Folha de S. Paulo
As massas acordaram para a experiência
política, mas sob formas perversas, captadas pela extrema direita
Um estudo revela que 13
milhões de brasileiros deixaram de passar fome em 2023, o custo
alto dos alimentos desacelerou, a economia obtém ganhos, a vida democrática
supera os sobressaltos, mas decresce a avaliação positiva de Lula (PT). Algo semelhante
ocorre nos EUA,
onde esses fatores estão normalizados, porém, cresce nas preferências
eleitorais a figura de Trump,
um delinquente polimorfo. Na Argentina,
60% da população esfomeia, mas é elevado
o índice de aprovação de Milei. Na alucinação, osso é filé.
São anomalias. Começa a ficar claro que elas reabrem de algum modo a noção de política. Por menos práticos que sejam pronunciamentos políticos de filósofos, vale evocar as posições públicas de Jurgen Habermas nos anos 1980 contra o neoconservadorismo irracionalista na Alemanha, assim como a sua especulação de que "se tivesse de apostar qual o próximo país que se tornaria fascista, minha aposta poderia ser: os EUA". Sem bola de cristal, anteviu Trump.
Entre nós, é recorrente a análise de que
vivemos numa sociedade de classes com uma esquerda atrasada. Dessa redundância
acaciana nada se conclui sobre a subjetividade política dos brasileiros nem
sobre a dissonância entre seus comportamentos sociais e a infraestrutura
socioeconômica. As massas acordaram para a experiência política, mas sob formas
perversas, captadas pela
extrema direita, a saber, setor financeiro, agronegócio e coorte de
reacionários religiosos.
Acontece que a política parece ter-se
deslocado da base normativa das formas democráticas para preocupações populares
como anticorrupção e
comunitarismo religioso. Da linguagem desses fatores está ausente não só a
esquerda, mas também a formação política (sindicalista, social-democrata) de
Lula. O que sai da boca do povo não aparece no radar de Brasília.
O fenômeno pertence ao neopopulismo global,
com núcleos organizadores regionais, que delegam tarefas. No ato de 25
de fevereiro, na Paulista, mesmo com maioria branca, terceira idade
e renda média, os 200 mil aderentes constituíam o estrato inferior de uma
divisão de classes nas incumbências visíveis, com as quais o núcleo já não se
compromete diretamente. Algo como a camada externa de uma cebola, que oculta
outras. Com o mesmo odor.
O decréscimo da popularidade de Lula é da
mesma natureza do sinal enviado pela presença de uma multidão daquele tamanho
ao redor de uma personagem trêfega e desconexa. Mas no fenômeno das anomalias
em pauta, desconexão é coerência: o abilolado que mete a mão no esgoto
extremista é o mesmo que depositará o voto na urna da ultradireita, outubro à
vista. Um índice resiliente da ideia antipolítica de nação sem democracia nem
justiça social: olho no retrovisor e borracha passada no futuro.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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