sábado, 10 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Maioria no STF impõe retrocesso às relações trabalhistas

O Globo

Exigir ‘justificativa’ para demissão de funcionários concursados das estatais cria risco de judicialização

Em julgamento suspenso na quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o recurso de um grupo de funcionários demitidos do Banco do Brasil em 1997 que tentavam ser readmitidos. Mas a maioria dos ministros decidiu que a demissão, no caso de funcionários de estatais concursados — e contratados com base na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) —, só poderá ser realizada mediante justificativa. Será marcada nova sessão para o plenário formular uma tese geral definindo que tipo de justificativa seria aceitável. Independentemente da tese que seja adotada, é evidente o risco de judicialização, com ex-funcionários recorrendo de demissões que considerem injustas.

Com a decisão, o Supremo criou um novo tipo de demissão, apenas para funcionários concursados de estatais. O país vem há anos buscando o caminho da simplificação das normas trabalhistas, aumentando o espaço para entendimento entre patrão e empregado e adotando regras mais flexíveis para contratar e demitir, de modo a favorecer a geração de empregos. Passo fundamental nessa direção foi a reforma trabalhista de 2017, que desfez amarras sem que os trabalhadores abrissem mãos de direitos. Agora, a decisão dificultando a demissão de concursados em estatais representa um retrocesso. Com a reforma, houve redução no volume de ações trabalhistas. A maioria formada no STF tem o efeito oposto.

O voto vencedor, formulado pelo presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, foi seguido pelos ministros Edson Fachin, Cristiano Zanin, André Mendonça, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. O entendimento de que é necessário apresentar justificativa para a demissão, ainda que distinta da apresentada nas demissões por justa causa previstas na CLT, cria mais uma obrigação burocrática. Torna as estatais e empresas de economia mista, na gestão de recursos humanos, mais próximas de uma repartição pública que de uma corporação em mercado competitivo.

Derrotado, o relator do processo, ministro Alexandre de Moraes, entendeu em seu voto que não haveria necessidade de justificar a demissão. Como os funcionários concursados também são contratados pela CLT — que permite a demissão imotivada —, as regras não deveriam mudar apenas porque trabalham numa estatal. No entender de Moraes, a exigência de concurso numa estatal visa a garantir amplo acesso e evitar favorecimentos. Não tem relação com estabilidade no emprego, como nos postos da máquina pública. Não se pode, segundo ele, confundir a “porta da saída com a porta da entrada”. Os ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques foram os únicos a apoiar o relator. “É preciso muito cuidado para que, querendo fazer o bem, não acabemos por fazer o mal. Inclusive a essas empresas”, afirmou Gilmar.

Agora, os ministros terão de definir como será a figura de um empregado que pode ser demitido apenas mediante algum tipo de justificativa que não reproduza as regras da CLT. Segundo Barroso, autor da tese, a motivação da demissão “pode consistir em qualquer fundamento razoável, não exigindo que se enquadre nas hipóteses de justa causa da legislação trabalhista”. O próprio Moraes prevê aumento na judicialização: “Não haverá uma demissão não judicializada. Todas serão, alegando desvio de finalidade, mesmo que não haja”. Ainda há tempo, no exame da tese geral, para o plenário do STF aprofundar o debate.

Reeleição de Bukele é alerta sobre o risco de desprezar segurança pública

O Globo

Ditador de El Salvador que conteve violência suprimindo direitos civis lança sombra na América Latina

É comum na América Latina pobreza e miséria facilitarem a chegada ao poder de homens providenciais, os proverbiais “salvadores da pátria”. Nayib Bukele, reeleito presidente de El Salvador, se aproveitou da crise de segurança que desestabilizava o país e atemorizava a população. Um povo desesperado com anos de descaso no combate ao crime cedeu a seu discurso linha-dura. No poder, Bukele concentrou poderes ditatoriais e se tornou um autocrata com apoio popular.

Ele não é o primeiro a defender que se ignorem leis e a Constituição sob a justificativa falaciosa de que só assim é possível enfrentar o crime organizado. Mas é o primeiro a ir tão longe no continente. El Salvador chegou a ser o país mais violento do Hemisfério Sul, com 84,1 homicídios por 100 mil habitantes em 2016. No ano passado, último do primeiro mandato de Bukele, a taxa foi de 2,4, nível do Canadá.

Por detrás das estatísticas há um presidente que esmaga as instituições democráticas e prepara o terreno para se perpetuar no poder. Irônico, Bukele comenta que, com os 85% dos votos obtidos na reeleição e a conquista de 58 das 60 cadeiras da Assembleia Nacional, El Salvador realiza um feito inédito: ter um partido único com um sistema “totalmente democrático”. Trata-se, obviamente, de um absurdo.

Bukele governa com apoio em medidas de exceção. Em 2021, usou a maioria que detinha no Parlamento para intervir na Suprema Corte e garantir a candidatura à reeleição, que não era prevista na Constituição. Reduziu de 84 para 60 as cadeiras no Legislativo e de 262 para 44 os municípios. Com isso, sufocou partidos menores e facilitou o controle da Assembleia Nacional. A política autoritária de segurança está a serviço de seu projeto de poder.

Se não governasse em virtual estado de exceção, Bukele não conseguiria pôr em prática sua política de prisões em massa, sem inquéritos nem espaço para qualquer direito de defesa. Não há Estado de Direito em El Salvador. Desde 2022, quando houve uma onda de violência deflagrada por gangues, estima-se que o governo tenha prendido 75 mil pessoas, pouco mais de 1% da população. Sete mil foram soltos, e a maior parte dos demais superlota uma megaprisão para 40 mil detentos.

O sucesso político de Bukele projeta uma sombra na América Latina. Na Guatemala e no Equador, que também enfrentam o desafio de combater o narcotráfico, candidatos com o mesmo perfil de Bukele já tentaram se eleger. Seu modelo era adotado pelo ex-presidente das Filipinas Rodrigo Duterte, que legalizou execuções de traficantes por policiais.

Por atentar contra os direitos humanos e as liberdades civis, Bukele não serve de exemplo a nenhum país. Mas sua reeleição funciona como alerta para políticos de todos os países, inclusive o Brasil, sobre os riscos de desprezar a angústia da população com a violência. Ao tratar a segurança pública como questão secundária, qualquer governo torna a população mais propensa a se tornar refém de discursos populistas e autoritários.

Que se faça Justiça, não vingança

Folha de S. Paulo

Bolsonaro e seu séquito abusaram da irresponsabilidade; acusação cabe à Procuradoria, e o papel do Supremo é ser juiz imparcial

Ao que parece, chegará a hora em que integrantes do alto escalão durante a administração Jair Bolsonaro (PL), incluindo o ex-mandatário, terão de prestar contas à Justiça.

O presidente e seu séquito abusaram da irresponsabilidade. Se também cometeram crimes de lesa-democracia, é algo a ser decidido num quadro que precisará ser justo e regular, com amplo direito de defesa e o devido processo legal.

Por ora conhecem-se fatos preliminares de uma investigação, graves o bastante para justificar aprofundamento. Há indícios de que um círculo de autoridades civis e militares em torno de Bolsonaro tramou subverter a vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Segundo a Polícia Federal, debates sobre um decreto golpista —no molde da minuta achada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, fato revelado pela Folha— foram travados após o segundo turno pelo presidente da República, que teria ordenado supostas correções na proposta e, com ela, assediado as Forças Armadas.

A investigação confirma que o então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, se negou a abonar aventuras, mas lança dúvidas sobre as condutas de um então integrante do Alto Comando da força terrestre e do chefe da Marinha. São informações iniciais, ainda carentes de maior escrutínio.

O golpe não tinha como se consumar, dada a oposição da institucionalidade, incluindo o comando do Exército, e da sociedade a retrocessos autoritários, o que não exclui a hipótese de indivíduos inconformados com a derrota nas urnas terem urdido uma virada de mesa.

Para fins da aplicação da lei de defesa da democracia, sancionada por Bolsonaro em setembro de 2021, não é preciso desfechar o putsch; basta a tentativa de fazê-lo para o cometimento dos crimes de golpe de Estado e de abolição do Estado de Direito.

Seria precipitado e impróprio, nesta fase dos desdobramentos, concluir que o ex-presidente e os outros investigados incidiram nesses delitos. Os trabalhos policiais estão inconclusos, e o crivo incipiente da Procuradoria-Geral nem sequer produziu denúncia formal.

Seria, isso sim, o momento recomendável para dar cabo das heterodoxias nas apurações. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, além de condutor anômalo do inquérito e alvo frequente de ataques bolsonaristas, agora figura como uma das vítimas da suposta tentativa de golpe —sua prisão teria sido tramada.

O melhor é que a PGR assuma o papel de parte acusadora, e os 11 ministros do STF se recolham para a posição de julgadores imparciais de uma provável ação penal, ouvindo com equidistância os argumentos de acusação e defesa.

Clima europeu

Folha de S. Paulo

Protestos agrícolas podem ameaçar negociações e metas contra aquecimento

Outrora na vanguarda da adoção de medidas para conter a crise do clima, a União Europeia (UE) se avizinha de uma encruzilhada. A ambição verde arrisca arrefecer sob a pressão de tendências políticas.

A maior fatia da energia produzida na região é renovável (40,8%), como usinas eólicas e fotovoltaicas, seguida da nuclear (31,2%). Ou seja, 72% emite níveis desprezíveis de gases que causam o efeito estufa.

Outros 25% vêm de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural), principais emissores de carbono. Mas essa fatia sobe a 70,9% quando se computam as importações, como a do gás natural russo.

A média mundial de energia oriunda de combustíveis fósseis é de 80,3%. Na China, maior emissor de carbono, 82%; no Brasil, 50,8%.

A dificuldade de alguns setores da em substituir a parcela restante de não renováveis da UE por fontes limpas tem gerado resistência à transição, assim mostram os protestos explosivos de agricultores.

Reivindicam-se travas para preços de combustíveis e para exigências ambientais na produção.

O setor rural obteve vitória recente quando a Comissão Europeia divulgou o plano de cortar em 90% até 2040 suas emissões. A meta intermediária visa a descarbonização completa em 2050, como exigido pelo objetivo de conter o aquecimento no limite de 1,5ºC.

Combustíveis fósseis estão no fulcro das reduções. Mas o plano original da comissão era também cortar em 30% a geração de metano e compostos de nitrogênio, ligados à atividade agrícola. A medida, porém, acabou ficando de fora na tentativa de acalmar os ânimos.

O temor é que a revolta de um grupo propenso ao conservadorismo infle partidos e líderes da direita populista em eleições. Essa deriva já ajudou a eleger negacionistas como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei.

Com a possível volta de Trump ao à Casa Branca, uma reviravolta na UE alteraria o balanço de poder nas negociações sobre o clima. Não estancaria a marcha da descarbonização, mas poderia atrasá-la ainda mais—quando é de máxima urgência que se necessita hoje.

O envolvimento de militares na conspiração

O Estado de S. Paulo

Não foi por falta de aviso. Bolsonaro tentou contaminar os quartéis com o vírus do golpismo e conseguiu algum apoio. Felizmente, prevaleceram o juízo e o respeito à Constituição

Os frutos indesejáveis do excessivo e imprudente envolvimento de militares no governo de Jair Bolsonaro começam a aparecer de maneira clara e constrangedora. Investigações da Polícia Federal (PF) apontam que oficiais de alta patente, da ativa, estavam dispostos a atentar contra a soberania popular e manter Bolsonaro no poder.

Não foi por falta de aviso. Bolsonaro é elemento subversivo desde os tempos em que era dublê de sindicalista e militar. Inconformado com a democracia, fez da truculência e do desapreço pela República seus principais ativos eleitorais. Nos seus mais delirantes sonhos, pretendia, se lhe dessem a chance, estabelecer no País o regime sonhado pela linha dura da ditadura militar. Isso era público e notório. Ninguém pode se dizer enganado.

Bolsonaro pretendia arrastar as Forças Armadas para seu empreendimento autoritário. Tentou adonar-se do Exército, seja em palavras, seja em atitudes. Não hesitou em trocar a cúpula militar para ter ali oficiais que fossem fiéis a ele, e não ao País. Como se vê agora, não conseguiu, mas o vírus da sedição já estava inoculado, e o Exército, em algumas ocasiões, preferiu a contemporização à imposição de disciplina – o caso do general Eduardo Pazuello, que deveria ter sido punido por fazer comício com Bolsonaro, mas não sofreu nem sequer uma advertência, é exemplar dessa hesitação. Além disso, alguns militares se prestaram ao vexaminoso papel de dar sustentação às teorias da conspiração assacadas contra o sistema eleitoral.

De todo modo, ao que tudo indica, o bolsonarismo não conseguiu seu intento manifesto de dobrar os comandantes militares – somente o almirante Almir Garnier Santos, comandante da Marinha, teria se colocado a favor do golpe, segundo as investigações. Já os chefes militares que se recusaram a participar foram alvo de campanha de ódio, inclusive contra seus familiares, deflagrada pelos militares bolsonaristas para desgastá-los nos quartéis.

Do conjunto de evidências coletadas pela PF, depreende-se que o golpe para impedir a posse do presidente Lula da Silva também não foi adiante porque havia ímpeto, mas não havia “uma noção clara de como fazê-lo”, como corretamente salientou William Waack em sua coluna neste jornal. Isso em nada atenua a gravidade do material reunido pela PF dando conta de que no centro nevrálgico da tentativa de golpe estiveram militares graduados, inclusive no comando de tropas. Sabe-se lá em nome de que projeto de poder, mobilizaram-se para tentar manter na Presidência um mau militar, e devem ser exemplarmente punidos por isso.

Como se viu, uma plêiade de generais que até pouco tempo atrás tinham assento no Alto Comando do Exército é suspeita de envolvimento na intentona. Portanto, mais do que a conclusão das investigações da PF e a punição exemplar de todos eles na medida de suas responsabilidades, às Forças Armadas, em particular ao Exército, impõe-se urgentemente um profundo reexame da formação de seus quadros. Não há mais sombra de dúvida de que o pensamento golpista grassa em alguns setores das Forças Armadas, e isso só pode ser enfrentado com uma educação orientada pela atuação dos militares dentro das estritas balizas do Estado Democrático de Direito. Nada além.

Ao fim e ao cabo, os golpistas tornaram-se vozes estridentes, porém isoladas, na caserna. Prevaleceu o respeito à Constituição. Mas isso não pode depender, por óbvio, do ânimo dos militares que estejam em posição de comando num dado momento. Uma operação inédita da PF chegou a militares de alta patente por uma tentativa de sedição. Num país sério como o Brasil pretende ser, um fato gravíssimo como esse deve ser o ponto de partida para uma reflexão sobre a contaminação política da caserna. O episódio tem de servir para que se reafirme que os militares não são os tutores da República e que devem manter distância da política, própria da vida civil, atuando nos estreitos limites que a Constituição lhes impõe.

O dano colateral da canetada de Toffoli

O Estado de S. Paulo

Festejada por petistas como prova dos desmandos da Lava Jato, revisão dos acordos de leniência pelo ministro do STF preocupa o governo, que conta com os bilhões decorrentes das multas

Do ponto de vista político, a revisão dos acordos de leniência firmados no âmbito da Lava Jato, mas não só, atende diretamente aos interesses do PT e, em particular, do presidente Lula da Silva. Conduzida com denodo pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, essa revisão, que chega às raias do apagamento histórico, alimenta a parolagem de que o festim da corrupção que azeitou as negociações, por assim dizer, entre grandes empresários e governos petistas simplesmente não existiu. Em cima de um palanque, há poucos dias, Lula chegou a dizer que a Lava Jato teria sido uma conspiração urdida entre setores do Ministério Público Federal e o governo dos Estados Unidos a fim de acabar com o setor de óleo e gás no País. O presidente poderia ter incluído os Illuminati nessa trama que não faria a menor diferença.

Este mesmo Lula, entretanto, manifesta preocupação com as implicações econômicas da revisão dos acordos de leniência ora em curso no STF. No dia 6 passado, a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou à Corte um parecer no qual argumenta que a decisão do ministro Dias Toffoli de suspender o pagamento da multa acordada entre a Odebrecht e a força-tarefa da Lava Jato não tem ligação com as contrapartidas financeiras assumidas entre a empreiteira e o governo federal em 2018. No parecer enviado ao STF, a AGU sustenta que “a suspensão das obrigações pecuniárias alcançou tão somente aquelas decorrentes do acordo de leniência celebrado entre a empresa Novonor S.A. (antiga Odebrecht) e o Ministério Público Federal”.

De fato, a decisão exarada pelo ministro Dias Toffoli no dia 31 de janeiro determina claramente a suspensão de “todas as obrigações pecuniárias decorrentes do acordo de leniência entabulado entre a empresa Novonor S.A. e o Ministério Público Federal”, sem citar as multas previstas em acordos firmados com outros órgãos, como a própria AGU ou a Controladoria-Geral da União (CGU), como passíveis de suspensão. Resta evidente, portanto, que o governo Lula da Silva se esforça para seguir contando com o recebimento dos mais de R$ 6 bilhões (em valores corrigidos) assumidos pela Odebrecht, dos quais R$ 172,7 milhões, como apontou o jornal Valor, já foram pagos.

À luz do esforço da equipe econômica do governo para equilibrar as contas públicas e entregar um déficit zero neste ano, faz todo sentido exercer pressão sobre o STF para que o fluxo financeiro oriundo dos acordos de leniência não seja interrompido. Registre-se que a Odebrecht e o Grupo J&F foram só as primeiras empresas contempladas pela generosidade da caneta do ministro Dias Toffoli. Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Braskem, UTC e OAS estão na fila. A AGU estima em seu parecer que, caso essas empresas também tenham suas multas suspensas, o impacto para os cofres públicos será de R$ 8,2 bilhões.

Cabe lembrar, ainda, que o procurador-geral da República, Paulo Gonet, salientou no recurso que interpôs para reverter a suspensão da multa do Grupo J&F, de mais de R$ 10 bilhões, que a interrupção dos pagamentos poderá causar um “vultoso prejuízo” nos fundos de pensão de empresas estatais, principalmente no da Caixa Econômica Federal (Funcef) e da Petrobras (Petros). A cada um desses fundos caberia receber algo em torno de R$ 2 bilhões do total da multa do Grupo J&F. No entendimento do procurador-geral, as decisões de Toffoli, no limite, representam “grave risco ao sistema previdenciário complementar brasileiro”.

Como se vê, está posto um evidente contrassenso. Ou bem os acordos de leniência foram firmados pelos representantes das empresas sob “chantagem institucional” e, portanto, devem ser integralmente anulados, ou não houve coação alguma, devendo todos os pactos serem mantidos na integralidade de seus termos. O que não é possível, ao menos para os que ainda nutrem apreço pelo Estado Democrático de Direito, é acordos firmados sob a supervisão do Poder Judiciário serem considerados ilegais para suspender os ônus que recaem sobre uma das partes signatárias e legais para manter seus bônus, a prejuízo do erário.

Inaceitável erro do MEC

O Estado de S. Paulo

Ao falhar em seleção para universidades públicas, Ministério castiga estudantes

Não bastassem os prejuízos causados a estudantes pelo recente adiamento da tramitação da reforma do chamado Novo Ensino Médio, o Ministério da Educação (MEC) conseguiu iniciar o ano provocando danos consideráveis a milhares de alunos, por falhas no Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Dentro de um universo de 2 milhões de estudantes de todo o Brasil, cerca de 260 mil vagas para universidades públicas são definidas pelo Sisu com base nas notas do Enem, o que reforça sua importância. Mas na semana passada o País assistiu a uma sequência inaceitável de erros, que resultaram em frustração e indignação em quem já enfrenta um período de ansiedade, tensão e temor.

O MEC divulgou a lista com os resultados da seleção na manhã do dia 30 de janeiro. A lista foi retirada do ar 25 minutos depois, sem nenhuma explicação. Somente à noite o Ministério informou que “identificou problemas técnicos no sistema e reiniciou os protocolos de homologação”. Sem fazer menção à primeira lista divulgada, adiou para o dia seguinte a apresentação do resultado. Quando vieram à luz as prometidas notas definitivas, a relação exibia resultados diferentes dos que haviam sido divulgados no dia anterior. E mais: demoraria até sexta-feira para que o Ministério se manifestasse novamente, e o fez por meio de uma nota lacônica, segundo a qual houve “uma divulgação indevida de resultados provisórios, ainda não homologados, durante 25 minutos da manhã do dia 30 de janeiro”. A nota informava ainda que a ocorrência seria “rigorosamente apurada”.

Soube-se depois que a lista errada excluía dos cálculos a regra prevista na nova Lei de Cotas. A nova legislação alterou a distribuição de vagas por cotas no

Sisu e, com ela, candidatos pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência passaram a concorrer às vagas reservadas aos cotistas apenas se não alcançarem, inicialmente, as notas para a concorrência mais ampla, que inclui os não cotistas. A mudança pretende ampliar o acesso de estudantes cotistas às universidades.

O lapso de tempo – e de competência – entre a primeira lista da terça-feira e a nota divulgada pelo MEC na sexta-feira foi suficiente para ampliar o número de casos vexatórios. Houve relatos de estudantes que haviam raspado o cabelo, outros que pintaram o rosto, mais alguns que iniciaram a comemoração na família ou entre amigos, além de choro de alegria mais tarde substituído pelo de tristeza e frustração. Somente depois, em entrevista, o ministro Camilo Santana finalmente entrou publicamente no assunto para reafirmar o início da apuração do que aconteceu, a fim de saber se o erro partiu da área técnica ou da empresa que presta serviço ao MEC.

Não cabe transferência de culpa a terceiros, como o ministro já tentara fazer no ano passado, quando pelo menos 50 mil candidatos foram alocados para fazer prova a mais de 30 quilômetros de casa, contrariando o determinado pelo edital do Enem – ou quando, mais tarde, questões vazaram antes do horário de divulgação. A despeito de outros responsáveis a serem identificados na sindicância anunciada, em todos os casos é do MEC a primeira e imediata responsabilidade.

Preservar as Forças Armadas

Correio Braziliense

Como instituição, Marinha, Exército e Aeronáutica mantiveram-se leais à Constituição de 1988. É o que mais importa para o Estado de direito democrático

É grande o constrangimento entre os militares das três Forças, mas principalmente do Exército, diante do envolvimento de generais quatro estrelas e oficiais que lhe eram subalternos na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. O vídeo que registra a reunião ministerial comandada pelo presidente Jair Bolsonaro, em julho de 2020, encontrado no computador do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, é um espanto, seja pelo conteúdo político golpista das intervenções de Bolsonaro e seus generais, seja pela linguagem utilizada.

Particularmente constrangedora é a referência feita pelo então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, aos então comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica: "Senhor presidente, eu estou realizando reuniões com os comandantes de Forças quase que semanalmente. Esse cenário nós estudamos, nós trabalhamos, nós temos reuniões pela frente decisivas pra gente ver o que pode ser feito, que ações poderão ser tomadas para que a gente possa ter transparência, segurança, condições de auditoria e que as eleições transcorram da forma como a gente sonha, e o senhor, com o que a gente vê, no dia a dia, tenhamos o êxito de reelegê-lo. Esse é o desejo de todos nós".

Havia uma clara estratégia de intervenção militar no processo eleitoral, cuja condução constitucionalmente cabe ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e de "virada de mesa" em caso de derrota para manter o presidente Jair Bolsonaro no poder. Mas não havia correlação de forças externa e interna para que o golpe fosse bem-sucedido. Seria um banho de sangue fadado ao fracasso, mais cedo ou mais tarde. Além disso, houve forte resistência no Alto Comando das Forças Armadas, inclusive, da Marinha, em razão da maioria legalista.

Sabe-se que o então comandante do Exército, general Freire Gomes, foi muito pressionado, mas resistiu aos apelos para que apoiasse um golpe de Estado antes ou depois das eleições. O comandante da Aeronáutica, brigadeiro-do-ar Carlos de Almeida Baptista Junior, se opôs fortemente ao golpismo. Em troca de mensagens por celular com Mauro Cid, o primeiro foi chamado de "cagão" e o segundo, de "traidor da pátria", pelo ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, general Braga Neto, que foi candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro. Somente o comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, apoiaria um golpe de Estado, segundo disse, mas caso recebesse ordens diretas de Bolsonaro, o que não aconteceu.

Havia outros militares envolvidos na trama golpista, alguns até estão presos preventivamente, mas o fato concreto é que não conseguiram o apoio de suas respectivas instituições. As Forças Armadas não apoiaram o golpe, esse é o divisor de águas a ser levado em conta pela sociedade, os meios de comunicação, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Sim, houve omissão e tolerância diante das manifestações golpistas, principalmente em relação aos acampamentos à frente dos quartéis, mas há que se considerar que havia uma cadeia de comando e a ordem deveria partir do Ministério da Defesa.

Os que protagonizaram as cenas de vandalismo deploráveis em 8 de janeiro, ao invadirem o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), e que, agora, estão sendo condenados, foram incentivados, organizados e até financiados por ordem da cúpula golpista, que está sendo investigada pela Polícia Federal (PF). Entretanto, há que se evitar prisões preventivas e esculachos. O inquérito não pode se transformar numa crise militar; e o julgamento dos golpistas, um catalisador da crise institucional. É imprescindível que o inquérito siga rigorosamente os ritos do devido processo legal e respeite o princípio da presunção de inocência, de todos os suspeitos.

No âmbito das casernas, as Forças Armadas vão superar o golpismo com base na hierarquia, na disciplina, no espírito democrático e patriótico da maioria de seus oficiais generais. O regimento disciplinar e o "almanaque" das Forças Armadas, que estabelecem as regras de promoção por antiguidade e merecimento, são instrumentos eficazes para isso. Como instituição, Marinha, Exército e Aeronáutica mantiveram-se leais à Constituição de 1988. É o que mais importa para o Estado de direito democrático.

Nenhum comentário: