segunda-feira, 13 de maio de 2024

Bruno Carazza - Os extremos que nos distanciam como país

Valor Econômico

Livro de Pedro Fernando Nery desbrava as fronteiras da desigualdade brasileira

“Não faz diferença se você é preto ou branco, se é menino ou menina”, cantou Madonna no palco em Copacabana, para delírio de mais de um milhão e meio de pessoas. “Você é um superstar, sim, isso é o que você é, você sabe disso”!

Lançada em 1990 e um dos maiores hits da carreira de Madonna, “Vogue” é uma celebração de um estilo de dança da cultura gay de Nova York nos anos oitenta, em que os artistas emulam poses e movimentos de modelos na passarela.

A mensagem é libertadora, e explica a energia do público ao ouvir seus primeiros acordes. Na pista de dança, você é a estrela, basta usar a sua imaginação e as portas se abrirão para a realização de seus sonhos. Não importa quem você é, basta deixar o seu corpo mover conforme a música.

No meio da canção, Madonna presta uma homenagem a ídolos da fase clássica de Hollywood: Greta Garbo, Marilyn Monroe, Marlene Dietrich, Marlon Brando, James Dean, Grace Kelly e por aí vai. Há um detalhe, contudo: todos são brancos, numa contradição direta com a mensagem principal da letra.

Tal qual na canção de Madonna, a maioria dos autodeclarados liberais brasileiros acredita que não fazem diferença a cor da pele, gênero ou origem. Para ser bem-sucedido, tudo é questão de criatividade, trabalho e mérito.

No entanto, quando se visitam os escritórios da Avenida Faria Lima, em São Paulo, ou se passeia pelas superquadras do Plano Piloto de Brasília, a paisagem é dominada por uma população em sua maioria branca.

A fórmula do sucesso para se galgar uma posição de destaque na meca do capitalismo brasileiro ou na elite do funcionalismo público federal combina a sorte de ser bem-nascido, acesso a bons colégios e universidades e uma ótima rede de contatos. O mérito conta pouco nessa equação.

Acaba de chegar às livrarias “Extremos: um mapa para entender as desigualdades no Brasil”, de autoria do economista Pedro Fernando Nery. Um dos mais brilhantes pesquisadores da nova geração, Nery tem a rara capacidade de aliar formação teórica de qualidade, análise rigorosa de dados e uma incrível habilidade de comunicação.

Ao se jogar no projeto de pesquisar a desigualdade, Pedro Nery fez algo que poucos economistas se prestam a fazer. Deixou de lado as planilhas de dados e se aventurou numa viagem de mais de quinze mil quilômetros para visitar os extremos do país - não em termos geográficos, mas localidades que representam onde se vive mais e melhor no Brasil, e os lugares em que se leva a existência mais dura.

Espiando por entre muros as mansões do Morumbi, em São Paulo, ou enfiando literalmente o pé na lama do rio Juruá para visitar Ipixuna, no Amazonas, Pedro Nery parte do que viu e ouviu nos lugares mais desenvolvidos e mais miseráveis para introduzir discussões não apenas necessárias, como urgentes. Haja vista a tragédia diária da violência que acomete o bairro de Mocambinho em Teresina (menor expectativa de vida do país) ou a hecatombe climática que não poupou nem a desenvolvida e pacata Nova Petrópolis, município gaúcho que tem o maior percentual de aposentados.

Assim como foi guiado pela desiludida Thaynara, pela otimista Jenifer, por Vítor (um talento para códigos computacionais) e pela simpática Magaly para conhecer uma realidade bastante distante dos gabinetes que frequenta como consultor legislativo do Senado, Pedro Nery orienta os leitores com avaliações bem fundamentadas sobre as disparidades de renda, educação e saúde no Brasil.

O livro é farto de discussões sobre políticas públicas, programas sociais, tributação, regulação e previdência, baseadas em pesquisa empírica de ponta que vem sendo produzida no Brasil e no exterior. Democrático, Nery ousa desafiar tanto totens sagrados defendidos por uma direita mercadológica (como a isenção tributária a lucros e dividendos), como a sacrossanta CLT endeusada por uma esquerda retrógrada.

A melhor parte, contudo, está nas sugestões de reformas para atacar algumas das principais distorções que perpetuam a absurda concentração de renda e o degradante contingente de miseráveis no país. Ao longo dos oito capítulos do livro, Nery apresenta diversas soluções, algumas delas já tramitando no Congresso, para aproximarmos os extremos que nos afastam, tanto na configuração social quanto na polarização política.

Mais de 30 anos depois de “Vogue” dominar as paradas, Beyoncé lançou um remix do single “Break my soul” com trechos da música de Madonna, contando com a participação da própria. Na lista de celebridades citadas, porém, a reparação foi feita, com menções a dezenas de estrelas negras de primeira grandeza, como Nina Simone, Bessie Smith, Lauryn Hill, Roberta Flack, Aretha Franklin, Whitney Houston e Rihanna.

Quem sabe, algum dia, depois de lerem o livro de Nery, os autodeclarados liberais brasileiros (que geralmente não passam da página 2 dos manuais do liberalismo) possam reconhecer que a meritocracia só terá sentido no Brasil se houver, antes, uma menor desigualdade de oportunidades.

Só assim encurtaremos as imensas distâncias (não apenas geográficas) que separam os extremos entre o paulistano bairro de Pinheiros a Severiano Melo, no Rio Grande do Norte.

2 comentários:

Daniel disse...

Excelente! Parabéns ao colunista, e ao blog que divulga seu trabalho.

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom mesmo!