Folha de S. Paulo
Nesta semana assistimos a mais um festival de
deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito
O ambiente institucional brasileiro vem
passando por um preocupante processo de degradação na última década, que se
reflete numa dificuldade cada vez maior de a lei servir como instrumento de
determinação de condutas e estabilização de expectativas. E onde a lei não
impera, prevalecem o arbítrio, a violência, o oportunismo, o mandonismo e uma
perversa forma de extrativismo institucional.
A fragilidade do direito brutaliza a vida das pessoas, especialmente daquelas que estão mais vulneráveis ao crime, ao arbítrio e à negligencia do Estado ou mesmo à ação predatória de algumas poderosas corporações. A fragilidade da lei deteriora a eficácia das políticas públicas, das instituições democráticas e, por consequência, a confiança na democracia. A fragilidade da lei, por fim, reduz a eficiência dos mecanismos de mercado, inibe investimentos e emperra processos de desenvolvimento econômico e social mais sustentáveis e equitativos.
É fato que a lei jamais foi levada muito a
sério entre nós. A indecente e persistente desigualdade, a perversa
"cordialidade", o patrimonialismo têm conspirado incessantemente
contra um enraizamento mais profundo do império da lei nessas paragens. O pacto
constitucional de 1988, no entanto, favoreceu algum avanço no fortalecimento de
nossas instituições. Esse processo positivo, ainda que ambíguo, começou a
descarrilhar a partir de 2013, desaguando na tentativa de abolição do Estado
Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2023. Se é verdade que sobrevivemos,
ainda que por um triz, o processo de degradação do Estado de Direito não foi
interrompido.
Importa lembrar que direito não tem força
própria. Sua efetividade depende, primariamente, dum delicado equilíbrio entre
aqueles que têm poder na sociedade. Sem que os poderosos se convençam de que é
mais vantajoso resolver suas disputas e conflitos por intermédio das regras do
jogo, o Estado de Direito não para de pé. Quando esse equilíbrio político não é
alcançado ou se rompe, a vida social, política e econômica se degradam.
A efetividade do governo das leis também
depende da disposição daqueles que habitam as suas instituições em cumprir com
suas responsabilidades de elaborar, implementar e aplicar as leis de maneira
correta e consistente. Quando as instituições responsáveis pela produção e
aplicação do direito não cumprem com suas atribuições, o direito deixa de ser
um instrumento crível para contribuir com a coordenação pacífica da sociedade.
Sem que os detentores do poder vejam vantagem em resolver seus conflitos de acordo
com as regras do jogo, o Estado de Direito não sobrevive.
Nesta semana assistimos a mais um festival de
deslealdades com o nosso combalido Estado de Direito patrocinadas por maiorias
parlamentares, governadores de estado e até ministro do Supremo. A resistência
às câmeras policiais, a implosão de acordos de delação, o jogo perverso de
vetos são apenas exemplos dessa insurgência contra o direito, por parte de quem
jurou defender e garantir a Constituição e as leis.
Essa completa falta de cerimônia, manipulação
ostensiva e desrespeito à legalidade têm aprofundado uma perigosa sensação de
anomia —de ausência de regras—, gerando um ambiente em que prevalecem apenas as
lógicas da dominação, do arbítrio e do ardil. Romper esse círculo viscoso de
degradação da legalidade é hoje nosso maior desafio. Sem o enraizamento do
império da lei, dificilmente alcançaremos soluções para os outros enormes
desafios que temos pela frente.
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