O Globo
O que mais me impactava era a ausência do
antipático “você sabe com quem está falando?”, tão autoritário quanto trivial
no Brasil
A força da saudade dos descendentes nos leva
à Europa. Esse continente matriz de artes, letras, ciências e ideologias. De
maneiras de falar, comer, vestir, andar, pensar e — lembro com um lamento —
matar racionalmente em larga escala como dever patriótico em guerras.
Barbaridades lidas como uma arte, conforme essa Europa realizou ao longo do
aprendizado de muitos conflitos e de duas guerras mundiais.
Voltemos, todavia, ao roteiro sentimental, para lembrar que foi no continente europeu que se consolidou a oposição do “ir para a rua” ou “ficar em casa”, pois, nas suas esplendorosas urbes, descobriu-se que os elos sociais se abriam em relações primárias, íntimas e próximas, e secundárias. Nelas, surge um hóspede não convidado: o ser anônimo que, entre outros, Edgar Allan Poe capturou no conto William Wilson, em 1839, por meio de um personagem desconfiado de sua identidade, essa marca da convivência urbana. Esse estar fisicamente próximo, mas social e emocionalmente distante, quando compartilhamos cabines e poltronas de transporte público, cinema e teatro — ou comemos num restaurante, ao lado de ilustres desconhecidos.
Não deve ter sido por acaso que foi nas
grandes cidades europeias, especialmente em Paris, que o
anonimato aliou-se ao individualismo e, com ele, ao igualitarismo tocado a
ideologia e industrialização — essas dimensões essenciais da democracia e da
produção em massa de coisas iguais. Sobretudo de cidadãos, moradores de
cidades!
Foi numa Paris de 1968 que eu, repetindo a
experiência americana, fui viver a realidade dessa Europa. Desse universo de
ruínas, castelos, mansões, edifícios e casas, coalhado, porém, de jardins e
parques transbordantes de vegetação. Espaços verdes que tipificam esse mundo
europeu de interiores atapetados, e também de uma “natureza” claramente
simbolizada pelas florestas domesticadas, em que o desbravador-citadino explora
com segurança e encantamento essa transformação da natureza em mais um objeto
de consumo.
Agora, repeti a experiência de um estranho na
Europa, na Irlanda e
em Portugal, onde fomos rever, repito, entes queridos. Revimos como os parques
sinalizam um pacto de paz com a floresta, do mesmo modo que o zoológico realiza
com os animais, sobretudo os mais ferozes que, enjaulados, podem ser vistos por
todos nós. Foi nessa experiência nascida na Europa que aprendemos a conviver
com desconhecidos, aproximados a cada um de nós pelos códigos da cidadania.
Essas regras que dispensam as particularidades domésticas e físicas que
hierarquizam, marcadas por senioridade, gênero, afeto e respeito — a poltrona
do papai, o feijão da Maria, o lugar de cada qual na mesa — ,para um espaço
aberto de ocupação e pertencimento momentâneo, de acordo com a norma do “quem
primeiro chega, primeiro é atendido” — regra modesta da fila e da democracia,
não como pomposo regime de governo, mas como estilo de vida que produz
bem-estar individual sem esquecer a solidariedade devida ao outro, lido como
igual em direito a usar esses mesmos espaços.
Em 1968, tomei um banho de Europa. Participei
de um Congresso de Americanistas (gente que estuda, admira e respeita costumes
dos indígenas das Américas) na Alemanha, passando por Paris, Londres e Oxford.
Vivi esses códigos igualitários que tratam e cuidam do outro no mundo público
como alternado, não como superior ou inferior. O que mais me impactava era a
ausência exemplar do antipático “você sabe com quem está falando?”, tão
autoritário quanto trivial no Brasil.
Em todo lugar, testemunhei gente usando as
roupas clássicas que também vestiam meu avô, tios e pai quando virei adulto
independente. Roupas europeias que, apesar do calor tropical, definiam
elegância e bom gosto. Essa foi a imagem de uma Europa dos anos 70 e 80.
Hoje, porém, eu, em Dublin, me confrontei
abismado com bandos de homens e mulheres, bem como tribos de jovens, trajando
vestes de academia de ginástica e calçados de tênis enormes. Será que estou no
mesmo continente? Sim e não, porque, em Lisboa,
viva, vejo gente que calça sapatos!
Um comentário:
Muito bom! Não conheço a Europa, mas o colunista descreve muito bem o que tanto vimos em fotos/filmes dos parques e das praças nas suas cidades:
"uma 'natureza' claramente simbolizada pelas florestas domesticadas, em que o desbravador-citadino explora com segurança e encantamento essa transformação da Natureza em mais um objeto de consumo."
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