Se a divulgação de tais documentos tiver efeito legitimador - perante a sociedade civil e cidadãos nela organizados ou referenciados - de uma decisão judicial rigorosa que impeça o ex-presidente de voltar a ser elegível, não apenas em 2026, mas nos termos de uma proscrição perene, esse efeito mais do que esperado não bastará para testar a pertinência do diagnóstico de Lula. Novidade zero, não haverá razão para se soltar muitos foguetes. Mais adequado seria só dar suspiros de alívio. O juízo da sociedade civil sobre Bolsonaro implicou em majoritária e implacável condenação política já durante seu governo, ainda que no âmbito daquela se conte parte das igrejas evangélicas e das organizações empresariais. Esse juízo teve tradução eleitoral em 2022, como amplo consenso, não como polarização. Bolsonaro uniu contra si (mais do que Lula reuniu a seu favor) amplíssima e incontrastável maioria da sociedade civil, a qual engajou-se na busca de votos dos cidadãos-eleitores que o seu raio de influência alcança.
Para testar, de fato, o estrito caráter
pessoal da polarização, o efeito de persuasão social em favor de uma punição
exemplar de Bolsonaro precisará ser observado nesses outros lugares sociais do
eleitorado brasileiro, que estão além da face visível da sociedade civil. Uma
primeira hipótese de validação do diagnóstico de Lula seria negativa para ele
próprio, que tenta se mostrar como autêntico “outro” do rival. Se a orfandade
for mesmo de tal natureza, os partidários do antecessor poderão, talvez, produzir
uma massiva mobilização antissistêmica (de contestação de instituições
juridico-políticas do estado democrático de direito), ainda que em nada
parecida com um movimento antissistêmico, de contestação da ordem social. Seria
difícil o governo Lula não ser alvejado por tal conjuntura
crítica.
As possibilidades de se confirmar essa
primeira hipótese são uma especulação sem respaldo em maiores evidências.
Embora surpresas sempre possam ocorrer, nada indica que haveria algo parecido
com uma comoção popular em protesto contra a punição ao golpista, qualquer que
seja ela. Lula sabe disso e se ele difunde uma interpretação simplória do
problema político do País como um duelo pessoal, decerto conta com uma segunda
hipótese que poderá aparecer como uma confirmação da sua narrativa.
Essa segunda hipótese parece ser a de que o
polo que existe em torno da personalidade do seu antecessor implodirá diante de
uma decisão judicial que decrete, sem ambiguidades, o encerramento da sua vida
política. A militância extremada poderia espernear em vão, mas a camada
socialmente emersa de eleitores de direita preveria mais uma derrota e adotaria
uma atitude blasé, de desesperança e ainda maior aversão passiva à política e
às instituições. Irritada e também impotente, pois, já que não haveria nada de
política no Brasil além das duas personalidades contrapostas, a massa de
eleitores crentes no mito oposicionista, grande fração do eleitorado bem
distante da sociedade civil, poderia, por sua vez, diante da derrocada do seu
mito atual, buscar abrigo e proteção sob as asas protetoras do mito vencedor do
duelo. Em resumo, um cenário atavicamente onírico de governar sem oposição
relevante.
Esse cenário seria, conforme Robert Dahl, uma
preferência de qualquer governo. As regras do sistema democrático é que a
tornam impraticável, o que induz governos que as valorizam a tentarem trocar o
cenário ótimo por algum subótimo compatível com as instituições poliárquicas.
Correligionários, aliados mais próximos e antigos, simpatizantes e analistas de
boa vontade costumam afirmar, com variados graus de convicção e veracidade, que
é exatamente esse o exercício que Lula pratica, como político realista.
Sem dúvida já mostrou várias vezes, em sua longa trajetória, que é capaz de
praticá-lo. No entanto, deu e tem dado seguidas demonstrações, na sua última
campanha e no seu atual governo, de que considera essa conduta não como uma
condição imperativa do seu cargo, mas como algo suscetível às contingências e
humores de sua vontade política. Submeter-se aos riscos da livre competição
política é objeto de escolhas conjunturais suas, não um desiderato
institucional.
O que transforma o populismo em problema é
precisamente o pendor para buscar sempre seu ótimo. No caso em questão - o
Brasil que vive fricções políticas contínuas há mais de dez anos -, a
eliminação das chances de oposição relevante e legítima a um governo, qualquer
que ele seja, expõe a república a riscos de desagregação tão preocupantes
quanto as sequelas de uma contínua polarização imoderada. Infelizmente é
possível perceber que a repetição, em 2026, do quadro eleitoral de 2022, é
vista como algo positivo pelo presidente. Ele foi explícito quanto a isso na já
mencionada entrevista ao SBT News. Se por decisão legítima do Judiciário o
rival for afastado – como parece ser lógico e necessário para punir o golpismo
praticado e prevenir recidivas – a lógica binária simples do presidente induz a
pensar que os dois campos políticos deverão travar o embate através de
candidaturas que reproduzam o tipo de polarização personalista que ele constata
e elogia. O recado é claríssimo: Lula e Bolsonaro deverão bater-se diretamente,
mais uma vez, ou - em caso de impossibilidade ou inconveniência da candidatura
de um ou de ambos - através de prepostas pessoas representativas dessas
entidades míticas. As primeiras-damas, noves fora seus estilos próprios, estão
na cena para que essa hipótese não seja descartada se na política formal não
houver pessoas capazes de cumprir esse papel de modo tão estrito.
Se puder influir de algum modo no campo
adversário, não será surpresa se Lula continuar pavimentando a pista de Michele
Bolsonaro. É sugestivo que, em São Paulo, se engaje na candidatura de Boulos,
que nacionaliza a disputa jogando o eleitorado de centro no colo do prefeito e,
por tabela, no do governador. Vitamina a candidatura virtualmente imbatível de
um Tarcísio moderado à reeleição, mas isso talvez o torne um presidenciável
inconfiável ao bolsonarismo raiz. E quanto ao seu próprio campo, é sugestivo também
que faça questão de assinalar a dimensão contábil da missão do ministro
Fernando Haddad e subestime o relevante papel político que o mesmo vem
cumprindo em seu governo. Por essas mal traçadas linhas Tarcísio e Haddad
teriam que escolher entre relativa autonomia, ou a candidatura.
O faro de Lula é fino e seu olho, vivo,
quando se trata de lutar no varejo do presente. Mas não necessariamente quando
se trata de construir o futuro, vide a sucessora que escolheu em 2010.
Pensando que controlaria a criatura, o criador enredou-se na sua teia. Pela sua
habilidade e resiliência conquistou uma segunda chance, mas o que fará dela
ainda é um completo enigma, mesmo para os mais chegados a ele. Sua solidão
política vai se tornando provérbio, mas ele confia na sua narrativa. Acha
que as coisas acabarão se resolvendo num embate entre os dois mitos. Sendo
baixo o risco de uma resposta de massa à exclusão de Bolsonaro, aposta no
cenário idílico de 2026 repetir 2010, quando a oposição tucana teve sua
competividade bastante reduzida pela aclamação do líder petista, ainda que a
neófita candidata deste tenha precisado de um segundo turno para derrotar um
político experimentado, com uma extensa folha de serviços prestados ao Brasil.
A façanha foi obra de dois mandatos, com resultados políticos funestos para
ele, seu partido e o País. Que resultados se pode esperar quando Lula, malgrado
o desgaste dos anos, recusa um script conciliador e ensaia uma obra
autorreferente em apenas quatro?
São duas também as hipóteses do irreversível
nocaute de Bolsonaro desmentir os prognósticos binários do presidente Lula. Uma
é a extrema-direita apostar no longo prazo e aceitar agora um papel coadjuvante
numa forte candidatura oposicionista de direita e centro-direita, seja ou não a
de Tarcísio de Freitas. Outra é o centro democrático que hoje está no governo
desistir de uma coadjuvância que o tem anulado como força política e resolver
disputar o apoio da centro-direita, retomando a trilha abandonada da candidatura
de Simone Tebet no primeiro turno de 2022, mesmo que não seja ela a candidata.
No curto ou no médio prazo, assim como ocorre com as duas hipóteses
confirmatórias do diagnóstico de Lula, das duas que o desmentiriam, uma é
provável (a unificação da direita para além de Bolsonaro), outra não (a
reanimação da ideia de uma terceira via). Mas ambas têm em comum a consideração
de que no ar poluído da política brasileira, há algo mais do que os dois aviões
de carreira.
*Cientista político e professor da UFBa
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