Folha de S. Paulo
Esse olfato crítico ancora numa paisagem
política que relega os mais pobres a guetos desemparados
"Há algo de podre no reino da Dinamarca". A célebre frase de Marcellus (em "Hamlet", de Shakespeare) não conota nenhuma sensação física, mas moral, relativa a um mal oculto e manifestado em homicídios e traições. É o tempo de incubação da violência, de cuja regra maléfica se alimentam feras à espreita de vítimas. Há algo de podre no Estado brasileiro, agora perceptível de forma aguda no Rio de Janeiro, no episódio do assassinato de Marielle, em que os fios da meada criminosa, separados na aparência, se entrelaçam.
Esse odor já feria narinas sensíveis depois
do crime, quando em palanque
público se quebrou uma placa de rua que homenageava a vereadora.
Como num pesadelo delirante, pessoas distantes da materialidade da execução,
exultavam em pisotear a memória da morta. Um ato tão torpe quanto a motivação
do atentado. Mas elegeu deputados e um governador de estado. Se alguma
explicação racional para o crime se obtém com a prisão dos mandantes, a
anomalia da placa permanece, para além da razão, como puro sintoma de
apodrecimento.
Esse olfato crítico ancora numa paisagem
política que relega os mais pobres a guetos desemparados. Como formigas que
convivem com pulgões para torná-los reservas de proteínas, as classes
dirigentes segregam pobres e pretos, rareando a presença do Estado e
confinando-os a formas marginais de poder. Acontece no Rio, também em São
Paulo, onde atualmente a polícia tem licença para matar.
Por perversa simbiose, essa marginalidade
pactua com dispositivos oficiais de controle da população, como administrações
e polícia, encarregadas de impostos e penalizações. Bicheiros,
traficantes e milicianos transformam o pacto em extorsão,
constituindo um tipo de poder capaz de competir pelo domínio territorial e pela
oferta de serviços na cidade.
Não à toa, o ex-presidente, em plena febre do
poder, disse que não renunciaria à indicação de um superintendente da Polícia
Federal no Rio. Atraído pelo odor, claro, mas moldado pelas características
vantajosas do estado aberto à ampliação como reduto da ultradireita. Um bolo de
padaria confeitado com leite condensado e sobrevoado por moscas varejeiras.
"Toda família tem uma hora em que começa
a apodrecer", descortina o espírito penetrante de Nelson Rodrigues (em
"Flor de Obsessão"). A boutade retórica enseja um paralelo realista
com o Estado. Recentes governadores cariocas pareciam inspirar-se em Bokassa, o
esdrúxulo e corrupto imperador da República Centro-Africana: um deles, sem
pudor, importou por 100 mil reais um vaso sanitário polonês que aquece as
partes pudendas. À sua sombra, expandiu-se e se entranhou nas instituições a cultura
do crime. Esse pútrido aparelho burocrático, carta branca
para a morte de Marielle, continua corrompendo e matando.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor,
entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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