segunda-feira, 8 de julho de 2024

Humberto Saccomandi - Esquerda e centro vencem na França, mas conseguirão governar juntos?

Valor Econômico

Coligação da Nova Frente Popular (NFP) já é heterogênea, e deverá governar com o bloco centrista Juntos, liderado pelo presidente Emmanuel Macron

A aposta do presidente Emmanuel Macron, de antecipar eleições para conter o avanço da extrema direita na França, deu certo afinal. Mas resultou num Parlamento sem maioria e extremamente fragmentado. E levará, possivelmente, a um novo governo fraco, que terá dificuldade de adotar políticas coerentes e de enfrentar desafios impopulares, como reduzir o déficit público, que é uma prioridade na economia.

A coligação Nova Frente Popular (NFP), que terá a maior bancada na Assembleia Nacional, é composta por cinco partidos, que vão do centro-esquerda (socialistas e verdes) até a extrema-esquerda (comunistas, França Insubmissa e anticapitalistas). Essa coligação, em si já heterogênea, deverá governar com o bloco centrista Juntos, liderado por Macron, e que também é formado por cinco partidos, que vão do centro-direita ao centro-esquerda.

Essa enorme fragmentação política é inédita na história recente da França, onde o mais comum desde a Segunda Guerra era haver um partido dominante. Já houve governos minoritários, como o atual, mas sempre com uma força dominante. Agora será necessário formar a primeira grande coalizão de governo, o que em si já é um fator de incerteza e instabilidade.

A NFP, como maior bancada, possivelmente indicará o novo premiê. Mas a definição de um nome de consenso na coligação e que seja palatável para o bloco centrista de Macron será o primeiro teste dessa futura coalizão de governo.

Outro foco de tensão será a convivência no governo entre Macron e um premiê de esquerda. É o que os franceses chamam de cohabitação. Mas esta cohabitação será diferente das anteriores, pois o premiê não será de oposição, mas possivelmente estará em coalizão com Macron. Isso também é inédito.

Por fim, é difícil imaginar um programa de governo que consiga juntar a extrema esquerda anticapitalista aos liberais. Diferentemente da Alemanha, onde o programa de governo precisa ser redigido e aprovado a priori pelos partidos da coalizão, a França deverá ter um acordo mais informal de governo, cuja coesão será testada a cada votação e a cada política que precise ser definida.

Um dos temas mais complexos deverá ser a redução do gasto público. O déficit público francês está em torno de 5,5% do PIB, um nível muito alto, quase o dobro do teto de 3% previsto no acordo de adoção do euro (a moeda comum europeia).

A NFP fez inúmeras promessas de benefícios sociais, como aumento de salários e subsídios a serviços públicos, que não só dificultam um corte de gastos, mas que possivelmente implicariam num aumento do déficit, se não houver aumento de impostos.

Dois exemplos ficaram evidentes já na campanha eleitoral. A NFP prometeu revogar o aumento da idade de aposentadoria, de 62 para 64 anos, aprovado em 2023, por iniciativa de Macron. Mesmo com a reforma, a França ainda tem uma das idades de aposentadoria mais baixas da União Europeia, onde na maioria dos países a idade varia de 65 a 67 anos. A NFP se opõe ainda à reforma que reduz o valor do seguro-desemprego e que foi proposta em abril pelo governo.

Outro ponto óbvio de tensão será a política de imigração. A NFP prometeu também revogar a lei da imigração de 2023, que dificultou a concessão de asilo no país e cortou benefícios para imigrantes em situação ilegal, entre outras restrições. A contenção da imigração é um dos pilares do programa da extrema-direita, que obteve um terço dos votos na eleição de ontem. Facilitar a entrada de migrantes possivelmente reforçará a extrema-direita nas próximas eleições.

Essa fragmentação política favorece Macron. O presidente, no sistema de governo francês, cuida das políticas externa e de defesa. Mas, diante de um primeiro-ministro fraco, acaba influenciado e determinando as demais políticas de governo. É o que deve acontecer.

A ameaça da extrema-direita, que vai liderar a oposição, permanecerá. Em 2017, quando Macron derrotou Marine Le Pen pela primeira vez nas eleições presidenciais, houve uma percepção disseminada e equivocada de que o avanço da extrema direita havia sido contido. Agora, parece mais que foi adiado.

O elevado comparecimento às urnas ontem, de cerca de 70%, foi o maior desde 1981. Ou seja, uma maioria que estava silenciosa votou para rejeitar a extrema-direita. Isso confirma a tendência de que partidos ou candidatos extremistas prosperam quando a abstenção é maior, como ocorreu nas recentes eleições europeias, em junho. Por isso o trumpismo nos EUA tenta dificultar o voto.

Mas é ingênuo pensar que a Reunião Nacional, partido de Le Pen, não possa ir além dos cerca de um terço dos votos que obteve ontem. Muito vai depender da eficácia do governo que sairá dessas eleições. E essa eficácia é, no mínimo, bastante incerta.

 

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