Inchaço do cadastro distorce Bolsa Família
O Globo
De 22,3 milhões de famílias registradas como
pobres, 6,6 milhões estavam acima da linha da pobreza, estima pesquisa
O Brasil se tornou referência mundial em
políticas de transferência de renda por identificar as famílias em situação de
risco e pagar os benefícios de forma direta, simples e rápida. Foi crucial a
criação, em 2001, do Cadastro Único (CadÚnico). Até então, o governo mantinha
listas distintas de beneficiados para vários programas, como Bolsa Alimentação
ou Auxílio-Gás. Algumas famílias recebiam ajuda de três ou mais, outras de um
só, e o governo não sabia o que acontecia porque as informações eram mantidas
em silos. A consolidação do CadÚnico foi determinante para o sucesso do Bolsa Família,
lançado em 2003. De lá para cá, ele passou por vários aperfeiçoamentos.
Infelizmente, nos últimos anos houve deterioração na qualidade das informações.
Cerca de 6,6 milhões dos 22,3 milhões de famílias registradas como pobres no CadÚnico em 2023 não eram pobres, revelou estudo do Insper encomendado pelo governo. Os pesquisadores cruzaram dados do cadastro com a pesquisa domiciliar periódica do IBGE, a Pnad Contínua. Concluíram que 30% das famílias no CadÚnico tinham renda per capita acima de R$ 218 mensais — limiar da pobreza usado para determinar quem recebe Bolsa Família. No Rio, na Baixada Fluminense ou no oeste da Bahia a discrepância passa de 50%. A partir dos resultados, o governo precisa fazer um pente-fino e corrigir a distorção.
Não se trata de retirar as famílias do
cadastro, que reúne pobres e segmentos com rendimentos maiores, mas ainda assim
vulneráveis (a linha de corte do CadÚnico é renda per capita de até meio
salário mínimo mensal, ou R$ 706). Mas a reclassificação é urgente para
melhorar o foco do Bolsa Família. O governo poderia até aproveitar a
oportunidade para rever o critério de entrada no programa, mas não deveria dar
acesso a quem não precisa.
É verdade que o estudo não fornece um retrato
exato da realidade, pois o universo das amostras e as metodologias usadas no
CadÚnico e na Pnad são distintos. Mas faz uma estimativa razoável da diferença.
Nos locais onde há maior disparidade, é provável que haja desvirtuamento, com
mais famílias que não deveriam estar na lista das pobres. O mapa das áreas
problemáticas é a maior contribuição da pesquisa.
O inchaço do CadÚnico já foi maior. Quando
Jair Bolsonaro estava em campanha pela reeleição em 2022, houve inclusão de
milhões de beneficiários com a mudança de critérios que resultou na criação do
programa Auxílio Brasil. Havia 8,9 milhões de famílias pobres no CadÚnico que
não apareciam nos dados da Pnad. No primeiro ano da gestão Lula, o governo deu
início à identificação de irregularidades. Cerca de 1,7 milhão de inscrições de
famílias com apenas um integrante foram excluídas. O apoio à pesquisa do Insper
é parte da depuração em curso.
Manter o CadÚnico atualizado, sem
irregularidades, é essencial para o êxito de um programa social que, só em
janeiro, consumiu R$ 14,4 bilhões e cujo custo chegou a 1,6% do PIB no ano
passado. O Bolsa Família deve ter como meta o combate à pobreza estrutural. Se
a família está conjunturalmente em situação de pobreza, a resposta deve ser
outra, com ênfase no problema concreto que levou à perda de renda. O consenso
sobre a necessidade de apoiar financeiramente os mais vulneráveis é uma
conquista da sociedade brasileira. Mas depende da execução eficiente dos
programas sociais.
Vitória da centro-direita em Portugal traz
desafio de lidar com ultradireita
O Globo
Aliança vencedora terá de negociar com
populistas do Chega, que se tornaram terceira força parlamentar
Os resultados da eleição em Portugal no
fim de semana demonstraram o desejo de mudança e deixaram a coligação vitoriosa
diante de um dilema para garantir a governabilidade. Foi por pouco, menos de 1
ponto percentual, que os socialistas perderam o primeiro lugar. Contados os
votos, a Aliança Democrática, de centro-direita, liderada pelo Partido Social
Democrata (PSD), conquistou 29,5% dos votos. Com 28,7%, o Partido Socialista
(PS) passou para a oposição depois de nove anos no poder (e um escândalo de
corrupção recente).
Em seu discurso de vitória, Luís Montenegro,
líder da Aliança Democrática e presidente do PSD, reafirmou o compromisso de
melhorar o desempenho da economia e criar empregos com salários melhores aos
mais jovens. Reconheceu que o desafio é grande e exigirá “responsabilidade” e
“capacidade de diálogo e tolerância”. A primeira dificuldade será formar um
governo. Na campanha, Montenegro garantiu que não aceitaria a participação do
Chega, partido da ultradireita apoiado por Jair Bolsonaro. Confirmando prognósticos
anteriores ao pleito, o Chega, liderado por André Ventura, deixou para trás a
condição de sigla nanica para conquistar 18% dos votos, tornando-se a terceira
maior força no Parlamento.
Para a direita tradicional, deter a
ultradireita é questão de sobrevivência. Por isso faz sentido descartá-la da
coalizão governista. Mas isso não significa que Montenegro estará livre de
concessões. Ele governará sem maioria no Parlamento. Todas as votações
dependerão de acertos com as demais forças políticas, ora os socialistas, ora
os ultradireitistas. Portugal já teve governos assim, mas o temor é que tal
arranjo traga instabilidade.
Outra opção seria Montenegro voltar atrás e
chamar Ventura. Partidos tradicionais de direita e centro-direita na Europa
costumam evitar essa aproximação, mas há as exceções. Na Holanda, o partido de
Geert Wilders, que defende acabar com imigração islâmica e proibir o Alcorão,
ganhou em novembro 37 das 150 cadeiras do Parlamento. Num cenário pulverizado,
tornou-se uma das principais forças políticas. De lá para cá, siglas
tradicionais têm negociado com ele a formação de uma coalizão. Na Suécia, a
estabilidade do governo depende de um partido com raízes neonazistas. Na
Itália, a ultradireita governa o país.
O português Ventura ganhou fama em 2017 ao
destilar preconceitos contra a comunidade cigana, que acusou de ser origem de
crimes e de explorar o sistema de seguridade social. Dois anos depois fundou o
Chega. Seu programa ataca a imigração, que ele considera diluir a cultura
portuguesa. Na campanha, adotou promessas demagógicas, como baixar impostos e
elevar aposentadorias ao mesmo tempo. Como todo partido nacional-populista, o
Chega adota posições retrógradas em temas que vão da imigração aos direitos civis.
Mas, desde que respeite as regras da democracia, deve ser aceito como
representante legítimo de uma vertente crescente — ainda que preocupante — na
sociedade portuguesa.
Novo Carf piora ambiente de negócios e não
afasta risco fiscal
Valor Econômico
Compensações tributárias foram de R$ 27
bilhões, mesmo com MP que as limita de acordo com o valor
A mudança nas regras de funcionamento do
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) está surtindo efeito para o
lado do governo. Com o único objetivo de aumentar a arrecadação - e evitar
cortes de gastos -, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conseguiu que o
Senado aprovasse, em agosto, o projeto que retomava o voto de qualidade no
Carf, extinto em 2020. Nesse sistema, o presidente das turmas, um auditor da
Receita, funcionário do Executivo, decide as disputas em caso de empate. A nova
regra foi sancionada no fim de setembro, e em outubro veio o primeiro recorde
mensal de julgamentos definidos por desempate, de R$ 14,4 bilhões.
Mesmo com a greve dos auditores da Receita
Federal, o que atrasou os julgamentos, o ano terminou com um balanço favorável
para o governo no Carf: o volume de litígios tributários julgados dobrou,
passando de R$ 138 bilhões no último ano do governo Bolsonaro para R$ 278
bilhões em 2023. Desse total, os contribuintes perderam R$ 109 bilhões, ou 39%
do total, mais do que o triplo dos R$ 30 bilhões de 2022, o maior valor desde
2019. Nem tudo veio do voto de qualidade nos julgamentos de casos de empate,
mas ele foi decisivo para isso.
A expectativa do próprio Carf é julgar R$ 870
bilhões neste ano, previsão apoiada no fim da greve dos auditores da Receita,
no aumento do quadro de conselheiros de 180 para 204, na introdução do plenário
virtual para julgamentos com litígios de até R$ 60 milhões e na realização de
sessões extras. O valor é superior ao de R$ 580 bilhões previsto no Orçamento.
A remodelação do Carf é uma das apostas do
ministro Haddad para atingir a meta de déficit zero neste ano. O volume de
decisões favoráveis ao governo em 2023 atingiu quase 40%, mas graças a algumas
manobras, como a inclusão de casos de alto valor na fila de julgamentos.
Historicamente, o Carf favorece o governo em um percentual inferior, em torno
de 10% do total. Daí a previsão do governo de obter R$ 55 bilhões neste ano -
ou até R$ 87 bilhões se a estimativa mais elevada se confirmar.
O mercado não conta nem de longe com essa
cifra. Um dos motivos é que, para estimular as empresas a aceitarem o veredito
do Carf, as novas regras incluem incentivos como abatimento de multas, o que
reduz o valor final. Além disso, o Carf é a última instância de recurso
administrativo. As empresas contrariadas podem recorrer ainda ao Judiciário,
prolongando por anos o desfecho dos casos e a eventual entrada efetiva dos
recursos nos cofres do governo. Podem-se colher no mercado previsões de que os
julgamentos do Carf contribuirão com R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões das receitas
tributárias deste ano, cerca de 20% do estimado pelo governo, em grande parte
devido à litigância que a mudança estimulará.
A experiência de 2023 indica que o Judiciário
concedeu vitórias ao governo. Levantamento do escritório Machado Associados
indica que, em 49 casos julgados nos tribunais superiores, 34 foram favoráveis
a entes públicos, inclusive a União. São casos analisados em recursos
repetitivos, repercussões gerais ou considerados relevantes (Valo r,
30/1). Em quatro deles, a perda de arrecadação evitada pelo governo é estimada
em R$ 62,4 bilhões. O de maior impacto é o que trata da tributação de
incentivos fiscais.
Compensações tributárias, muitas delas
originadas de decisões judiciais, atuaram no sentido contrário à ação do Carf.
Dados obtidos pelo Valor por meio da Lei de Acesso à Informação
(23/2) mostram que as compensações tributárias diminuíram a arrecadação da
União em R$ 242 bilhões no ano passado. Do total, R$ 82,7 bilhões se referem a
créditos determinados por decisões judiciais, em muitos casos por pagamentos
indevidos de impostos. Em 2018, eles somavam pouco mais de 5% do total de
compensações. A Fazenda informa que só as compensações da “tese do século”, a
exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, custaram mais de R$ 60
bilhões à União em 2023.
Em consequência disso, o governo editou a
Medida Provisória 1.202, que limitou o direito a esse benefício para créditos
fiscais oriundos de decisões da Justiça a partir de R$ 10 milhões. Nos últimos
cinco anos, créditos acima desse valor frustraram a arrecadação em R$ 320,5
bilhões. O limite a elas pode gerar um ganho de R$ 20 bilhões neste ano. As
compensações, no entanto, somaram R$ 27 bilhões em janeiro, mesmo com a MP em
vigor.
O desempenho da arrecadação em janeiro foi o
melhor de todos os meses da série histórica iniciada em 1995. Houve um aumento
real de 6,6%, para R$ 280 bilhões. Caso os fatores não recorrentes fossem
excluídos, o crescimento real da arrecadação teria sido de 4,27%, estima o
fisco. Entre eles está a tributação dos chamados super-ricos e pelo aumento da
massa salarial. A tributação dos fundos exclusivos somou R$ 4,1 bilhões em
janeiro.
A retomada do Carf original, para ajudar a máquina arrecadadora, além de piorar o ambiente de negócios para sustentar aumentos de gastos, não elimina os riscos de uma política fiscal apoiada principalmente no aumento de receitas.
Em corrida acirrada, Nunes ganha pontos
Folha de S. Paulo
Datafolha aponta melhora na avaliação do
prefeito, que está empatado com Boulos; eleitorado se mostra pouco informado
A sete meses do primeiro turno, a disputa
pela Prefeitura de São Paulo parece à primeira vista previsível, como registra
o Datafolha. O deputado federal Guilherme
Boulos (PSOL) e o prefeito Ricardo Nunes (MDB) estão empatados na liderança,
com larga vantagem sobre os demais candidatos.
São representantes e apadrinhados dos líderes
dos polos que hoje praticamente dividem a opinião política-eleitoral do país
—Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL), esquerda e direita.
A diferença mais notável de cenário, embora
nem tão significativa, aparece nas margens. Pela primeira vez em quatro
levantamentos, desde abril de 2022, a avaliação de Nunes parece ter um saldo
positivo, ainda nos limites da margem de erro de 3 pontos percentuais.
A gestão do prefeito é classificada
como ótima ou boa
por 29% dos eleitores, é ruim ou péssima para 24% e regular segundo 43%.
Na corrida, Nunes ganhou pontos em relação ao
Datafolha de agosto, embora a pesquisa do ano passado e a de agora não sejam
imediatamente comparáveis, por diferenças na lista de candidatos possíveis.No
mais, os números da sondagem dificultam prognósticos.
Instados a dizer espontaneamente em quem
votariam, 60% dos eleitores não sabiam citar um nome; outros 7% não votariam em
ninguém. Entres aqueles com renda familiar inferior a dois salários mínimos,
40% da amostra, os índices sobem a 68% e 11%.
A depender do peso efetivo dos padrinhos
políticos na decisão do voto, Nunes pode ter dificuldades, pois 63% dos
eleitores dizem rejeitar alguém apoiado por Bolsonaro. Um nome endossado por
Lula, caso de Boulos, teria a rejeição de 42%.
Observe-se também que, por enquanto, tais
relações não estão claras para muitos eleitores: 33% não sabem a quem Bolsonaro
dá apoio; 8% chegam a imaginar que o ex-presidente se aliou a Boulos. Por
enquanto, Nunes é menos rejeitado (26%) do que o rival (34%).
Com o conhecimento dos candidatos e de suas
relações políticas, decisões de voto podem mudar. Parte do eleitorado
paulistano não conhece Boulos (17%) ou o conhece "só de ouvir falar"
(27%). A situação de Nunes é quase a mesma, com 15% e 27%, respectivamente.
Dadas a polarização e as filiações dos
postulantes, é bem possível que o destino político de Lula e Bolsonaro até a
eleição possa pesar de modo diferente na disputa municipal. A popularidade do
atual mandatário parece decair; investigações policiais e decisões judiciais
podem abalar ainda mais a imagem do antecessor.
O eleitorado ainda não se deteve na análise
dos candidatos e suas propostas. A disputa que ora se afigura acirrada ainda
parece aberta.
Ensino obscurantista
Folha de S. Paulo
Tarcísio insiste em modelo cívico-militar, em
vez de usar recursos com sensatez
Eleito com apoio da base de Jair Bolsonaro
(PL), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), mantém seu
discurso político distante do radicalismo e da intolerância da direita
populista.
Em duas áreas essenciais, contudo, Tarcísio
insiste no erro de respaldar teses bolsonaristas. Na segurança pública, a
polícia coleciona operações sangrentas, e o governador, declarações impensadas;
na educação, insiste na inclusão de militares na rede de ensino.
Ao defender o projeto de lei que cria o
programa de escolas cívico-militares, enviado pelo Palácio dos Bandeirantes à
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp)na quinta (7),
Tarcísio disse que a
iniciativa em "nada interfere com a rotina pedagógica da escola".
De fato, a atuação de policias militares e
bombeiros da reserva nesse modelo não atinge o conteúdo curricular. Se regras
disciplinares fazem parte de um sistema pedagógico, no entanto, por óbvio há
interferências. Crianças são obrigadas a cantar o hino nacional, cortar o
cabelo de determinado modo e a seguir outras restrições e normas rígidas de
comportamento.
Entre 2015 e 2018, o número de instituições
de ensino desse tipo no país passou de 93 para 120. Em 2023, após o programa de
fomento instituído ao longo da gestão de Jair Bolsonaro (PL), eram 215.
No ano passado, o governo
federal iniciou o processo de extinção dos aportes para o programa.
Como resultado de embates ideológicos, diversos estados anunciaram que não só
manteriam o sistema, como o expandiriam.
Alunos tanto de escolas militares (das Forças
Armadas) quanto de cívico-militares (estaduais com presença militar) têm
melhores resultados em avaliações de ensino.
Porém pesquisas mostram que isso se deve não
à disciplina militar, mas a aportes em infraestrutura, formação de professores
e expansão da carga horária —em relação a este fator, por exemplo, só 17% dos
alunos paulistas estão em escolas de ensino integral.
Se governo e deputados paulistas querem melhorar a educação do estado, deveriam alocar recursos com base em evidências, em vez de seguir ideologia obscurantista.
Mão pesada sobre a Petrobras
O Estado de S. Paulo
Diferentes governos veem nela não uma empresa
em busca dos melhores resultados para acionistas, mas um instrumento para
atender a demandas que nada têm a ver com suas atividades
A Petrobras registrou um lucro líquido de
impressionantes R$ 124,6 bilhões no ano passado. Foi o segundo melhor resultado
da história da companhia, superado apenas pelo recorde de R$ 188,3 bilhões
registrado em 2022, e o maior entre as empresas brasileiras no período. Seria
um dia de celebrações, não fosse o esforço coletivo do governo Lula da Silva
para arruiná-lo.
Há duas semanas, o presidente da Petrobras,
Jean-Paul Prates, já havia colocado o bode na sala ao adiantar, em en trevis
taàB lo om berg, que apolítica de distribuição de dividendos da companhia seria
mais cautelosa para privilegiar investimentos em energias renováveis. Prates
pretendia distribuir 50% dos valores extraordinários apurados no ano passado na
forma de dividendos e reter a outra metade para pagamento em momento posterior.
Contrariando a recomendação da própria
diretoria da empresa, no entanto, o Conselho de Administração optou por reter
100% dos recursos extras. Aprovada por 6 votos a 4, a decisão contou coma
participação decisiva dos membros indicados pelo governo federal e, em
particular, pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.
Os acionistas minoritários reagiram mal. Com
toda a razão, passaram a desconfiar que o governo faria uso da maioria dos
assentos que detém no colegiado para destinar esses recursos para o
financiamento de investimentos defendidos por Lula da Silva – algo que,
atualmente, o estatuto não permite.
O governo até tentou menosprezar o impacto da
notícia, mas ficou difícil ignorá-la quando ficou claro que ela não era
consensual. Além de expor a crescente rusga entre Prates e Silveira, a decisão
surpreendeu o Ministério da Fazenda, que contava com o pagamento de dividendos
extraordinários da empresa à União para melhorar o ambicioso resultado fiscal
deste ano.
A trapalhada levou à maior desvalorização das
ações da Petrobras desde fevereiro de 2021 – episódio também marcado por um ato
de intervencionismo governamental na companhia. À época, Jair Bolsonaro demitiu
o então presidente da empresa, Roberto Castello Branco, após o anúncio de um
aumento do preço do diesel e de ameaças de greve por parte de caminhoneiros.
O passado mostra que as tentativas de
ingerência governamental sobre a Petrobras não são fatos isolados. Na gestão
Dilma Rousseff, a empresa acumulou prejuízos bilionários ao segurar reajustes
de combustíveis para conter a inflação e permitir a redução artificial da taxa
básica de juros pelo Banco Central (BC).
Já no segundo mandato de Lula da Silva, a
Petrobras se aproveitava de sua posição dominante no mercado para praticar
preços bem superiores aos cobrados no exterior à custa do consumidor, tudo para
acumular recursos para sustentar os controversos empreendimentos do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC).
Não é por acaso, portanto, que a Petrobras
tenha um valor de mercado menor que o de suas principais concorrentes e muito
inferior ao seu próprio potencial – ainda que seja líder mundial na exploração
de petróleo em águas profundas. Isso acontece porque, para os governos,
independentemente do viés político do presidente de turno, a Petrobras não é
uma empresa em busca dos melhores resultados para seus acionistas, entre os
quais a própria União, mas um instrumento para atender a demandas que nada têm
a ver com sua atividade-fim.
Não é função da Petrobras garantir
crescimento econômico, controlar a inflação, agradar aos caminhoneiros, salvar
a meta fiscal ou servir de palco para disputas políticas da base aliada. Ao
menos em tese, sua missão é produzir petróleo pelo menor custo possível e gerar
riquezas que se revertam em benefício da sociedade e garantam sua sobrevivência
em meio à transição energética.
Ao não conter o ímpeto intervencionista, o
governo degrada o valor da companhia e afasta investidores cujo capital poderia
financiar os investimentos de que a economia tanto necessita para crescer de
maneira sustentável. Quando isso acontece com a maior empresa brasileira, a
imagem que o País passa é a pior possível, e não há lucro recorde que seja
capaz de alterá-la.
O incrível caso do sem-teto ‘golpista’
O Estado de S. Paulo
Morador de rua preso por quase um ano, acusado de participar do 8 de Janeiro, deve ser absolvido por falta de provas, num caso exemplar dos abusos em nome da defesa da democracia
Ocaso de um morador de rua que passou quase
um ano preso por suposta participação no ataque bolsonarista às sedes dos Três
Poderes no infame 8 de Janeiro, e que provavelmente será absolvido por falta de
provas, é exemplar dos exageros que estão sendo cometidos em nome da defesa da
democracia por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Procuradoria-Geral
da República (PGR).
O serralheiro Geraldo Filipe da Silva vivia
em situação de rua em Brasília havia três meses quando foi observar a razia
promovida pela malta bolsonarista. A “curiosidade” que o movera, conforme
depoimento prestado às autoridades, lhe custou caro: quase um ano de prisão sem
que tenha cometido crime algum. É possível imaginar a angústia e o sentimento
de impotência do sem-teto, que, sabidamente inocente, viu o poderoso aparato
persecutório do Estado se voltar contra ele.
Geraldo foi preso em flagrante e acusado pela
PGR dos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado
Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e
deterioração de patrimônio público tombado. Denunciado ao STF por todos esses
gravíssimos delitos, o homem que não derrubou sequer um vaso de plantas no chão
naquele dia infame se tornou réu em 31 de maio de 2023. Só deixaria a cadeia em
novembro – e, mesmo assim, para continuar respondendo às acusações em liberdade.
Só no dia 8 passado o ministro Alexandre de
Moraes votou pela absolvição do serralheiro. Segundo Moraes, não foram
apresentadas provas suficientes de que
Geraldo tenha participado da insurreição
“aderindo dolosamente ao intento de tomada do poder e destruição do Palácio do
Planalto, do Congresso e do Supremo”. Ou seja, a mesma PGR que acusou Geraldo
de crimes gravíssimos foi incapaz de provar sua culpa e pugnou por sua
absolvição – mas o dano já havia sido causado.
O desleixo do parquet – e também do STF, que
aceitou uma denúncia inepta – autoriza a inferência de que Geraldo foi tratado
como só mais um em meio às denúncias de baciada que a PGR ofereceu contra os
acusados de praticar os atos golpistas. Em nome de uma suposta cruzada em
defesa da democracia, abusos têm sido cometidos pelo Ministério Público e pelo
Poder Judiciário. Até uma altercação envolvendo o ministro Alexandre de Moraes
no aeroporto de Roma já foi tratada como um “ataque” contra o Estado Democrático
de Direito. Liberdades foram cassadas sem o devido processo legal. Punições
“preventivas” têm sido determinadas pelo STF, como é o caso dessa estapafúrdia
decisão de Moraes que proíbe Jair Bolsonaro de participar de eventos em
quartéis.
Ninguém de boa-fé haverá de ignorar a
importância que o STF teve para frear a sanha golpista que moveu o governo
Bolsonaro do primeiro ao último dia de seu mandato, e mesmo depois. Na ausência
de um procurador-geral à altura do cargo e de suas funções na República e com
parte do Congresso comprada a peso de “orçamento secreto”, não foram poucas as
ocasiões, entre 2019 e 2022, em que a sociedade só pôde contar com o STF como
última linha de defesa da democracia e da Constituição. Também é inolvidável
que o julgamento dos atos golpistas do 8 de Janeiro impôs à Corte desafios sem
precedentes na história recente. No entanto, nenhum desses desafios, por mais
complexos que sejam, suspendeu os direitos e as garantias fundamentais que a
Constituição confere a qualquer cidadão.
O voto de Moraes deve ser seguido por seus
pares, haja vista que as posições do ministro relator têm ditado, para o bem ou
para o mal, os rumos do STF no que concerne aos inquéritos abertos para
supostamente apurar ataques contra a democracia – e que até hoje não foram
encerrados. Sendo assim, Geraldo provavelmente será o primeiro réu absolvido de
todas as acusações que lhe foram imputadas pela PGR por sua suposta
participação nos atos do 8 de Janeiro.
Ao fim e ao cabo, é reconfortante saber que
um homem inocente deverá ser reconhecido como tal pela mais alta instância do
Poder Judiciário do País. Mas, diante da violência estatal cometida contra
Geraldo Filipe da Silva, entre outros abusos, é o caso de perguntar: afinal,
quantos “Geraldos” ainda há atrás das grades na segunda maior democracia das
Américas?
Portugal se move à direita
O Estado de S. Paulo
A ascensão reacionária não ameaça a
democracia, mas sinaliza um mal-estar que exige resposta
As eleições em Portugal se encerraram com uma
vitória previsível, uma novidade e uma incerteza. O fato corriqueiro foi a
oscilação do pêndulo político à direita. A coalizão de centrodireita Aliança
Democrática (AD) não conquistou a maioria no Parlamento de 230 deputados, mas
obteve o maior número de cadeiras, 79, seguida de perto pelo Partido Socialista
(PS), 77, que liderou por oito anos o governo.
Após as eleições de 2022, o próximo pleito
deveria ocorrer só em 2026, mas foi antecipado após o premiê António Costa
renunciar na esteira de acusações de corrupção ao seu governo. A chamada
“geringonça” dos partidos de esquerda geriu relativamente bem a economia, uma
das que mais cresceram na Europa nos últimos anos. Mas há insatisfação dos
portugueses com o custo de vida.
O desejo de renovação econômica explica a
opção do eleitorado pela plataforma de centro-direita – menos impostos e mais
incentivos à iniciativa privada –, mas não dá conta da novidade destas
eleições: a ascensão do partido populista antissistema e anti-imigração Chega,
que em 2022 saltou de 1% para 7% dos votos, e agora conquistou 18,1%,
tornando-se a terceira maior legenda, com 48 parlamentares.
Em abril, Portugal comemorará 50 anos da
Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura de direita de António Salazar.
Desde então, o país foi um modelo de estabilidade democrática, com a
centro-direita e a centro-esquerda se alternando no poder. A incógnita é até
onde Portugal se moverá à extrema direita.
Até o momento, não muito. A AD foi às urnas
asseverando um inequívoco “não” a uma aliança com o Chega.
Após as eleições, o chefe do Chega, André
Ventura, acenou a essa possibilidade, mas o líder da AD, Luís Montenegro,
reafirmou seu “não”. O PS declarou que será oposição, mas não vetará um governo
da AD, que, assim, poderá governar sem precisar formar uma “geringonça” de
direita. Mas, sem maioria, disputará suas pautas uma a uma, negociando
compromissos à direita e à esquerda.
A ascensão do Chega sinaliza uma irritação do
eleitorado que precisa de resposta dos partidos tradicionais em questões como
racionalização da administração pública, combate à corrupção, reformas da
Justiça e serviços de qualidade em Saúde e Educação.
Um sinal de que o protesto foi ouvido foi
dado pelo líder socialista. “Não há 18,1% de portugueses votantes racistas ou
xenófobos, mas há muitos portugueses zangados”, disse Pedro Nuno Santos.
“Queremos reconquistar a confiança destes portugueses.”
Essa reconquista passa por enfrentar o
desafio da imigração, o principal combustível do Chega. A população de
Portugal, como a de outros países da Europa, está envelhecendo e encolhendo, e
precisa de imigrantes dispostos a trabalhar e criar suas famílias no país,
aportando capital financeiro e humano. Mas a imigração ilegal desperta
apreensão. Será crucial para o novo governo separar o joio do trigo, reprimindo
a imigração ilegal e estimulando a legal.
Assim, num futuro próximo, a tradição moderada em Portugal se mantém. Mas não há espaço para complacência.
Lições da covid após quatro anos
Correio Braziliense
A ministra Nísia Trindade anunciou a criação de um memorial para as vítimas da doença. O local escolhido é o Centro Cultural do Ministério, localizado no Rio de Janeiro
Quatro anos depois de a Organização Mundial
da Saúde declarar uma pandemia global de covid-19, o governo federal
estabeleceu um marco no Brasil para a doença que matou 710 mil no país. A
ministra Nísia Trindade anunciou a criação de um memorial para as vítimas da
doença. O local escolhido é o Centro Cultural do Ministério, localizado no Rio
de Janeiro.
Como acontece com iniciativas semelhantes, o
memorial tem por finalidade servir de reflexão permanente sobre a doença que
devastou o país entre 2020 e 2022 e ainda constitui um relevante problema grave
no Sistema Único de Saúde, bem como na rede privada de atendimento. "Não
circunscrevemos a pandemia de covid-19 ao passado. Como todas as reflexões
sobre memória, sabemos do componente presente, político, das ações de memória.
E, ao mesmo tempo, lembramos que, a despeito de termos superado a emergência
sanitária, nós não superamos a covid-19 como problema de saúde pública",
afirmou Nísia Trindade.
Em números absolutos, o morticínio provocado
pela covid-19 no Brasil encontra paralelo com os Estados Unidos, onde a
pandemia causou mais de 1 milhão de óbitos, e na Índia, país que acumula mais
de 530 mil mortes. Dirão os negacionistas da pandemia que, considerando os
dados proporcionais, o Brasil está em situação menos dramática do que em nações
como Peru, que contabiliza uma média 6 mil óbitos por milhão de habitantes.
Nesse critério, o Brasil ocupa a 18ª posição, com aproximadamente 3,2 mil
mortes por milhão de habitantes.
Independentemente das variações estatísticas,
é consenso entre autoridades sanitárias que a covid-19 provocou um flagelo no
país. O avanço devastador da pandemia extenuou o Sistema Público de Saúde —
que, de resto, mostrou-se fundamental no enfrentamento da doença; revelou a
vulnerabilidade do Brasil no desenvolvimento de vacinas; escancarou o
negacionismo em parcelas da sociedade brasileira, muitas vezes estimulado por
agentes do poder público; gerou profundo impacto em diversos setores da
economia, muitos dos quais ainda em fase de recuperação. Isso sem mencionar os
traumas na sociedade, com milhões de famílias e empresas tentando se reerguer
após a partida repentina de pais, mães, avôs, avós, tios, trabalhadores,
pesquisadores, cidadãos.
É precisamente por causa do propósito de
lembrar o país dos danos, muitas vezes irreversíveis, causados pela covid-19
que o memorial anunciado pelo Ministério da Saúde tem sua relevância. Passados
quatro anos da eclosão do novo coronavírus, o Brasil ainda enfrenta séria
batalha contra a doença. Em 2024, a covid-19 tem registrado uma média de 200
mortes a cada semana epidemiológica. É como se caísse um avião toda semana no
Brasil. A dengue, apesar de se encontrar em crescente estágio de emergência em
diversos estados e no Distrito Federal, registra oficialmente 363 mortes, e
outras 763 em investigação.
Em ambas as graves moléstias, apesar das especificidades, o desafio é um só: investir em prevenção, tratamento e, não menos importante, no fomento à pesquisa. Dada a magnitude que essas patologias adquiriram no país continental e de profundas desigualdades, é fundamental uma ação permanente e coordenada, que envolva os três entes federativos, para evitar a ocorrência de novas tragédias. É dever do Estado combater covid-19 e dengue de maneira incansável; é dever de todo brasileiro contribuir com essa causa. Esse é o sentido mais profundo de iniciativas como o memorial anunciado ontem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário