domingo, 23 de junho de 2024

Luiz Sérgio Henriques - A bússola que resta

O Estado de S. Paulo

Circunstâncias críticas tornam especialmente claro o lugar que cabe à esquerda na defesa das instituições e na busca das alianças que tal defesa requer

As democracias típicas da “onda” que se espraiou nas décadas finais do século 20 resistem mais do que se supõe. Essa é a boa notícia que estudiosos respeitados, a exemplo de Steven Levitsky, têm buscado ressaltar, ainda que com todas as cautelas que o argumento requer. A hora permanece difícil, mas a ideia básica desses autores é de que a modernização das sociedades implica a constituição de uma ordem política plural e o surgimento de contrapoderes sociais que diminuem as possibilidades de generalização das autocracias, ao contrário do que aconteceu há cerca de cem anos.

O quadro daí decorrente seria, portanto, mais compatível com uma árdua e continuada guerra de posições entre regimes democráticos e autoritários em escala global. Choques duros de absorver, como a posição “central” que adquiriram movimentos antes marginais, como o Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha, são de certo modo compensados com a relativa frustração eleitoral de Narendra Modi, na Índia, ou do partido governante na África do Sul, hoje distante do legado conciliador de Nelson Mandela. Ou então, tomando o caso italiano, a primazia de Giorgia Meloni e seus Fratelli d’Italia, de equívoca raiz neofascista, não deixa de ter como contraponto o Partido Democrático, no qual, com contida nostalgia, é possível recolher fragmentos do mais criativo dos antigos partidos comunistas.

Há enigmas de sobra a serem decifrados. Mesmo quem, como nós, nunca contou com sistemas bem estabelecidos teve como ponto de referência o espectro partidário europeu. Conservadores e progressistas distribuíam-se num espaço facilmente reconhecível. Os primeiros podiam ser tories, democratas-cristãos ou liberais; os segundos, socialistas, sociais-democratas ou comunistas. A linha divisória entre esquerda e direita não era uma Muralha da China, uma vez que não foram poucas as tentativas de grande coalizão ou de terceira via. De todo modo – e isso, naqueles sistemas, passaria a incluir consistentemente os comunistas –, tomou forma uma sólida lealdade institucional. Para mencionar o modelo inglês, enfrentavam-se em cada rodada “o governo e a oposição de Sua Majestade”, independentemente da dureza da disputa e da contraposição de programas.

O enigma maior consiste em que, feita esta breve descrição, damo-nos imediatamente conta de que estamos a falar do mundo de ontem, quase à maneira de um Stefan Zweig. As forças da subversão, diferentemente dos ruidosos anos 1960, não vêm da extrema esquerda ou da esquerda extraparlamentar, mas essencialmente da extrema direita. Os populismos nacionalistas, presentes em praticamente todos os países, diferem entre si e talvez difiram em pontos relevantes dos seus perigosos antepassados do século 20. Não se pode excluir que, com os recentes êxitos eleitorais, diluam alguma parte da carga explosiva inicial. É o que se diz, por exemplo, de Giorgia Meloni. E Marine Le Pen, por cinismo ou senso de oportunidade, defenestrou a aliança com seus amigos alemães de coloração nazista. Mera figuração, dirão os céticos, a quem nunca é demais dar ouvidos.

O fato é que esta nova direita dissolve as formas da política a que estávamos acostumados. Há um certo consenso pelo qual os partidos da tradição eram como que nomes políticos para as classes sociais que, sem incorrer em determinismo, estruturavam a produção e constituíam a espinha dorsal da sociedade. Os movimentos da nova direita parecem dar resposta eficiente a um mundo desintegrado social e culturalmente, em que os processos de individualização atingiram uma nova fronteira e desnortearam grandes massas. Sua demagogia antissistema atrai jovens em número estonteante, reorientando-os para uma espécie de “grande recusa” de sinal trocado em relação a gerações anteriores.

A teoria clássica adverte um perigo mortal quando a nova direita subversiva fagocita ou instrumentaliza a direita tradicional, constituindo um bloco dominante – e não propriamente dirigente – que se abate sobre a sociedade, arregimentando-a em termos autocráticos ou totalitários. Tudo leva a crer que seja essa a condição da respeitável, mas hoje altamente disfuncional, democracia norte-americana, na qual um dos dois partidos nacionais deliberada e reiteradamente ignora ritos básicos, como o reconhecimento de eleições livres e a transferência pacífica de poder. Uma condição tanto mais grave porque é nela, exatamente, e não nos congêneres europeus, que em geral se espelha o que o Velho Graça chamava, com sua faca só lâmina, de “nosso pequenino fascismo tupinambá”.

Nada dissemos até aqui do papel reservado à esquerda, quando menos à sua parte atenta à centralidade da “questão democrática”. Circunstâncias críticas, porém, tornam especialmente claro o lugar que lhe cabe na defesa das instituições e na busca das alianças que tal defesa requer. Estamos em mar aberto e sob bruma cerrada, circunstância em que os dramas são verdadeiramente existenciais. Não faz nenhum sentido deixar de lado a única bússola – a única utopia – que nos resta.

 

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