O Estado de S. Paulo
Circunstâncias críticas tornam especialmente claro o lugar que cabe à esquerda na defesa das instituições e na busca das alianças que tal defesa requer
As democracias típicas da “onda” que se
espraiou nas décadas finais do século 20 resistem mais do que se supõe. Essa é
a boa notícia que estudiosos respeitados, a exemplo de Steven Levitsky, têm
buscado ressaltar, ainda que com todas as cautelas que o argumento requer. A
hora permanece difícil, mas a ideia básica desses autores é de que a
modernização das sociedades implica a constituição de uma ordem política plural
e o surgimento de contrapoderes sociais que diminuem as possibilidades de
generalização das autocracias, ao contrário do que aconteceu há cerca de cem
anos.
O quadro daí decorrente seria, portanto, mais compatível com uma árdua e continuada guerra de posições entre regimes democráticos e autoritários em escala global. Choques duros de absorver, como a posição “central” que adquiriram movimentos antes marginais, como o Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha, são de certo modo compensados com a relativa frustração eleitoral de Narendra Modi, na Índia, ou do partido governante na África do Sul, hoje distante do legado conciliador de Nelson Mandela. Ou então, tomando o caso italiano, a primazia de Giorgia Meloni e seus Fratelli d’Italia, de equívoca raiz neofascista, não deixa de ter como contraponto o Partido Democrático, no qual, com contida nostalgia, é possível recolher fragmentos do mais criativo dos antigos partidos comunistas.
Há enigmas de sobra a serem decifrados. Mesmo
quem, como nós, nunca contou com sistemas bem estabelecidos teve como ponto de
referência o espectro partidário europeu. Conservadores e progressistas
distribuíam-se num espaço facilmente reconhecível. Os primeiros podiam ser
tories, democratas-cristãos ou liberais; os segundos, socialistas,
sociais-democratas ou comunistas. A linha divisória entre esquerda e direita
não era uma Muralha da China, uma vez que não foram poucas as tentativas de
grande coalizão ou de terceira via. De todo modo – e isso, naqueles sistemas,
passaria a incluir consistentemente os comunistas –, tomou forma uma sólida
lealdade institucional. Para mencionar o modelo inglês, enfrentavam-se em cada
rodada “o governo e a oposição de Sua Majestade”, independentemente da dureza
da disputa e da contraposição de programas.
O enigma maior consiste em que, feita esta
breve descrição, damo-nos imediatamente conta de que estamos a falar do mundo
de ontem, quase à maneira de um Stefan Zweig. As forças da subversão,
diferentemente dos ruidosos anos 1960, não vêm da extrema esquerda ou da
esquerda extraparlamentar, mas essencialmente da extrema direita. Os populismos
nacionalistas, presentes em praticamente todos os países, diferem entre si e
talvez difiram em pontos relevantes dos seus perigosos antepassados do século
20. Não se pode excluir que, com os recentes êxitos eleitorais, diluam alguma
parte da carga explosiva inicial. É o que se diz, por exemplo, de Giorgia
Meloni. E Marine Le Pen, por cinismo ou senso de oportunidade, defenestrou a
aliança com seus amigos alemães de coloração nazista. Mera figuração, dirão os
céticos, a quem nunca é demais dar ouvidos.
O fato é que esta nova direita dissolve as
formas da política a que estávamos acostumados. Há um certo consenso pelo qual
os partidos da tradição eram como que nomes políticos para as classes sociais
que, sem incorrer em determinismo, estruturavam a produção e constituíam a
espinha dorsal da sociedade. Os movimentos da nova direita parecem dar resposta
eficiente a um mundo desintegrado social e culturalmente, em que os processos
de individualização atingiram uma nova fronteira e desnortearam grandes massas.
Sua demagogia antissistema atrai jovens em número estonteante, reorientando-os
para uma espécie de “grande recusa” de sinal trocado em relação a gerações
anteriores.
A teoria clássica adverte um perigo mortal
quando a nova direita subversiva fagocita ou instrumentaliza a direita
tradicional, constituindo um bloco dominante – e não propriamente dirigente –
que se abate sobre a sociedade, arregimentando-a em termos autocráticos ou
totalitários. Tudo leva a crer que seja essa a condição da respeitável, mas
hoje altamente disfuncional, democracia norte-americana, na qual um dos dois
partidos nacionais deliberada e reiteradamente ignora ritos básicos, como o
reconhecimento de eleições livres e a transferência pacífica de poder. Uma
condição tanto mais grave porque é nela, exatamente, e não nos congêneres
europeus, que em geral se espelha o que o Velho Graça chamava, com sua faca só
lâmina, de “nosso pequenino fascismo tupinambá”.
Nada dissemos até aqui do papel reservado à
esquerda, quando menos à sua parte atenta à centralidade da “questão
democrática”. Circunstâncias críticas, porém, tornam especialmente claro o
lugar que lhe cabe na defesa das instituições e na busca das alianças que tal
defesa requer. Estamos em mar aberto e sob bruma cerrada, circunstância em que
os dramas são verdadeiramente existenciais. Não faz nenhum sentido deixar de
lado a única bússola – a única utopia – que nos resta.
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