sábado, 4 de maio de 2024

Miguel Reale Júnior - Punitivismo eleitoreiro

O Estado de S. Paulo

O obscurantismo prevalece para alimentar o discurso de palanque visando a contentar a população crédula em soluções fáceis

A guerra contra as drogas foi declarada por Richard Nixon em 1971 e reiterada pelos governos que o sucederam. A ONU, por influência norte-americana, editou a Convenção de Viena de 1988, na qual se consagrou a war on drugs, com exigência de punições graves aos usuários.

Nessa época, eu presidia o Conselho Federal de Entorpecentes, contando com conselheiros do nível de Elisaldo Carlini, Sérgio Paula Ramos e Miguel Jorge. O conselho, ao qual então cabia editar a lista de substâncias estupefacientes, decidiu não incluir como entorpecente o chá do Santo Daime, ou ayahuasca, pois, malgrado fosse um alucinógeno, seu uso era limitado e ligado à prática religiosa. A incriminação apenas criaria o comércio clandestino e a tentação do proibido. Estávamos certos. O uso do chá cumpre, até hoje, seu ritual espiritual, de forma restrita.

Quando tramitava no Senado o Projeto de Lei da Câmara n.º 105, em 1999, fui indicado pelo então secretário nacional antidrogas, Wálter Maierovitch, para presidir comissão visando à formulação de projeto substitutivo ao então em apreciação. Essa comissão era composta por especialistas de diversos setores. Nesse projeto, descriminalizava-se o porte de droga para uso próprio, tipificado apenas como mera infração administrativa, sujeito o autor a medidas educativas: encaminhamento aos pais ou responsável; comparecimento pelo prazo máximo de um ano a programa de reeducação, curso ou atendimento psicológico; orientação e apoio temporário por assistente social; participação em programas comunitários; prestação pecuniária (veja meu artigo Quebrando o tabu, Estadão de 2/7/2011). Possivelmente, influência norte-americana levou a Presidência da República a desistir da apresentação do substitutivo.

Na Europa, países descriminalizavam o porte de entorpecente, como ocorreu na Itália, Alemanha, Espanha e Portugal. Em 2004, jovens mestres e doutores de nossa Faculdade de Direito da USP, hoje professores e advogados ilustres (Alberto Toron, Antônio Sérgio Pitombo, Fernando José da Costa, Helena Lobo da Costa, Leonardo Sica, Mariângela Magalhães Gomes, Pierpaolo Bottini, Renato Silveira, Rogério Taffarello, demonstraram, em seminário, que a war on drugs era uma causa perdida, pois jamais haveria um mundo sem drogas.

É fato inconteste que a criminalização do porte para uso próprio apenas alimenta o comércio clandestino e tisna como delinquente o jovem, especialmente a clientela preferencial da polícia, os pobres e negros. Assim, é medida de cunho social e de respeito à privacidade e à liberdade de decisão sobre a própria existência que se repute inconstitucional a criminalização do trazer entorpecente para seu uso. Os jovens flagrados com porção de tóxico não devem ser jogados na lista dos criminosos, com comprometimento de sua biografia, a serem rejeitados, por isso, no mercado de trabalho. A perseguição criminal só valoriza o comércio clandestino e conflita com medidas preventivas e de tratamento.

Nesse sentido, agora decide o Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário n.º 635.659, constatando que a criminalização do porte aumentou em 300% a população carcerária, pois fica sujeita ao arbítrio policial a tipificação como usuário ou traficante, sendo importante a fixação de quantia admissível como indício de uso próprio. Como propõe o ministro Alexandre de Moraes: “Será presumido usuário aquele que adquirir, guardar, ter em depósito transportar ou trazer consigo de 25 a 60 gramas de maconha”. Apenas não entendo por que tão só a maconha.

Mas a decisão do STF causou revolta no Senado, como se o Legislativo fosse aviltado por ter sua lei interpretada pelo Judiciário. Na verdade, se o Senado estivesse de acordo com a interpretação dada, não se sentiria afrontado, a mostrar ser questão real o mérito da decisão.

Com pretenso moralismo, típico de ano eleitoral, sob a pressão, mormente, de senadores bolsonaristas, propôs o presidente do Senado a Emenda Constitucional n.º 45/2023, colocando no capítulo dos Direitos Fundamentais a criminalização do porte de entorpecente, em qualquer quantidade, como se uma norma inconstitucional, só por ser incluída na Constituição, deixasse de ser inconstitucional!

Assim, em grave retrocesso à tendência europeia, a emenda aprovada no Senado cria inciso no artigo 5.º da Constituição do seguinte teor: “A lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”.

Nada pior para o Direito Penal e os direitos humanos do que ano eleitoral: o obscurantismo prevalece para alimentar o discurso de palanque visando a contentar a população crédula em soluções fáceis, sendo ainda mais grave hoje, quando se verifica pelas redes sociais ser maior que o desenvolvimento da inteligência artificial o crescimento da burrice natural.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Texto BRILHANTE, argumentação perfeita! Parabéns ao autor, e ao blog que divulga seu trabalho! Novamente, a nefasta influência BOLSONARISTA no Congresso, neste caso encampada pelo presidente do Senado, ameaça a sociedade brasileira! Colocar na Constituição uma proposta absurda como esta é um desserviço à Nação!