O Globo
Na contramão do identitarismo, a cantora não
vitimizou mulheres, pretos, gays, latinos. Preferiu celebrá-los
Deve ter havido algum fenômeno paranormal
entre junho e agosto de 1958. No intervalo de menos de três meses, nasceram
Prince, Madonna e Michael
Jackson. É difícil que pelo menos um deles não esteja na trilha sonora da
vida de qualquer sessentão.
Prince mudou de nome, Michael mudou de cor, e
a material girl se tornou mãe de seis filhos (quatro adotados na África). Em
algum momento, nesses 65 anos, o Brasil esteve no meio de seu caminho.
Prince abriu show de Alceu Valença no Maracanã (era o Rock in Rio, e ele preferiu não ser a última atração da noite). Cantou que nada se comparava a nós. Michael subiu o Morro Dona Marta (onde há uma estátua horrenda, em homenagem) e desceu o Pelourinho com o Olodum, cantando que eles não ligam para nós. A única sobrevivente da trinca estará hoje, no Rio, diante de 1,5 milhão de pessoas, mostrando que não liga para o peso de 40 anos de carreira — e que poucos artistas se comparam a ela.
Madonna fez uma checklist de tabus e os foi
quebrando, um a um. Misturou (com gosto) sexo e religião. Transformou o
crucifixo em acessório de moda (dizia gostar do símbolo cristão por causa do
homem nu que havia nele) e comprou briga com ninguém menos que João Paulo II e
Bento XVI. Talvez tenha sido a mais completa tradução do “sexy sem ser vulgar”,
talvez tenha elevado a vulgaridade ao status de arte — vá saber.
Em 1990, Camille Paglia escreveu sobre
“Justify my love”: “O vídeo é pornográfico. É decadente. E é fabuloso”. A mesma
Camille, 25 anos depois, acusou Madonna de se objetificar, ao expor o corpo já
não tão jovem, e de fazer o feminismo retroceder. Madonna respondeu:
— Sou outro tipo de feminista. Uma feminista
má.
Tinha então 58 anos, e ironizou:
— Não envelheça, porque envelhecer é um
pecado.
A feminista do sutiã petulantemente
pontiagudo e as que queimavam (literal ou metaforicamente) sutiãs por
considerá-los símbolos de opressão nunca foram o melhor exemplo de sororidade.
Na contramão do identitarismo, tampouco vitimizou mulheres, pretos, gays,
latinos. Preferiu celebrá-los.
Madonna fez outras escolhas arriscadas.
Envelhecer (esse pecado!) foi uma delas. Janis, Hendrix, Amy, Elvis — e também
Prince e Michael Jackson — sucumbiram às drogas e não tiveram tempo de se
tornar irrelevantes ou de ter de se reinventar década após década. Madonna
encaretou e chegou — influente e em forma — à terceira idade.
Paul
McCartney (outro que optou pela longevidade e levou a coisa a sério)
compôs em 1968 uma canção que fala de uma mãe solo, matando um leão por dia
para sobreviver. Para ela, as manhãs de domingo rastejavam e as tardes de terça
não acabavam nunca; na quinta havia que remendar as meias; e a sexta-feira
chegava como se não fosse para ficar. A canção se chama “Lady Madonna” e não
menciona o sábado. Talvez no sábado essa mulher, que mantém tudo a sua volta
funcionando, pudesse, enfim, descansar.
Quem se arriscar a ir hoje às areias de Copacabana para
o show da incansável Madonna deve estar preparado tanto para terminar na
delegacia fazendo B.O. de roubo do celular quanto para contar às gerações
futuras:
— Meninos, eu vi.
— É a mulher mais importante do século
passado e, se duvidar, deste século vai ser também — disse a exagerada fã Fernanda
Young.
Pode não ser isso, mas é quase.
2 comentários:
Muito legal !
Ótimo texto.
Musicalmente falando,talvez seja mediana,sei lá.
Postar um comentário