O Globo
Novo filme de Alex Garland nos lembra que a
violência, consequência lógica de uma polarização crescente, é a própria
falência do espírito humano
Uma pesquisa do instituto YouGov para a
revista britânica The Economist em 2022 mostrou que 14% dos americanos
consideram “muito provável” e 29% consideram “um pouco provável” que os Estados
Unidos enfrentem uma guerra civil na próxima década. Sessenta e
seis por cento dos entrevistados acreditam que, depois do 6 de janeiro de 2021
(quando houve a invasão do Congresso americano), o país ficou ainda “mais
dividido”, e 65% creem que a violência política “aumentou”. No Brasil, a
situação não é muito diferente.
Levantamento do instituto Quaest, publicado aqui no GLOBO, mostrou, na véspera das eleições de 2022, que 12% dos brasileiros consideravam “muito justificado” e 9% “um pouco justificado” o uso de violência se o outro lado vencesse as eleições. Três meses e meio depois, tivemos o 8 de Janeiro. É num futuro próximo, derivado dessas tensões políticas, que se passa o novo filme de Alex Garland, “Guerra civil”, que entrou em cartaz neste fim de semana.
O filme é uma distopia realista sobre os
Estados Unidos destruídos por uma guerra civil sangrenta. Um grupo de quatro
jornalistas que trabalham para a agência Reuters e o jornal The New York Times
viaja de carro de Nova York à capital Washington para tentar entrevistar o
presidente antes que forças rebeldes cerquem a cidade e tomem o poder. Numa
espécie de roadmovie de terror, os quatro passam por estradas tomadas por
carros abandonados, um estádio convertido em centro de acolhimento, um posto de
gasolina controlado por justiceiros e cidades ocupadas por guerrilheiros e
milicianos.
O filme filia-se a uma tradição de
perturbadores filmes antiguerra, como “Apocalypse now” (1979), “Platoon”
(1986), “Nascido para matar” (1987) e “Guerra ao terror” (2008). Da diretora
Kathryn Bigelow, de “Guerra ao terror”, incorpora uma estética ultrarrealista,
próxima à de um documentário, que provoca calafrios ao ser encenada em locações
conhecidas nos Estados Unidos. De Francis Ford Coppola, Garland faz uma citação
direta numa das cenas finais de batalha, que remete à famosa cena da dança dos
helicópteros de “Apocalypse now”. Ao produzir essas cenas ultrarrealistas de
batalha que nos relembram a crueza da guerra, Garland quer fazer um alerta: a
consequência lógica do aprofundamento da polarização política é a violência, a
guerra civil fratricida entre compatriotas que não mais se aceitam.
Essa mensagem política do filme, porém, tem
sido muito debatida. Garland optou por embaralhar as referências políticas em
seus Estados Unidos distópicos. O presidente do filme está no terceiro mandato
(quando a Constituição só autoriza dois), e descobrimos que fechou o FBI e
bombardeou civis, mas não sabemos se é republicano ou democrata. Contra ele,
forma-se uma coalizão de dois estados que também têm orientação política
desconhecida reunindo Texas e Califórnia, hoje marcados pela orientação
política oposta — a Califórnia de esquerda e o Texas de direita. Diálogos
esparsos dos personagens não dão pistas dos motivos da divisão política, e ela
não parece ser a fratura que divide hoje republicanos conservadores e
democratas progressistas. Nas cenas de batalha, nunca sabemos bem com que lado
os agentes armados estão colaborando. É como se o filme nos dissesse que isso
não importa.
Em entrevistas, Garland tem defendido sua
abordagem que impede o público de se reconhecer e se alinhar com um dos lados
da disputa. Críticos do filme têm chamado o resultado de “bobo” e “superficial”
ao evitar enfrentar os temas reais que nos dividem. A resenha no jornal The
Wall Street Journal chamou o filme de “carnificina sem causa”. Outra, na
revista The New Yorker, afirma que Garland “se perdeu numa névoa não
partidária”.
Garland, porém, evitou perder espectadores
discutindo as causas do conflito e preferiu, ao contrário, mostrar aos dois
lados para onde a polarização exacerbada pode nos levar. Seu filme não é uma
reflexão sobre os temas dos nossos conflitos políticos, é uma reflexão sobre a
maneira como levamos esses conflitos. É um filme que nos lembra que a violência
— consequência lógica da polarização crescente — é a própria falência do
espírito humano.
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