Valor Econômico
No campo jurídico, é possível que a defesa do
ex-presidente argumente sobre a diferença técnica entre tentativa de crime, ato
preparatório para um delito e a sua cogitação
Partindo do pressuposto de que o general
Marco Antonio Freire Gomes, ex-comandante do Exército no fim da gestão do
ex-presidente Jair Bolsonaro, confirmou em seu longo depoimento a discussão de
uma minuta de golpe de Estado com o próprio chefe, a situação jurídica de
Bolsonaro se complica, mas com zonas de incerteza. No campo político, os
militares saem da armadilha em que estavam colocados.
Em relação ao campo jurídico, é possível que
a defesa do ex-presidente tente levantar uma discussão sobre a diferença
técnica entre tentativa de crime, ato preparatório para um delito e a sua
simples cogitação.
Um presidente da República chamar os comandantes das três Forças para discutir uma minuta que prevê a abolição violenta do Estado Democrático de Direito configura em si ilícito? O senso comum diz que sim, o mundo político pode entender que sim, mas uma discussão no Judiciário deve ser colocada.
A princípio, atos preparatórios não são
puníveis. O Código Penal diz que só são consideradas tentativas de crime quando
o delito não se consuma por fatores alheios à vontade dos agentes. A reunião da
minuta do golpe foi no início de dezembro e pressupunha um autogolpe,
disfarçado de decretação de estado de defesa ou de sítio.
Se Bolsonaro deu a ordem e ela por algum
motivo não foi cumprida, a caracterização de tentativa de crime fica bastante
configurada. Mas se ele desistiu diante da reação contrária do comandante do
Exército, há mais margem para argumentação no tribunal.
A Lei 14.197, de 2021, que revogou a Lei de
Segurança Nacional, criminaliza o ato de “tentar depor, por meio de violência
ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Neste ponto, reduziu o
alcance do texto da época do regime militar: “Tentar impedir, com emprego de
violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União”.
Não há clareza em relação aos atos
preparatórios nestes dispositivos legais. Na Lei Antiterrorismo, de 2016, aí
sim está claríssimo que a conspiração em si já é crime. Financiar gente para
depredar prédios públicos, por exemplo, é crime mesmo que a depredação não
chegue a se concretizar.
No campo político, o principal impacto do
depoimento do general está nas próprias Forças Armadas. Pode ter representado o
isolamento definitivo da ala golpista do Exército e abre a porta para que os
militares voltem ao status quo que vigorava até a ascensão do bolsonarismo,
qual seja o de ficarem mudos e inertes em relação ao jogo entre os Poderes.
Um gesto que talvez consolide este mutismo é
a recíproca, se o governo desistir de alterar as normas que permitem a um
integrante das Forças Armadas ocuparem cargos civis e disputarem mandatos
eletivos.
A anistia de 1979 já havia criado as balizas
para a estratégia do silêncio. Pressupunha os militares abrirem mão de projetos
hegemônicos no futuro, em troca de não serem incomodados pelo passado. Quando o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva sinaliza que o legado do golpe de 1964 não
deve ser pauta, é essa estratégia que se revigora. Neste sentido, um depoimento
de Freire Gomes alicerça a volta ao padrão pré-Bolsonaro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário