quarta-feira, 6 de março de 2024

César Felício - Depoimento pode não bastar para condenar ex-presidente

Valor Econômico

No campo jurídico, é possível que a defesa do ex-presidente argumente sobre a diferença técnica entre tentativa de crime, ato preparatório para um delito e a sua cogitação

Partindo do pressuposto de que o general Marco Antonio Freire Gomes, ex-comandante do Exército no fim da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, confirmou em seu longo depoimento a discussão de uma minuta de golpe de Estado com o próprio chefe, a situação jurídica de Bolsonaro se complica, mas com zonas de incerteza. No campo político, os militares saem da armadilha em que estavam colocados.

Em relação ao campo jurídico, é possível que a defesa do ex-presidente tente levantar uma discussão sobre a diferença técnica entre tentativa de crime, ato preparatório para um delito e a sua simples cogitação.

Um presidente da República chamar os comandantes das três Forças para discutir uma minuta que prevê a abolição violenta do Estado Democrático de Direito configura em si ilícito? O senso comum diz que sim, o mundo político pode entender que sim, mas uma discussão no Judiciário deve ser colocada.

A princípio, atos preparatórios não são puníveis. O Código Penal diz que só são consideradas tentativas de crime quando o delito não se consuma por fatores alheios à vontade dos agentes. A reunião da minuta do golpe foi no início de dezembro e pressupunha um autogolpe, disfarçado de decretação de estado de defesa ou de sítio.

Se Bolsonaro deu a ordem e ela por algum motivo não foi cumprida, a caracterização de tentativa de crime fica bastante configurada. Mas se ele desistiu diante da reação contrária do comandante do Exército, há mais margem para argumentação no tribunal.

A Lei 14.197, de 2021, que revogou a Lei de Segurança Nacional, criminaliza o ato de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Neste ponto, reduziu o alcance do texto da época do regime militar: “Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União”.

Não há clareza em relação aos atos preparatórios nestes dispositivos legais. Na Lei Antiterrorismo, de 2016, aí sim está claríssimo que a conspiração em si já é crime. Financiar gente para depredar prédios públicos, por exemplo, é crime mesmo que a depredação não chegue a se concretizar.

No campo político, o principal impacto do depoimento do general está nas próprias Forças Armadas. Pode ter representado o isolamento definitivo da ala golpista do Exército e abre a porta para que os militares voltem ao status quo que vigorava até a ascensão do bolsonarismo, qual seja o de ficarem mudos e inertes em relação ao jogo entre os Poderes.

Um gesto que talvez consolide este mutismo é a recíproca, se o governo desistir de alterar as normas que permitem a um integrante das Forças Armadas ocuparem cargos civis e disputarem mandatos eletivos.

A anistia de 1979 já havia criado as balizas para a estratégia do silêncio. Pressupunha os militares abrirem mão de projetos hegemônicos no futuro, em troca de não serem incomodados pelo passado. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sinaliza que o legado do golpe de 1964 não deve ser pauta, é essa estratégia que se revigora. Neste sentido, um depoimento de Freire Gomes alicerça a volta ao padrão pré-Bolsonaro.

 

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