O Estado de S. Paulo
Vitória trabalhista reverte um processo de potencial desmembramento do Reino Unido
A vitória dos trabalhistas no Reino Unido
representa um alento, diante da onda de nativismo, conservadorismo e abuso de
poder que assola as democracias ocidentais. As eleições britânicas equivaleram
a um plebiscito acerca dos últimos 14 anos de governos conservadores,
associados a essas tendências destrutivas.
O Reino Unido foi a primeira democracia
ocidental a sucumbir ao radical populismo, materializado na vitória do
referendo do Brexit em 2016. Nesse sentido, talvez seja natural que se torne o
primeiro país a superar essa onda, embora não haja garantias de que o ciclo
tenha terminado: dependerá do êxito do novo governo.
Essa não é uma leitura que privilegia a “esquerda” em detrimento da “direita”. Sob a liderança de Keir Starmer, o Partido Trabalhista é fiscalmente responsável e não estatista, diferentemente da esquerda brasileira, por exemplo. Assim como aconteceu nos EUA, na França e na Itália, a direita britânica foi capturada por um líder que desvirtua os seus valores tradicionais.
Boris Johnson foi sucedido por dois
primeiros-ministros inexpressivos, Liz Truss e Rishi Sunak, incapazes de
reverter os danos que o líder populista causou ao partido e ao país. Diante do
flerte de Johnson com o nativismo, os conservadores foram prejudicados pela
concorrência com o Partido Reformista Britânico, de Nigel Farage, um
ultranacionalista que floresceu na campanha pelo Brexit, em 2016.
Os trabalhistas conquistaram 412 cadeiras, no
Parlamento de 650. A bancada de 122 cadeiras é a menor da história moderna do
Partido Conservador. A principal causa da vitória, a estagnação econômica, é ao
mesmo tempo o maior desafio à longevidade do domínio trabalhista.
O poder de compra do britânico médio é menor
hoje do que há cinco anos, quando o Parlamento substituído agora foi eleito.
Fazia 60 anos que isso não acontecia. Claro que, no meio do caminho, houve o
Brexit, a pandemia e o choque gerado pela guerra na Ucrânia e sanções contra o
petróleo e gás da Rússia.
A economia cresceu 0,1% em 2023 e a inflação
foi de 4% – uma combinação perversa. Com déficit público de 4,4%, o novo
governo não tem margem para estimular a atividade econômica. Pode ter de elevar
impostos.
Uma das opções é incrementar a produtividade.
O maior obstáculo é o envelhecimento da população: um em cada quatro britânicos
tem mais de 60 anos, e a idade média é de 40.
VOLTA. O caminho mais certeiro para injetar
dinamismo na economia e na sociedade britânicas seria a volta do país à União
Europeia (UE). Esse movimento será bloqueado por Bruxelas no horizonte visível,
por causa do risco de retorno dos conservadores ao poder, e de repetição do
trauma do Brexit.
Tudo isso é importante, para a sustentação no
tempo do significado histórico da derrota conservadora. Por ora, ela significa
punição da conduta permissiva do partido com seu líder máximo. Inversamente,
ela valoriza a honestidade e respeitabilidade das instituições.
Johnson mentiu para os eleitores acerca dos
ganhos ilusórios do Brexit; violou as regras da pandemia; induziu a então
rainha Elizabeth a suspender o Parlamento para facilitar a aprovação da saída
da UE, o que foi revertido pela Corte Suprema, num constrangimento monumental
para a monarquia – para ficar em apenas três exemplos.
Além disso, a vitória trabalhista reverte um
processo de potencial desmembramento do Reino Unido. O partido venceu em todas
as regiões que formam a União: Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte, além
da Inglaterra.
O Brexit e a liderança errática dos
conservadores estimularam o movimento de independência da Escócia. A vitória
trabalhista veio acompanhada da derrota do Partido Nacional Escocês, que
defende a independência. As regiões se sentirão muito mais parte do governo em
Londres do que antes: as bancadas escocesa e galesa passam a representar 15,5%
da maioria trabalhista; antes, elas respondiam por apenas 5,4% da maioria
conservadora.
Na Irlanda do Norte, os eleitores em favor da
união com a Grã-Bretanha se dividiram, enfraquecendo essa corrente, chamada de
unionista. Já os que apoiam a separação da região e absorção pela República da
Irlanda, chamados republicanos, continuam unidos em torno do Sinn Féin.
Entretanto, o antigo braço político do extinto Exército Republicano Irlandês
(IRA) não fez campanha em favor da separação.
No balanço de todos esses resultados, o Reino
Unido emerge mais unido nessa eleição. E sua democracia, mais forte.
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