sábado, 10 de fevereiro de 2024

Carlos Alberto Sardenberg - Um baita equívoco

O Globo

Bolsonaro não poderia ter sido mais sincero quando disse que a eleição de um deputado do baixo clero, desprezado, só pode ter sido um engano

Dia desses eu estava num hospital em São Paulo, para exames. Na sala de espera, já com as desagradáveis agulhas enterradas na veia e aquele uniforme de paciente, aproxima-se um senhor, na mesma condição, e me pergunta direto:

— Como vai o nosso Brasil?

Mal-humorado, falei qualquer coisa vaga e já ia voltando para o celular quando o cidadão, em voz já alterada, atacou:

— Como vocês da imprensa não percebem? Já estamos na ditadura. No comunismo!

De humor piorado, respondi:

— Ora, que besteira!

E mudei de sala, enquanto o cidadão ainda falava.

Estava num hospital privado, que atende bons (e caros) planos de saúde. O sujeito tinha recursos e certamente acompanhava os noticiários. Comentei com minha acompanhante:

— Como é possível? Era só o que faltava, Lula comunista.

Isso foi algumas semanas atrás, antes mesmo da operação sobre a Abin paralela. Pois, no vídeo conhecido ontem, ouvindo a fala de Bolsonaro, a coisa ficou mais clara. Como meu inoportuno vizinho de sala de espera, o ex-presidente acreditava mesmo que o Brasil estava sob a ameaça de tornar-se comunista com a eleição de Lula. E certamente ambos continuam acreditando nisso.

Na percepção descolada da realidade, o ex-presidente tem certeza de que foi roubado na eleição. A lógica desviada: se a maioria da população brasileira é cristã e se um cristão não pode ser esquerdista, muito menos comunista, então o Tribunal Superior Eleitoral fraudou o pleito. Bolsonaro teve 58.206.345 votos, 49,10%, no segundo turno. Será que todo esse pessoal pensa do mesmo modo?

Pelas pesquisas, sabemos que muitos votaram em Bolsonaro porque consideravam Lula a pior opção. Não por considerá-lo comunista, mas principalmente por causa da lembrança do desastre de Dilma, do petrolão e do mensalão. Mas pesquisas mostram também que o ex-presidente mantém apoio entre 35% e 40% do eleitorado, conforme as perguntas.

E, entretanto, Bolsonaro não poderia ter sido mais sincero quando, no vídeo, diz, com palavrões, que a eleição de um deputado do baixo clero, desprezado, só pode ter sido um engano. O que nos remete a outra questão: como tantos se equivocaram tanto? Não, não tenho a resposta. Apenas coloco a questão.

Quando fala em comunismo, Bolsonaro não está pensando na Coreia do Norte, mas na Venezuela. Ora, o regime de Maduro é uma ditadura de ladrões, que montam empresas-sinecuras e destroem o Estado. Houve grossa corrupção no Brasil. Foi apanhada, e todos ficaram sabendo porque não tem ditadura por aqui, e a imprensa livre contou e conta tudo. Por isso mesmo, não ajuda em nada para o país a defesa que Lula faz de Maduro. Também não ajuda o desmonte do sistema de combate à corrupção.

Isso certamente é alimento do bolsonarismo — e essa é questão essencial no quadro político e social do país. Haveria ditadura se o golpe bolsonarista tivesse dado certo. Hipótese impossível, convém ressaltar. Aquele bando de incompetentes conseguiu produzir o quebra-quebra de 8 de janeiro e, notável, deixar um rastro de provas. Minutas do golpe espalhadas por escritórios e celulares, vídeos e gravações de reuniões secretas, conversas de WhatsApp, fake news primárias.

Estariam guardando para a posteridade? Achariam que ainda poderiam dar o golpe? Julgavam-se imunes? Deu piada. Exército de Brancaleone foi a óbvia para os mais velhos.

Mas Bolsonaro e sua turma tiveram e têm apoio nas Forças Armadas, entre políticos e na elite brasileira. Paulo Guedes é um representante da elite financeira. E está no vídeo, traçando um sanduíche, mudo então e depois.

Houve chefes militares que não embarcaram no golpe — e isso foi essencial para que a coisa não avançasse. Mas houve outros que topavam aderir, desde que, disseram, Bolsonaro assinasse a ordem.

Bolsonaro esperava antes a adesão dos comparsas em comando militar. Um lado esperando o outro, ambos, vamos falar francamente, com medo de sair na frente. Ainda bem. Não haverá golpe.

A que ponto chegamos. Estamos celebrando isso?

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