Folha de S. Paulo
Começo
a duvidar de que haja um sentimento sincero de ultraje moral nessa conduta
Na semana
passada, escrevi sobre como valores como
tolerância, racionalidade e confiança recíproca foram drenados do debate
público nacional, deixando em seu lugar a aridez dos conflitos buscados a todo
custo e sem razão substancial. O que torna impossível tanto uma convivência política
não beligerante quanto a negociação de projetos comuns.
Expresso esse
lamento não por alguma nostalgia de um passado mítico em que o lobo pastava com
o cordeiro ou por alguma utopia de futuro em que cidadãos socráticos resolvem
seus inevitáveis desacordos numa troca aberta e leal de razões, orientada
exclusivamente pelo princípio de que o melhor argumento deve prevalecer.
Vivemos em uma sociedade pluralista, em que as diferenças são cada vez mais numerosas e conscientemente elaboradas. Ou a nossa jovem democracia, um projeto experimental perene, encontra uma maneira de acomodar e negociar essas diferenças, ou será substituída por um regime autocrático liderado pela parte mais forte, como se tentou fazer em 8 de janeiro.
O debate público
é, ao mesmo tempo, um sintoma de como as forças sociais distintas lidam com
suas cada vez mais agudas diferenças e um teste de conceito para ver se uma
democracia pluralista é capaz de sobreviver entre nós, apesar de tanto
radicalismo, dogmatismo e fúria social.
Entramos numa fase
em que o conflito no debate público se transformou em um rito e um modelo de
negócio.
Não há semana em
que um grupo não repita o ritual que começa com uma denúncia de grave violação
de alguma crença ou valor por parte de alguém, mesmo que nada de grave tenha
realmente ocorrido, passa por ondas sucessivas de descomposturas ao considerado
infrator, para eventualmente culminar nos ataques diretos ao cancelado:
ameaças, extensivas à família, revelações voltadas para a destruição de sua
credibilidade ou reputação e pressões sobre empregadores ou patrocinadores.
As descomposturas,
ou seja, os ritos de repreensão pública ríspida, dura, desrespeitosa e
humilhante, são a ordem do dia e qualquer um está autorizado a fazê-las.
Ultimamente, começo a duvidar de que um sentimento sincero de ultraje moral
esteja por trás dessa conduta. Apenas se repete um rito com dois objetivos
calculados: reafirmar para o seu grupo a adesão aos valores compartilhados nele
e acumular capital moral no mercado público de virtudes, mostrando-se como um
zeloso defensor do Bem, do Belo e do Verdadeiro.
O grupo sai
fortalecido do episódio ao reforçar suas crenças e mostrar aos seus como são
vis e ativos os inimigos; o autor da descompostura sobe no apreço coletivo de
sua comunidade ideológica e, muitas vezes, até "monetiza" a estima
social; por fim, há um considerável reforço na autoestima de quem
"performa" o rito de humilhação do adversário pela reafirmação de sua
superioridade moral.
Sim, fatura-se com
cancelamentos e patrulhamento ideológico com a mesma aura de santidade com que
outras pessoas faturam com crenças religiosas e oferta de curas e milagres.
Um desses rituais
aconteceu na semana passada com Francisco Bosco, que, por ironia do destino, é
um autor que fala justamente sobre a degradação e a necessidade de recuperação
do debate público nacional. A gravíssima infração moral consistiu em concordar
com Olavo de Carvalho, o falecido guru da extrema
direita, sob um único aspecto e com ressalva: "durante as últimas décadas,
a universidade brasileira concentrou
excessivamente uma perspectiva ideológica e política de esquerda".
Pode-se rejeitar
factualmente a hipótese, integralmente ou em parte, e podem-se traçar
ulteriores distinções, claro, mas nenhuma imoralidade foi praticada e duvido
que, examinando-se com honesta sinceridade, a maioria de nós não encontre um
jeito de concordar pelo menos em parte com o que foi dito.
Por que, então, a
histeria pública na esquerda com essa tese? Por que tanta gente atacou Bosco,
despindo-o acintosamente de seu inegável papel de intelectual, acusando-o de
ignorante, malicioso ou desprezível conservador?
A resposta é
espantosamente simples. A frase "Olavo (sob este aspecto) tem razão"
acertou em um nervo exposto de uma esquerda cujo time está sempre pronto para
disputar campeonatos morais. Olavo não pode ter razão; a razão e Olavo nunca se
encontraram, diz o dogma. Até relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia,
mas dizer que Olavo teve alguma razão em algum momento da sua enorme obra é
pecado passível de excomunhão. O certo, inclusive, é nunca dizer
"Olavo", mas "Aquele Cujo Nome Não Pode Ser Pronunciado". É
triste, mas é só isso.
É isto um debate
público?
Um comentário:
Francisco Bosco,adoro o filho e o pai,João Bosco.
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