O Estado de S. Paulo
Aprovadas em 1984, as duas leis tinham uma característica em comum: a união de um grande idealismo e de um grande realismo
Em 1984, o Congresso aprovou dois textos
legislativos importantes, que continuam vigentes: a reforma da Parte Geral do
Código Penal (CP) e a Lei de Execução Penal (LEP). Resultado do trabalho de
duas comissões instauradas pelo então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e
compostas por ilustres juristas – entre eles, um jovem professor de Direito
Penal da Universidade de São Paulo (USP), Miguel Reale Júnior –, as duas leis
integram, com destaque, a trajetória civilizatória brasileira.
Sobressai, numa primeira observação, o contexto político. Elaboradas sob a ditadura militar, a nova Parte Geral do CP e a LEP representaram um movimento de oxigenação democrática. Expressavam a busca por aproximar o ordenamento jurídico e o sistema de Justiça penal do princípio da dignidade humana. Consistiram numa etapa prévia do que ocorreria, pouco depois, na Assembleia Constituinte. O artigo 41 da Lei de Execução Penal, definindo os direitos das pessoas presas, é germe do artigo 5.º da Constituição.
É notável a maturidade do diagnóstico que
alicerça os dois projetos de lei. Havia clareza a respeito dos problemas a
serem enfrentados. “As nefastas consequências do encarceramento revelaram o
fracasso do Direito Penal, que, ao invés de provocar, na fase de execução, a
reintegração social do condenado, promove a elevação dos índices de
reincidência”, afirmou Miguel Reale Júnior no livro Novos rumos do sistema
criminal, de 1983. As medidas propostas visavam a diminuir a incidência da pena
de prisão, “pois é inegável que a vida prisional desintegra a personalidade,
destrói o senso de responsabilidade e enfraquece o espírito de iniciativa”.
Os autores dos projetos não eram ingênuos
quanto à eficácia da lei. “É evidente que a realidade não se transforma por
meio de textos legais”, escreveu Miguel Reale Júnior. Ainda mais quando a nova
legislação, “além de pressupor a inversão de recursos financeiros, exige uma
mudança de mentalidade dos partícipes da administração da Justiça Criminal”.
Sabia-se que o desafio não era de ordem estritamente legal, mas cultural. No
entanto, isso não os deteve.
E mais: não os levou a propor fórmulas
fáceis. Para as duas comissões, melhorar a segurança pública não era sinônimo
de endurecimento das leis. Um programa de prevenção do crime requer, anotou
Miguel Reale Júnior, um “plano maior de reformulação, seja político-institucional,
a fim de que a autoridade legitimamente investida tenha condições morais de
exigir probidade administrativa, seja socioeconômica para atendimento aos
reclamos de justiça social e de mais equânime distribuição de rendas”.
Existia uma preocupação das comissões com a
corrupção existente na ditadura militar. “Há duas formas de criminalidade que,
por sua crescente incidência, retratam seguramente parte da situação atual: o
roubo à mão armada e a corrupção em variados níveis”, registra o livro de
Miguel Reale Júnior.
Os dois projetos de lei tinham uma
característica em comum: a união de um grande idealismo e de um grande
realismo. Seus autores eram conscientes das circunstâncias institucionais do
País e das limitações de efetividade de um texto legal. Ao mesmo tempo, foram
audazes ao pensar o sistema de Justiça penal. Basta ver que, mesmo depois de
quase quatro décadas de regime democrático, o Estado brasileiro ainda não
cumpre o que o legislador de 1984 estabeleceu em relação ao sistema prisional.
Olhando o panorama dessas quatro décadas,
talvez alguém pense que as duas reformas fracassaram; por exemplo, na
pretendida redução do encarceramento. No início da década de 80, a população
carcerária era de 120 mil pessoas. Agora, é de 840 mil.
É importante compreender o fenômeno. Sua
causa não reside na nova Parte Geral do CP e na LEP, e sim nos repetidos
abandonos, ao longo das quatro décadas, do espírito que norteou essas duas
leis. Diagnósticos simplistas e sofismas populistas inspiraram e continuam
inspirando equivocadamente políticas públicas, atividades legislativas e
decisões judiciais. Observa-se uma longa sequência de retrocessos, que, apesar
de terem piorado significativamente a segurança pública, ainda seduzem muitas
pessoas e mentalidades. Fosse a LEP aplicada de maneira efetiva, não haveria,
por exemplo, o PCC, nascido num presídio em 1993. Nem muito menos teria havido
o massacre do Carandiru, em 1992.
Voltar os olhos a 1984 – a esse trabalho
realizado de maneira séria e responsável, com profundo sentido humanista e
democrático – pode trazer luzes importantes para o enfrentamento dos desafios
contemporâneos. Falando da necessidade de democracia e de liberdade em pleno
regime militar, Miguel Reale Júnior escreveu: “Acreditar é preciso, tanto
quanto duvidar”. Sem ingenuidade, é preciso sonhar e trabalhar. Sonhar bem e
trabalhar bem. Há muito a fazer, começando por preservar e revigorar o que de
bom já se fez.
Nota: amanhã e depois, a Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco realizará o Simpósio sobre os 40 anos da Parte Geral
do Código Penal e da Lei de Execução Penal, em homenagem aos 80 anos do
professor Miguel Reale Júnior.
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