CartaCapital
O “PL do Estupro” e a PEC que criminaliza os
usuários de drogas são reveladores da degradação moral e política do Congresso
Dois episódios maiores, um na Câmara dos Deputados e outro no Senado, e vários menores são reveladores da degradação moral e política do Congresso Nacional como um todo. São reveladores também do oportunismo e da mediocridade política dos presidentes das duas Casas Legislativas. Explicitam claramente a perda de significado e de sentido da representação política, que deveria guiar-se por critérios de prioridade dos interesses da sociedade e do País, diante de tantas urgências e necessidades que a maioria dos brasileiros padece.
No caso da Câmara dos Deputados, o episódio
degradador refere-se ao Projeto de
Lei 1904/24, o chamado “PL do Estupro”, que equipara o aborto ao
homicídio quando realizado após a 22ª semana de gestação, mesmo nos casos de
interrupção da gravidez permitidos pela atual legislação, quando a mulher é
vítima de violência sexual, a gestação traz risco à vida da mãe ou o feto é
anencéfalo. A aprovação da urgência do projeto, o que significa que ele não vai
ser debatido por comissões da Câmara, passará direto para a votação do
plenário, é fruto de algumas conjugações.
Tem-se uma bancada evangélica anticristã
associada ao fascismo de extrema-direita, somada à conduta oportunista e
irresponsável do presidente da Câmara, Arthur Lira,
que embarca em qualquer aventura para aumentar o seu poder de barganha e de
chantagem. Acrescente-se a conduta letárgica do governo Lula e do PT, que só
entraram no debate tardiamente, pressionados pela reação da sociedade, que se
mobilizou para combater o projeto. Parece que setores do governo e do PT temem
confrontar política e ideologicamente a extrema-direita bolsonarista. Esta é a
receita para construir futuras derrotas.
Não é nenhum exagero chamar o projeto de “PL
do Estupro”, pois ele estabelece a possibilidade de punir uma menina violentada
e estuprada com uma pena que será o dobro da pena do estuprador, se o projeto
for aprovado. A Ordem dos Advogados do Brasil produziu um parecer juridicamente
devastador contra o PL 1904/24, classificando-o de “inconvencionalidade,
inconstitucionalidade e ilegalidade”. Essas três qualificadoras jurídicas do
caráter repulsivo da proposta são reveladoras do desprezo que os signatários do
projeto, o presidente da Câmara e os partidos que apoiaram a tramitação de
urgência nutrem pela Constituição, pela sociedade, pelas mulheres em geral e
pelas vítimas de violência sexual em particular.
A OAB enfatiza que o PL do Estupro representa
uma violação dos direitos humanos de mulheres e meninas que foram duramente
conquistados na história. Ao agredir os direitos e a dignidade das mulheres, o
projeto afronta o Estado Democrático de Direito e deixa transparecer que ele se
articula com mentalidades autoritárias que não querem uma sociedade livre e um
Estado laico, que respeite todas as religiões e no qual os fiéis possam
expressar sua fé e suas crenças em paz. Na verdade, esses tiranetes da bancada
evangélica querem instituir um Estado teocrático, transformado em instrumento
de seus imensos negócios econômicos e financeiros.
Para o Instituto dos Advogados do Brasil, a
criminalização das vítimas de estupro é “absurda, injusta e indigna”. As
meninas e adolescentes indefesas, principalmente as mais pobres, são as
principais vítimas desse PL desumano. Em todas as classes sociais, as jovens
costumam ser vítimas de violadores que integram a própria família ou são
próximos dela. Assim, além de violentar, eles agem para sufocar as denúncias de
seus crimes. O projeto termina por ampliar a capa de silêncio que os
estupradores querem impor.
No caso do Senado, o próprio presidente Rodrigo
Pacheco viabilizou uma Proposta de Emenda Constitucional que
criminaliza os usuários de \. Além de irresponsável, a PEC tem um claro intuito
de ampliar a repressão aos jovens pobres e negros das periferias, que já são
vítimas de um sistema social injusto, discriminador e racista. Esses jovens
estarão à mercê da ação inviesada e discriminatória dos aparatos de segurança
pública. Os presídios terão suas superlotações aumentadas e esses jovens serão
jogados nas mãos do crime organizado, que controla os presídios brasileiros.
Pacheco se arvora como jurista defensor do
Estado de Direito, mas vem se revelando um democrata de fachada, que age para
solapar os fundamentos desse mesmo Estado de Direito. Ao afrontar o Supremo
Tribunal Federal, que frequentemente é obrigado a se pronunciar sobre questões
de direitos fundamentais e de liberdade, dada a incompetência e omissão das
Casas Legislativas, o presidente do Senado age como criança mimada que bate o
pé e faz biquinho, porque não consegue ter o que deseja.
A irresponsabilidade política de Lira e Pacheco é uma forma de solapar a democracia ao empunhar pautas que estimulam a disseminação das políticas de ódio e violência. Os dois presidentes revelam que não têm nenhum sentimento de grandeza, de responsabilidade com a sociedade e de compromisso com a democracia. A agenda que eles viabilizam no Congresso não é uma agenda do povo e do engrandecimento do Estado. É a agenda dos medíocres e dos irresponsáveis, que colocam suas ambições pessoais acima dos interesses do País.
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
2 comentários:
Gostaria de ver um comentário sobre a decisão da CNBB em apoiar a PL que tramita no congresso Brasileiro contra o aborto a partir de 22 semanas de gravidez ou seja cinco meses e meio data que a criança já pode nascer e viver Com o seguinte lema :
“ que a mãe e a criança vivam e tenham vida em abundância”
A CNBB não tem membros engravidados após estupro. Se tivesse, teria outra posição.
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