Valor Econômico
Ocidente precisa sobreviver como uma
comunidade de democracias liberais e terá perdido a luta se o nacionalismo
autoritário destruir isso
próximo presidente dos Estados Unidos declara
que seu país não cumprirá mais o compromisso assumido sob o tratado da Otan, de
sair em defesa de um membro da organização. Os europeus não conseguem encontrar
um substituto confiável. Temendo a ameaça de uma Rússia revanchista, alguns
passam a ser leais à Rússia e à China. A Europa se dissolve.
Isso é plausível? Espero que não. Mesmo
assim, por trás do pesadelo está a realidade. Estamos entrando em um período de
ressurgimento do nacionalismo, da xenofobia e do autoritarismo.
Como Oscar Wilde poderia ter observado:
“Eleger Donald Trump presidente uma vez pode ser considerado um infortúnio, mas
elegê-lo duas vezes parece descuido”. Sua volta indicaria algo muito
perturbador sobre o estado da superpotência ocidental.
Robert Kagan, da Brookings Institution, observa em um podcast que fez comigo que a proximidade de Trump com o poder se deve a forças antiliberais poderosas. As implicações dessas atitudes para a democracia dos EUA são preocupantes. Mas essa preocupação não está limitada ao âmbito interno.
O “América em primeiro lugar” de Trump foi um
slogan usado pelo aviador Charles Lindbergh em oposição ao apoio dos EUA ao
Reino Unido na Segunda Guerra Mundial. Essa oposição só cessou depois que o
ataque do Japão a Pearl Harbor em dezembro de 1941 forçou os EUA a entrarem na
guerra.
Putin é inimigo da ordem europeia pacífica. A
decisão de Pequim de apoiá-lo foi um divisor de águas. O Ocidente precisará se
manter unido para se defender da competição da China. Mas Trump e seus
imitadores na Europa tornariam tal parceria quase impossível
Lindbergh era um isolacionista. Na medida em
que pode ser definido, Trump é um unilateralista não confiável. Mas, no
contexto da guerra da Rússia na Ucrânia, esta pode não ser uma diferença
crucial. Ele ajudaria, ou ele veria isso como “uma disputa num país distante,
entre pessoas sobre as quais não sabemos nada”, nas notórias palavras de
Neville Chamberlain sobre a Tchecoslováquia em 1938?
Por mais de um século a segurança da Europa
dependeu da presença dos EUA. Infelizmente, depois da Primeira Guerra Mundial,
o Senado repudiou a Liga das Nações e assim os EUA se retiraram. Isso levou ao
ressurgimento da Alemanha como potência militar dominante no continente e assim
à Segunda Guerra Mundial. Felizmente, os EUA continuaram empenhados na era do
pós-guerra. Após o colapso da União Soviética em 1991, eles podem ter
acreditado, de modo plausível, que deveriam se retirar novamente.
Mas agora, depois da invasão não provocada da
Ucrânia pela Rússia, esse não pode ser o caso. A China, também cada vez mais
vista pelos EUA como uma ameaça, está fornecendo um forte apoio moral e prático
à Rússia, incluindo bens de dupla utilização valiosos para o prosseguimento de
sua guerra. Mais uma vez isso justifica o compromisso. O que Trump faria? Esta
poderá ser em breve uma questão relevante.
O colapso da ordem de segurança da Europa
liderada pelos EUA teria repercussões globais. A derrota da Ucrânia certamente
encorajaria a China em relação a Taiwan. Mas, além disso, as dúvidas sobre as
garantias de segurança na Europa teriam implicações à credibilidade dessas
garantias para o Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Por toda a
Ásia, países tentariam se aproximar da China.
Infelizmente, a União Europeia também está
ameaçada por nacionalistas, xenófobos e autoritários internos. Os partidos com
essas atitudes deverão ampliar substancialmente sua presença nas eleições
parlamentares europeias. Com o tempo, espera-se que mais deles chegarão ao
poder: Marine Le Pen poderá até mesmo ser o próximo presidente da França.
Quando se pensa nas dificuldades criadas apenas pelo putinismo de Viktor Orbán,
as perspectivas são sombrias.
O nacionalismo também está refletido no
afastamento do comércio liberal, que vem ganhando força no mundo todo. Trump
teve um papel de liderança na legitimação do protecionismo durante o seu
mandato. Biden fez o mesmo. A atual suspeita em relação ao comércio tem muitas
causas: o aumento da competição da China na produção industrial; as
interrupções nas cadeias de abastecimento após a pandemia de covid-19; a
competição estratégica; a crença crescente na política industrial; e o repúdio
à própria noção de multilateralismo, com a notável inclusão da Organização
Mundial do Comércio (OMC).
O governo Biden desenvolveu uma agenda
relativamente sofisticada em torno da ideia de “reduzir os riscos” no comércio.
Mas a ação está ficando mais brutal. Assim, os EUA impuseram tarifas de 100%
sobre as importações de veículos elétricos da China, por uma mistura de
motivações de segurança e política industrial. Em resposta, Trump disse que
“eles também têm que fazer isso em outros veículos e precisam fazer isso com
muitos outros produtos porque a China está comendo nosso almoço neste momento”.
É altamente provável que, no poder, ele adote medidas agressivas contra as
importações não só da China, mas de seus aliados.
A reviravolta no comércio já é profunda. Ao
longo do período do pós-guerra, os EUA, influenciados pelas lembranças da
década de 30 e os objetivos estratégicos do pós-guerra, promoveram o
multilateralismo e as economias de mercado liberais. Há agora um entendimento
cada vez mais bipartidário de que isso foi um erro grave. Embora o governo
Biden deseje permanecer relativamente próximo de seus aliados, sua agenda,
também, é de certa forma a “América em primeiro lugar”. Mas Trump é muito mais
descaradamente nacionalista do que Biden.
Putin é um inimigo inequívoco de uma ordem
europeia pacífica. A decisão da China de apoiá-lo foi, para mim, um divisor de
águas. Mas quanto mais o mundo ocidental quiser se defender da competição da
China, mais ele também precisará para se manter unido. O nacionalismo de Trump
ou de seus imitadores na Europa tornaria tal cooperação quase impossível.
Mesmo na nossa era da competição estratégica,
a cooperação com a China continua sendo essencial, especialmente em relação ao
clima. O Ocidente também precisa responder mais generosamente às preocupações
dos países em desenvolvimento e emergentes. Mas, acima de tudo, ele precisa
sobreviver como uma comunidade de democracias liberais. Esta é uma necessidade
moral e prática. Se o nacionalismo autoritário destruir isso, o Ocidente terá
perdido a luta.
Em 1939, o poeta WH Auden escreveu sobre o
que ele considerou uma “década má e desonesta”. Como parecerá a nossa em
2029? (Tradução de Mário Zamarian)
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