, com as ações de grupos criminosos que atuam nas grandes cidades e no interior das unidades da Federação. O resultado nada positivo reverberou tanto dentro quanto fora do país, como revelou, nesta quinta-feira, o relatório da organização não governamental Human Rights Watch (HRW), na avaliação do primeiro ano do terceiro mandato do governo petista.

A HRW reconhece que ocorreram avanços em 2023, com destaque para a proteção da Amazônia e nos direitos das mulheres. Mas aponta como "falha" a crônica violência policial. Com base nos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, critica o fato de que mais de 80% das vítimas da letalidade policial serem negros, o que configura "inconsistência" em relação aos direitos humanos. O uso desproporcional da ação policial não é nenhuma novidade no país, sobretudo nas periferias das cidades, que abrigam pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, nas quais há uma hegemonia de pretos e pardos.

Diante desse quadro caótico, há vários governos estaduais que rechaçam o uso de câmeras corporais nos policiais — até agora, só sete estados adotaram o equipamento. A rejeição à tecnologia é ruim para os agentes bem como para os cidadãos, pois há uma perda de provas que favoreceriam os policiais bem como as pessoas por eles abordadas, assegurando ao poder público, em caso de excesso de uso da força policial, evidências incontestes para aplicar punições para depuração das corporações. Em situação contrária, haveria provas para a Justiça punir os infratores. A polêmica em torno do tema é o negacionismo dos benefícios que os avanços da tecnologia propiciam para aprimoramento das políticas públicas.

A partir de fevereiro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública estará sob comando do ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski. Ele antecipou que manterá a prioridade dada à segurança pública, que exige forte combate ao crime organizado, na linha da asfixia financeira dos grupos, do uso da inteligência do Estado para chegar aos líderes das facções que atuam no tráfico de drogas e armas, e dos bandos de milicianos. Esses grupos disputam o domínio do território nacional com as autoridades de Estado. Eles contam, ainda, com indivíduos infiltrados na organicidade das instituições públicas para os seus atos criminosos.

Além de desmontar as organizações criminosas, é imprescindível depurar e reeducar as forças de segurança pública, seja por uma questão de justiça, seja em defesa dos direitos humanos. Pelos mesmos motivos, emerge a urgência de rever o sistema penitenciário brasileiro, com a segunda maior população carcerária do planeta, espaço onde o Estado está ausente e é berço do nascimento das facções criminosas. Imprescindível, portanto, fortalecer o diálogo com governadores e prefeitos, respeitada a pluralidade de ideologias políticas, para derrotar o crime organizado, cujas ações tornam o Brasil um país de alta periculosidade. A paz se constrói com a união de todos, mesmo na diversidade.

 

 

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