O Estado de S. Paulo
Se cada cidadão dotado de recursos se dispuser a participar mais e substituir nossos amebianos partidos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno
O fato que narro a seguir ocorreu no segundo
semestre de 1983, no Rio de Janeiro, numa sala espaçosa do terceiro andar do
Hotel Ouro Verde.
Um grupo de amigos – literatos, políticos, jornalistas – convidou Franco Montoro, governador de São Paulo, para um bate-papo. Com seu insuperável bom humor, Montoro cumprimentou-os um por um e se propôs a fazer uma exposição sobre seu governo. Começou pelas valiosas contribuições que recebia de Dona Lucy, sua esposa, e prosseguiu discorrendo sobre seus projetos: hortas comunitárias, a até então esquecida área das estradas vicinais e por aí afora. A certa altura, foi interpelado pelo saudoso Otto Lara Resende: “Farol alto, governador, farol alto”. Durante a risadinha que se seguiu, coisa de um minuto, Montoro não deixou a bola cair: engatou a terceira nos grandes problemas do País, no moribundo arbítrio militar, nos projetos “faraônicos” da era Geisel, que haviam aberto as portas do País para a “década perdida” – e, claro, foi efusivamente aplaudido.
Àquela altura, Dante de Oliveira, deputado
federal pelo Mato Grosso, vinha solitariamente cogitando uma Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) que tornaria direto o processo sucessório do general João
Baptista Figueiredo, cujo mandato expiraria no final de 1984. Proposta
moderada, já se vê, pois tinha em vista apenas o pleito posterior à saída de
Figueiredo. O assunto rarissimamente aparecia na imprensa escrita e nunca, ça
va sans dire, na Rede Globo. Mas, como certa vez sentenciou uma ilustre figura
da política nacional, “o futuro a Deus pertence”. E tanto isso é verdade que a
reunião do Hotel Ouro Verde foi a sementinha que, paulatinamente, deu origem à
campanha das Diretas Já, o maior movimento de massas que o Brasil conheceu,
cujo ponto culminante viria a ser o colossal comício realizado na Praça da Sé
no dia 25 de abril de 1984.
Nesta altura, é oportuno recordar que os três
principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) haviam
passado às mãos de candidatos de oposição (o próprio Montoro, Tancredo Neves e
Leonel Brizola) na eleição de 1982. Associada ao elevado nível de fermentação
criado pela campanha das Diretas Já e aos desastres do endividamento externo e
da “década perdida” engendrados pela quimera da industrialização em marcha
forçada por Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo na Presidência, a referida
mudança nos três principais governos estaduais alterou a realidade política do
País, que se converteu, como acertadamente diagnosticou o cientista político
Juan Linz, numa “instável diarquia”, que não se poderia manter dentro de um
quadro institucional normal.
A Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no
Congresso, mas a lucidez de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro,
Fernando Henrique Cardoso e outros obteve apoio de massas para reorientar o
movimento. Se a negativa do Congresso fechou o caminho da eleição direta, o
enfrentamento seria levado à cova dos leões, ou seja, ao próprio Colégio
Eleitoral que os militares haviam estabelecido 21 anos antes com o objetivo de
blindar o acesso à Presidência por alguma oposição (no caso, o Movimento
Democrático Brasileiro, o MDB). E foi lá, com efeito, que Tancredo Neves bateu
Paulo Maluf, o candidato da continuidade do regime militar.
Otto Lara Resende não está mais conosco, mas
a necessidade de alguém que exclame “farol alto” permanece, quiçá até com mais
gravidade. Onde tínhamos um amplo consenso entre grandes líderes e na
sociedade, hoje, temos uma desarrazoada polarização entre Lula e Jair
Bolsonaro. Onde podíamos ter começado a construir partidos políticos sérios,
hoje, temos uma miríade de interesses de duvidosa legitimidade. Quando nos
imergimos na esperança de mudanças que deveriam vir com a Constituinte, Suas
Excelências partejaram uma Carta contra a maioria das reformas necessárias e,
ela mesma, virtualmente irreformável.
A julgar pelas últimas cogitações sobre a
questão fiscal trazidas a público, a hipótese de um minúsculo superávit nas
contas públicas ficou para 2026, ou seja, para o final do mandato do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. Daria para sorrir, não fora a também irreformável
mania de que nossa economia só conseguirá crescer por meio de (inexistentes)
recursos públicos.
No quadro descrito e no curto prazo, é cabível supor que não desembocaremos numa guerra civil ou em alguma monstruosa anarquia. Essa, entretanto, é uma hipótese que só um obtuso incapaz de visualizar um horizonte de 15 ou 20 anos descartaria sem a devida reflexão. Até porque, enfrentar desafios não é o nosso forte. Cabe, aqui, uma analogia com o conceito de produtividade em economia. Se cada cidadão dotado de recursos (pecuniários, educacionais, de liderança ou qualquer outro que se queira cogitar) se dispuser a participar mais e, assim, substituir nossos amebianos partidos políticos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno. Se não, ele pertencerá a Deus, como sempre pertenceu.
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