quarta-feira, 6 de março de 2024

Hélio Schwartsman - Proteção contra o legislador

Folha de S. Paulo

Existem níveis de intimidade que devem estar ao abrigo até da caneta dos parlamentares

Supremo Tribunal Federal retoma nesta quarta-feira (6) o julgamento da ação que pleiteia a descriminalização de drogas para uso pessoal. É quase certo que a corte acatará o pedido em relação à maconha (falta apenas um voto). Em reação, o Senado se prepara para votar uma PEC que torna crime a posse de qualquer quantidade de drogas.

A queixa dos parlamentares é que o Supremo, com esse tipo de decisão, estaria criando normas e, portanto, usurpando prerrogativas do Legislativo. Minha leitura é diferente. Alguém precisa evitar que o Parlamento usurpe prerrogativas do cidadão —e esse alguém só pode ser o Judiciário. Existem níveis de privacidade e de intimidade que devem estar ao abrigo até do legislador. "Sobre si mesmo, o seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano", escreveu John Stuart Mill.

Até pouco tempo atrás, vigiam leis que proibiam a blasfêmia, o suicídio, o sexo entre pessoas não casadas e a homossexualidade, para dar alguns exemplos. Depois da emergência do consenso liberal iluminista, a partir do século 18, essas normas foram caindo uma a uma. E por boas razões. Como cada um se dirige a Deus e faz sexo consensual são questões que dizem respeito apenas aos envolvidos. O Estado até tem um interesse legítimo em reduzir os suicídios, mas ameaçar pôr o suicida na cadeia é apenas dar-lhe mais uma razão para querer deixar esta vida.

Por aqui, permanecem proibidos o aborto e o uso de drogas —comportamentos que já deixaram de ser criminalizados na mais liberal Europa ocidental. A França, aliás, acaba de inscrever o direito ao aborto em sua Constituição. O próximo item da lista é a eutanásia, que já foi legalizada e regulamentada em pouco mais de meia dúzia de países.

A menos que ocorra um grande retrocesso civilizacional, um dia o cidadão brasileiro gozará das mesmas liberdades dos cidadãos europeus. Se depender do voto popular, uns 200 anos; se do STF, acho que dá para fazer em 50.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Se proibir resolvesse seria ótimo,o problema é que não resolve,a droga está em todo lugar,ela está no meio de nós.