quarta-feira, 6 de março de 2024

Zeina Latif - Ouvidos moucos para o rombo da previdência

O Globo

O atual governo evita o tema e defende apenas o 'pente-fino' nos benefícios do INSS

A necessidade de uma nova reforma da Previdência voltou ao radar de especialistas. Vale lembrar que o Brasil gasta cerca de 12% do PIB com a Previdência (total), cifra observada em poucos países, mais ricos e mais velhos — na média da OCDE, a despesa é cerca de 8% do PIB.

A retórica oficial acerca da reforma de 2019 era grandiosa. Certamente foi um passo largo, mas naturalmente insuficiente.

Falava-se em “economizar” R$ 800 bilhões em dez anos. Não é bem assim. Tratava-se, na verdade, de medida para conter o crescimento de gastos previdenciários em um país que envelhece rapidamente. E, lamentavelmente, a reforma elevou a judicialização.

Quase R$30 bilhões de precatórios foram pagos em 2022 no regime geral do setor privado (RGPS) e R$ 57 bilhões em 2023 (impulsionado pela normalização e antecipação de despesas, após o represamento no governo Bolsonaro).

No nível federal, as despesas previdenciárias caíram para 9,7% do PIB em 2023 (RGPS, servidores e militares), ante 10,4% em 2019. No entanto, houve acréscimo de 0,32 ponto percentual em relação a 2022, o que reflete não apenas fatores pontuais, mas uma tendência altista na ausência de novos ajustes.

O crescimento no número de beneficiários do RGPS foi muito alto em 2022 (2,8%) e 2023 (3,4%), e ainda maior para beneficiários assistenciais (8,3% e 11,5%), destoando do padrão passado. Em que pese a redução da fila de solicitações pendentes, especialistas apontam que algumas mudanças podem ter aumentado os requerimentos ou mesmo brechas para eventuais fraudes.

Um outro aspecto é que a reforma evitou pontos sensíveis politicamente, demandando correções.

Um exemplo foi não ter incluído estados e municípios, estabelecendo apenas a necessidade de reforma posterior. Criou-se, assim, uma colcha de retalhos no tratamento dado ao funcionalismo, que deveria ser uniforme.

Pior, muitos entes ainda não reformaram sua Previdência — o critério utilizado para considerar a reforma feita é ter adotado ao menos 80% da regra federal. Entre os estados, são sete deles; entre as capitais, 15 não avançaram, o que inclui capitais de estados ricos; e entre os municípios, dos 2.092 com regime próprio, a maioria de 65,4% está em falta.

A reforma de 2019 também não mudou a idade mínima para trabalhadores rurais, aumentando a diferença em relação aos trabalhadores urbanos. A decisão carece de justificativa técnica, inclusive pela natureza similar de muitos empregos urbanos, apontam Fabio Giambiagi, Rogério Nagamine e Otávio Sidone. E a conta pesa: a receita no segmento cobriu menos de 5% dos gastos em 2023.

O déficit previdenciário rural atingiu R$177,3 bilhões em 2023, muito acima dos R$129 bilhões do segmento urbano, apesar de beneficiar cerca de um terço das pessoas no RGPS.

Outra política pública que demanda ajustes é o MEI — trabalhador autônomo que se legaliza como microempreendedor individual, contando com benefícios tributários e menor contribuição previdenciária.

A renúncia tributária atingiu R$5,2 bilhões em 2023. O número não é elevado, mas não revela o que mais preocupa: o forte aumento do gasto previdenciário contratado. Segundo Nagamine, o MEI representa 10% dos contribuintes da Previdência, mas responde por apenas 1% da arrecadação.

Isso para uma política pública mal focalizada nos mais pobres e que pouco entregou em termos de reduzir a informalidade de trabalhadores por conta própria.

A lista segue. As regras para militares continuam muito frouxas, resultando em um rombo da Previdência militar de R$49,7 bilhões em 2023, valor próximo dos R$54,8 bilhões do déficit do regime dos servidores civis (RPPS).

Há ainda regras especiais para a polícia militar e para professores, o que limita o espaço para o ajuste fiscal dos estados e, de quebra, prejudica a gestão pública pela falta de profissionais na ativa, devido à aposentadoria precoce.

O atual governo evita o tema e defende apenas o “pente-fino” nos benefícios do INSS. Enquanto isso, a política de correção real do salário mínimo pelo crescimento do PIB agrava o quadro. O aumento de R$ 1 no salário mínimo implica um aumento líquido de R$ 262,9 milhões no déficit do RGPS e de R$ 70,5 milhões nos benefícios assistenciais, segundo o Tesouro.

São escolhas incompatíveis com a gravidade do problema. O fardo para o próximo governo será bem pesado.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Não sabia que boia fria continuava aposentando com 55 e 60 anos respectivamente.