Folha de S. Paulo
Transparece na perda das ilusões, rompimento
das simulações sedimentadas que representavam a glória da América
O confronto Biden/Trump ficará na história como um dos episódios mais deprimentes da política norte-americana, também como índice relevante da suspeita de que as democracias possam estar doentes, mais do que apenas enfraquecidas. Doença implica afetação negativa num organismo, suscetível de uma alteração essencial. Por analogia, ainda que mantidos os protocolos formais, os processos substanciais das democracias passariam por desencadeamentos morbosos que afetam povo e lideranças.
Os EUA refletem com intensidade essa mutação,
precisamente porque sempre se apregoaram ao mundo como paradigma democrático.
Muito intrigou décadas atrás a afirmação de Jean Baudrillard de
que a América seria a única cultura primitiva da atualidade, por sua
"indiferença crua a toda cultura" (em "Carnaval e
Canibal"). Ele a via como um grande país, com as melhores universidades,
mas sua potência tecnológica e militar, ancorada na Bíblia, faria tábula rasa
da ideologia humanista que lastreava a civilização europeia. Alexis de Tocqueville já percebera no século 19 que "a
primeira de suas instituições políticas é a religião".
A metáfora patológica enseja a hipótese de
que a nação americana não curou jamais as feridas de sua unidade republicana,
obtida após uma guerra civil desastrosa, quando teve de silenciar o ódio e a
culpa pelo sangue derramado de 780 mil compatriotas. Além de calar sobre o
extermínio dos indígenas, dos escravos africanos, dos imigrantes chineses. E
camuflar, pela simulação de liberdade universal, 248 anos de democracia com
apenas 16 sem guerras externas. Um karma nacional pesado.
A morbidade pode chamar-se
"passadismo", recidiva demencial de um passado tóxico no presente.
Transparece na perda das ilusões, rompimento das simulações sedimentadas que
representavam a glória da América. A emergência da ultradireita avassala o povo, o Congresso e até a
Suprema Corte como uma espécie de retorno do recalcado, isto é, da barbárie
sulista, que escande versículos ao modo de tábuas da lei. O trumpismo é descarga de uma constipação histórica.
Quem entre nós pensa que não haveria nada
mais rebarbativo do que um minion rezando para pneu deveria ouvir um caipira
(redneck) no centro-oeste americano ou um herdeiro de escravocrata no sul,
Bíblia e arma na mão, apostrofando negros e imigrantes. A síndrome é endêmica:
na França, a ultradireita pede em cartazes "salvemos as crianças
brancas". Na Argentina de
Milei, como no tango Cambalacho, "mais
vale um burro que um grande professor".
Nos EUA, deseducados pelo neoliberalismo,
democratas e republicanos não formaram lideranças sadias, sucumbindo à demência
senil. O confronto Biden/Trump foi um surto morboso. Não houve debate,
debateram-se: um com problemas cognitivos, o outro com mentiras indecorosas.
Dois dementes, um vexame patológico.
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