domingo, 17 de março de 2024

Paulo Fábio Dantas Neto* - O golpismo em ato de Bolsonaro e a narrativa eleitoral de Lula

Deveremos saber, dentro em pouco, se o presidente Lula estava certo quando disse, em entrevista recente ao SBT News, que o Brasil está polarizado entre duas pessoas (no caso, ele próprio e o ex-presidente Jair Bolsonaro) e não entre dois partidos. A confirmação, ou não, dessa arriscada afirmação poderá vir de consequências da quebra do sigilo, pelo ministro Alexandre Morais, de 27 depoimentos tidos como cruciais dentro do processo relativo à tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023.

Se a divulgação de tais documentos tiver efeito legitimador - perante a sociedade civil e cidadãos nela organizados ou referenciados - de uma decisão judicial rigorosa que impeça o ex-presidente de voltar a ser elegível, não apenas em 2026, mas nos termos de uma proscrição perene, esse efeito mais do que esperado não bastará para testar a pertinência do diagnóstico de Lula. Novidade zero, não haverá razão para se soltar muitos foguetes. Mais adequado seria só dar suspiros de alívio. O juízo da sociedade civil sobre Bolsonaro implicou em majoritária e implacável condenação política já durante seu governo, ainda que no âmbito daquela se conte parte das igrejas evangélicas e das organizações empresariais. Esse juízo teve tradução eleitoral em 2022, como amplo consenso, não como polarização. Bolsonaro uniu contra si (mais do que Lula reuniu a seu favor) amplíssima e incontrastável maioria da sociedade civil, a qual engajou-se na busca de votos dos cidadãos-eleitores que o seu raio de influência alcança.

 A polarização a que Lula se refere está, como se sabe, noutros lugares. Mais à vista, no de uma minoria sempre ativa de militantes de extrema-direita; com visibilidade mais sazonal, no de uma camada mais ampla de cidadãos-eleitores que têm acesso ou mesmo compõem, minoritariamente, a sociedade civil, oscilando entre a raiva muda e a participação estridente, mas com uma atitude política que rejeita, e por vezes desafia, o consenso antibolsonarista que ali se firmou, orientando-se pelo antipetismo e/ou antilulismo; e, com grande resiliência, no de uma ainda mais ampla camada popular, onde o carisma do líder atua, ao lado de milicias truculentas, militância extremista e conservadorismo religioso e cultural.

Para testar, de fato, o estrito caráter pessoal da polarização, o efeito de persuasão social em favor de uma punição exemplar de Bolsonaro precisará ser observado nesses outros lugares sociais do eleitorado brasileiro, que estão além da face visível da sociedade civil. Uma primeira hipótese de validação do diagnóstico de Lula seria negativa para ele próprio, que tenta se mostrar como autêntico “outro” do rival. Se a orfandade for mesmo de tal natureza, os partidários do antecessor poderão, talvez, produzir uma massiva mobilização antissistêmica (de contestação de instituições juridico-políticas do estado democrático de direito), ainda que em nada parecida com um movimento antissistêmico, de contestação da ordem social. Seria difícil o governo Lula não ser alvejado por tal conjuntura crítica.    

As possibilidades de se confirmar essa primeira hipótese são uma especulação sem respaldo em maiores evidências. Embora surpresas sempre possam ocorrer, nada indica que haveria algo parecido com uma comoção popular em protesto contra a punição ao golpista, qualquer que seja ela. Lula sabe disso e se ele difunde uma interpretação simplória do problema político do País como um duelo pessoal, decerto conta com uma segunda hipótese que poderá aparecer como uma confirmação da sua narrativa. 

Essa segunda hipótese parece ser a de que o polo que existe em torno da personalidade do seu antecessor implodirá diante de uma decisão judicial que decrete, sem ambiguidades, o encerramento da sua vida política.  A militância extremada poderia espernear em vão, mas a camada socialmente emersa de eleitores de direita preveria mais uma derrota e adotaria uma atitude blasé, de desesperança e ainda maior aversão passiva à política e às instituições. Irritada e também impotente, pois, já que não haveria nada de política no Brasil além das duas personalidades contrapostas, a massa de eleitores crentes no mito oposicionista, grande fração do eleitorado bem distante da sociedade civil, poderia, por sua vez, diante da derrocada do seu mito atual, buscar abrigo e proteção sob as asas protetoras do mito vencedor do duelo. Em resumo, um cenário atavicamente onírico de governar sem oposição relevante. 

Esse cenário seria, conforme Robert Dahl, uma preferência de qualquer governo. As regras do sistema democrático é que a tornam impraticável, o que induz governos que as valorizam a tentarem trocar o cenário ótimo por algum subótimo compatível com as instituições poliárquicas. Correligionários, aliados mais próximos e antigos, simpatizantes e analistas de boa vontade costumam afirmar, com variados graus de convicção e veracidade, que é exatamente esse o exercício que Lula pratica, como político realista.  Sem dúvida já mostrou várias vezes, em sua longa trajetória, que é capaz de praticá-lo. No entanto, deu e tem dado seguidas demonstrações, na sua última campanha e no seu atual governo, de que considera essa conduta não como uma condição imperativa do seu cargo, mas como algo suscetível às contingências e humores de sua vontade política. Submeter-se aos riscos da livre competição política é objeto de escolhas conjunturais suas, não um desiderato institucional. 

O que transforma o populismo em problema é precisamente o pendor para buscar sempre seu ótimo. No caso em questão - o Brasil que vive fricções políticas contínuas há mais de dez anos -, a eliminação das chances de oposição relevante e legítima a um governo, qualquer que ele seja, expõe a república a riscos de desagregação tão preocupantes quanto as sequelas de uma contínua polarização imoderada. Infelizmente é possível perceber que a repetição, em 2026, do quadro eleitoral de 2022, é vista como algo positivo pelo presidente. Ele foi explícito quanto a isso na já mencionada entrevista ao SBT News. Se por decisão legítima do Judiciário o rival for afastado – como parece ser lógico e necessário para punir o golpismo praticado e prevenir recidivas – a lógica binária simples do presidente induz a pensar que os dois campos políticos deverão travar o embate através de candidaturas que reproduzam o tipo de polarização personalista que ele constata e elogia. O recado é claríssimo: Lula e Bolsonaro deverão bater-se diretamente, mais uma vez, ou - em caso de impossibilidade ou inconveniência da candidatura de um ou de ambos - através de prepostas pessoas representativas dessas entidades míticas. As primeiras-damas, noves fora seus estilos próprios, estão na cena para que essa hipótese não seja descartada se na política formal não houver pessoas capazes de cumprir esse papel de modo tão estrito. 

Se puder influir de algum modo no campo adversário, não será surpresa se Lula continuar pavimentando a pista de Michele Bolsonaro. É sugestivo que, em São Paulo, se engaje na candidatura de Boulos, que nacionaliza a disputa jogando o eleitorado de centro no colo do prefeito e, por tabela, no do governador. Vitamina a candidatura virtualmente imbatível de um Tarcísio moderado à reeleição, mas isso talvez o torne um presidenciável inconfiável ao bolsonarismo raiz. E quanto ao seu próprio campo, é sugestivo também que faça questão de assinalar a dimensão contábil da missão do ministro Fernando Haddad e subestime o relevante papel político que o mesmo vem cumprindo em seu governo.  Por essas mal traçadas linhas Tarcísio e Haddad teriam que escolher entre relativa autonomia, ou a candidatura.

O faro de Lula é fino e seu olho, vivo, quando se trata de lutar no varejo do presente. Mas não necessariamente quando se trata de construir o futuro, vide a sucessora que escolheu em 2010.  Pensando que controlaria a criatura, o criador enredou-se na sua teia. Pela sua habilidade e resiliência conquistou uma segunda chance, mas o que fará dela ainda é um completo enigma, mesmo para os mais chegados a ele. Sua solidão política vai se tornando provérbio, mas ele confia na sua narrativa.  Acha que as coisas acabarão se resolvendo num embate entre os dois mitos. Sendo baixo o risco de uma resposta de massa à exclusão de Bolsonaro, aposta no cenário idílico de 2026 repetir 2010, quando a oposição tucana teve sua competividade bastante reduzida pela aclamação do líder petista, ainda que a neófita candidata deste tenha precisado de um segundo turno para derrotar um político experimentado, com uma extensa folha de serviços prestados ao Brasil. A façanha foi obra de dois mandatos, com resultados políticos funestos para ele, seu partido e o País. Que resultados se pode esperar quando Lula, malgrado o desgaste dos anos, recusa um script conciliador e ensaia uma obra autorreferente em apenas quatro?

São duas também as hipóteses do irreversível nocaute de Bolsonaro desmentir os prognósticos binários do presidente Lula. Uma é a extrema-direita apostar no longo prazo e aceitar agora um papel coadjuvante numa forte candidatura oposicionista de direita e centro-direita, seja ou não a de Tarcísio de Freitas. Outra é o centro democrático que hoje está no governo desistir de uma coadjuvância que o tem anulado como força política e resolver disputar o apoio da centro-direita, retomando a trilha abandonada da candidatura de Simone Tebet no primeiro turno de 2022, mesmo que não seja ela a candidata. No curto ou no médio prazo, assim como ocorre com as duas hipóteses confirmatórias do diagnóstico de Lula, das duas que o desmentiriam, uma é provável (a unificação da direita para além de Bolsonaro), outra não (a reanimação da ideia de uma terceira via). Mas ambas têm em comum a consideração de que no ar poluído da política brasileira, há algo mais do que os dois aviões de carreira.

*Cientista político e professor da UFBa

Nenhum comentário: