Nova reforma da Previdência se tornou inadiável
O Globo
Estudos constatam explosão de benefícios,
déficit crescente e um sistema insustentável
Passados cinco anos da última reforma
da Previdência,
está clara a urgência de outra. É preciso examinar pontos que passaram por
correções suaves ou não foram alterados. É o caso da diferença na idade de
aposentadoria de homens e mulheres, dos regimes especiais de servidores
públicos, da aposentadoria rural ou dos benefícios assistenciais. A indexação
de reajustes ao salário mínimo — que consumirá com o tempo todos os ganhos
fiscais da última reforma — contribuiu para chamar a atenção para os
desequilíbrios previdenciários. Mas, em razão da inexorável realidade
demográfica, eles são maiores e mais profundos.
Um novo estudo de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) demonstra o tamanho do problema. No início deste século, o regime do INSS que atende aos trabalhadores da iniciativa privada (RGPS) arrecadava receitas equivalentes a 84,7% das despesas. De lá para cá, o buraco só fez aumentar e, no ano passado, a arrecadação foi de apenas 65,9% dos gastos. Buscar o equilíbrio aumentando somente a alíquota de contribuição é irrealista. Atualmente, o empregado paga entre 7,5% e 14% do salário. Pelas estimativas do estudo, para custear o RGPS, a alíquota deveria ser de 36%. Um sistema com déficit progressivo é, por definição, insustentável.
Olhando para frente, a situação tende a
piorar. Nos próximos 26 anos, a proporção de contribuintes ficará na melhor
hipótese inalterada, enquanto a de idosos deverá dobrar. Os reflexos do
envelhecimento da população nas contas da Previdência não são projeções
distantes. Nos dez anos entre 2012 e 2022, os contribuintes cresciam 0,7% ao
ano, enquanto os benefícios pagos subiam 2,2%. Reportagem do GLOBO revela que,
desde os anos 1980, a expectativa de sobrevida de quem se aposenta aumentou 3,6
anos para homens e 5,3 anos para mulheres, segundo estudo da Fundação Getulio
Vargas (FGV). Não haverá como manter as mesmas idades de aposentadoria tendo de
pagar mais ao longo do tempo
Uma das boas notícias recentes foi o aumento
dos empregos com carteira assinada. Com risco menor de processos trabalhistas
em razão da reforma de 2017, as empresas passaram a formalizar mais
funcionários. A mudança tem reflexos positivos no cofre da Previdência, mas
seria ingênuo supor que equilibrará as contas. Os pesquisadores do Ipea
pensaram num cenário hipotético em que todo o setor informal passasse a
contribuir para o INSS. Para financiar aposentadorias, pensões e Benefício de
Prestação Continuada (BPC), o desconto mensal do salário teria de ser de 25,6%.
A Previdência existe para garantir o sustento
na velhice, não para compensar a deficiência de programas sociais ou para
corrigir distorções não previdenciárias. Outras políticas públicas devem ser
criadas para atender aos mais necessitados. No livro recém-lançado “A reforma
inacabada — o futuro da Previdência Social no Brasil”, os economistas Fabio
Giambiagi e Paulo Tafner propõem uma nova rodada de mudanças. Constatam que há
compromissos demais para dinheiro de menos. O Brasil precisa fazer escolhas inadiáveis.
Quanto mais cedo as fizer, menos dolorosas serão.
Regulação do mercado de carbono é essencial
também para coibir fraudes
O Globo
PF desbaratou quadrilha que negociou R$ 180
milhões em créditos fraudados na Amazônia
Os estelionatários não poupam sequer empresas
que buscam créditos de carbono para compensar suas emissões de gases do efeito
estufa. Em junho, a Polícia
Federal (PF), no âmbito da Operação Greenwashing, prendeu o
empresário Ricardo Stoppe Junior, que atuava no mercado de créditos de carbono
lastreado em terras da União griladas na Amazônia. De acordo com a
PF, ele esteve em dezembro na COP28, em Dubai, onde negociou R$ 180 milhões em
créditos de carbono fraudados. O esquema dos estelionatários, segundo as
investigações, se apropriou ilegalmente de 537 mil hectares na Amazônia —
área equivalente à do Distrito Federal — por meio de certificados falsos e da
inserção de registros fraudados em cartórios e órgãos públicos.
A gravidade do golpe expõe a lacuna que ainda
persiste na regulamentação dos negócios com créditos de carbono, essenciais
para financiar projetos de conservação ambiental. Ainda à espera de aval do
Congresso, o mercado de carbono opera apenas de forma voluntária e informal.
Empresas que, por suas características — donas de áreas de florestas naturais
ou reflorestadas —, comprovem capturar mais carbono da atmosfera do que emitem
obtêm saldo positivo para vender a quem não consegue compensar suas emissões.
Em razão dos acordos internacionais que imporão tetos às emissões, será
fundamental oficializar a compra e venda desses créditos como forma de
incentivar a redução.
A descoberta da quadrilha que fraudava
créditos chama a atenção para a necessidade de maior vigilância nos negócios
relacionados à preservação ambiental. Ela contava com a conivência de pelo
menos dez servidores públicos do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas
(Ipaam) e da Secretaria estadual das Cidades e Territórios. Entre eles, dois
ex-secretários de estado. Segundo a PF, outro envolvido no esquema é
ex-superintendente do Incra no Amazonas, no cargo até fevereiro de 2023. Ele é
acusado de ter ajudado a quadrilha a retificar a matrícula de um terreno usado
para o golpe.
Há fartas gravações de conversas entre os
denunciados. Num
desses áudios, que constam do relatório da PF a que o GLOBO teve acesso, eles
combinam o pagamento de propina, depois confirmado pelo registro de
uma movimentação de R$ 139 mil em dinheiro. Uma empresa fantasma em nome do
filho de outro servidor do Incra movimentou R$ 5,5 milhões em três anos. A
quadrilha também usava áreas griladas para legalizar madeira retirada
ilegalmente de reservas indígenas e de regiões protegidas. Ao todo, provocou
prejuízos de R$ 606 milhões.
Por ser vital a conservação ambiental, é
imperioso que os mecanismos de financiamento de projetos sustentáveis não sejam
desacreditados por golpes como os dessa quadrilha com atuação no Amazonas. A
regulamentação eficaz do mercado de carbono é fundamental não apenas para criar
incentivos à redução das emissões, mas também para coibir fraudes do tipo.
Nunes recebe boas notícias, mas é cedo
Folha de S. Paulo
Datafolha mostra prefeito à frente de Boulos
no 2º turno; outros postulantes e líderes nacionais podem afetar disputa
A mais recente pesquisa do Datafolha sobre
a eleição paulistana trouxe boas notícias para o prefeito Ricardo Nunes (MDB). Muito
ainda pode acontecer, entretanto, nos três meses que faltam para o primeiro
turno da disputa.
Nunes se mantém tecnicamente empatado
com Guilherme
Boulos (PSOL)
na liderança da corrida, repetindo sondagens anteriores. No cenário que
considera todos os candidatos, o primeiro tem 24%, e o segundo, 23% das
intenções, invertendo
as cifras da sondagem realizada no final de maio.
É na simulação de um segundo turno entre os
dois, a primeira conduzida pelo instituto, que está o melhor resultado para o
emedebista. Ele marca 48%, a uma distância considerável dos 38% do adversário.
Outros 12% inclinam-se a votar em branco ou nulo, e 2% não souberam responder.
Em boa parte, a vantagem pode ser explicada
pela maior rejeição a Boulos entre os paulistanos. Um terço (33%) do eleitorado
local declara que
não votaria nele em nenhuma hipótese; não mais de 24% dizem o mesmo
sobre o prefeito.
Por fim, a gestão municipal, embora não
desperte números dignos de entusiasmo, voltou a merecer uma melhora da
avaliação dos entrevistados. É considerada boa ou ótima por 31%, ante 26% em
maio, e ruim ou péssima por 22%, abaixo dos 25% apurados antes.
Numa metrópole tradicionalmente pouco
satisfeita com governantes e em momento de renovação de lideranças, a disputa
deste ano tende a ser acirrada —embora ainda distantes dos primeiros
colocados, outros
postulantes se mostram capazes de influenciá-la.
À direita, Pablo Marçal (PRTB)
tem 10% das intenções no cenário com todos os candidatos e busca o voto
bolsonarista. Nesse campo, Nunes tenta o equilibrismo de contar com o apoio do
PL de Jair Bolsonaro sem se deixar contaminar pela rejeição elevada ao
ex-presidente no eleitorado da cidade.
O apresentador José Luiz Datena (PSDB) marca
11%, mas sua permanência na corrida é colocada em dúvida. Entre seus eleitores
declarados, 52% preferem Nunes no segundo turno, enquanto 33% apontam Boulos. O
tucano também já esteve cotado para vice na chapa de Tabata Amaral (PSB).
Ela, de discurso moderado, tem 7% das
intenções, e seus apoiadores pendem mais para o psolista (56%) que para o
emebebista (33%) numa segunda rodada de votação.
Restam ainda os movimentos dos dois
principais líderes nacionais, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abertamente
engajado na candidatura de Boulos, e Bolsonaro. Será lamentável se o urgente
debate em torno dos desafios da metrópole der lugar a um mero confronto de
bandeiras ideológicas.
Recado iraniano
Folha de S. Paulo
Teocracia perde eleição, mas não há sinal de
relaxamento do regime autoritário
O moderado
Masoud Pezeshkian foi eleito presidente do Irã na sexta (5) com
53,6% dos votos em uma eleição marcada pelo desalento dos iranianos aptos a
votar. Sua vitória sobre o candidato dos aiatolás, o linha-dura Saeed Jalili, é
tão significativa quanto a não participação de metade do eleitorado.
Parece improvável que o novo governo possa
abalar a estrutura da teocracia xiita. No entanto o contexto das eleições evidencia
a pressão por relaxamento do regime.
Pezeshkian saíra vencedor na
votação ainda mais esvaziada de 28 de junho, mas, como não obteve o
mínimo de 50% dos votos, foi necessário um segundo turno.
Aiatolás já lidaram com presidentes eleitos
sob bordões de reforma do regime e de reaproximação com o Ocidente. Não teriam
dificuldade de lidar com outro, se as circunstâncias não tivessem mudado.
O nervo exposto do governo autoritário está
na massa de cidadãos descontentes com a economia combalida
e as opressivas regras morais, cooptada pelo chamado ao boicote às urnas.
Pezeshkian, nesse sentido, pode ser usado
pelos teocratas se sua gestão amalgamar o apoio de minorias étnicas, reduzir a
insatisfação popular com a perda do poder de compra nos últimos anos e rever
normas exorbitantes, em particular as impostas às mulheres.
Um voo mais ambicioso seria abrir algum veio
de diálogo com o Ocidente sobre a retomada do acordo nuclear firmado em 2015,
visando a eliminação das sanções internacionais que prejudicaram a economia do
país.
Mas, embora o presidente iraniano tenha a
prerrogativa de orientar as políticas econômica e exterior, não há dúvidas de
que caberá ao líder supremo, Ali Khamenei, as decisões cruciais nesses setores.
E não se vê, até o momento, nenhuma perspectiva de mudança de rota por parte do
aiatolá.
Fato é que a teocracia saiu derrotada do pleito. Khamenei reprimiu os protestos de 2022 e 2023 com brutalidade. Se ignorar o recado das urnas, ao menos há alguma chance de estimular a oposição popular ao regime autoritário que há décadas subjuga os iranianos, notadamente as mulheres.
Casa de futricas
O Estado de S. Paulo
Lula diz que pode ‘dormir tranquilo’, pois
Rui Costa na Casa Civil impede que outros ministros lhe deem ‘rasteira’. Isso
revela o grau de desconfiança que impera no governo
O presidente Lula da Silva disse “dormir
tranquilo” com o ministro-chefe da Casa Civil que tem. Em meio à verborragia
sem filtros que exibiu em recente viagem à Bahia, Lula encontrou um modo
singular de defender o titular da pasta e, em tese, seu principal auxiliar no
Palácio do Planalto, o ministro Rui Costa. Ao atribuir méritos à Casa Civil,
desabonou os demais ministros, embora sem citá-los nominalmente, e expôs a
natureza das relações na Esplanada dos Ministérios. Um assombro.
“A presença do Rui na Casa Civil, e a equipe
que ele montou, é a certeza de que posso dormir toda noite tranquilo que
ninguém vai tentar me dar uma rasteira”, disse o presidente, durante discurso
em Feira de Santana. Para Lula, tanto Rui Costa quanto a secretária executiva
do Ministério, Miriam Belchior, são úteis porque “nenhum ministro conta uma
mentira” sem ser desmentido por ambos. “É por isso que muitas vezes vocês ouvem
que há divergência entre Rui e outros ministros”, emendou.
O ex-governador da Bahia tem sido objeto
frequente de críticas de colegas ministros, é visto com ressalvas por muitos
deputados e senadores em meio às dificuldades do governo na articulação
política com o Congresso, está no epicentro de algumas das decisões mais
questionáveis do governo e se tornou um dos principais personagens daquilo que
os franceses chamam de politique politicienne – as futricas
palacianas. Algumas vezes, há de fato choques de opinião que ecoam visões
distintas, o que é natural num governo de coalizão multipartidária. Outras
vezes, menos republicanas, revela-se tão somente o desencontro de ambições e de
interesses.
Seja como for, a declaração de Lula escancara
a desconfiança que impera na relação do presidente com seus auxiliares – e quem
conhece as entranhas do poder sabe a disposição de ministros e assessores para
tentar driblar a força dissuasória e de comando que um presidente da República
tem, omitir falhas, direcionar escolhas e se proteger do chefe. Sobretudo ante
um chefe como Lula, que se vê acima do bem e do mal e explora as divergências
internas para exercer seu poder como um árbitro ungido pelo Espírito Santo. Em
muitos casos, porém, são problemas que não se restringem ao universo petista: o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso incluía esse item na gaveta de
problemas com os quais precisava lidar no exercício do cargo e no que chamava
de “solidão do poder”.
Há, contudo, singularidades na Casa Civil
lulopetista e dizem respeito tanto à natureza da pasta quanto à competência
frágil para cumprir o que lhe cabe. Como em outros governos – do PT ou não – a
Casa Civil costuma ser considerada o ministério mais importante no Palácio do
Planalto, pela atribuição de coordenação dos outros ministérios e pelo braço
político que exerce. É um trabalho bastante próximo do presidente –
literalmente, inclusive: a pasta fica um andar acima do gabinete presidencial.
Na prática, o ministro ajuda o presidente a desempenhar suas atribuições. Numa
ponta, tem perfil administrativo, avaliando e monitorando o trabalho de outras
pastas e órgãos governamentais; noutra ponta, tem perfil de articulação
política; entre uma e outra, exerce a tarefa de articular políticas públicas
para executar obras estratégicas de infraestrutura.
Em todas as pontes, porém, é evidente a baixa
eficácia da Casa Civil de Lula. No front político são fartos os exemplos de
fracasso do governo nas negociações com o Congresso. No administrativo, basta
lembrar as sucessivas demonstrações de inépcia na condução das políticas
prioritárias para o País. Em ambos, a Casa Civil tem sido um esteio seguro para
que Lula seja Lula: aquele que ora dá bronca indireta nos demais ministros, ora
faz valer seu apetite intervencionista, como se vê nas polêmicas envolvendo a Petrobras.
Seja assegurando o rumo correto do governo e
evitando a dispersão de iniciativas e prioridades, seja concentrando-se na
articulação política, uma Casa Civil eficaz garante a tranquilidade necessária
ao presidente da República. Permite a ele um sono tranquilo, portanto, mas não
pelas razões informadas por Lula da Silva, mais preocupado em evitar rasteiras
de ministros e em colher dividendos eleitorais do que melhorar o País. No fim
das contas, quem não dorme tranquilo é o Brasil.
O legado controverso de Lira e Pacheco
O Estado de S. Paulo
Presidentes da Câmara e do Senado
protagonizaram a defesa da democracia e de importantes projetos, mas a
verdadeira ‘marca’ da gestão de ambos talvez seja a distorção do Orçamento
Às vésperas do recesso parlamentar, que
começa no próximo dia 17, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo
Pacheco (PSD-MG) correm contra o tempo, como mostrou o Estadão, para
aprovar projetos de lei que lhes sirvam como “marca” de suas gestões à frente
da Câmara e do Senado, respectivamente. Um e outro podem descansar, pois essa
tal marca a que tanto almejam já é lamentavelmente conhecida por todo o País. O
grande legado de Lira e Pacheco no comando das Casas Legislativas é a
consolidação do orçamento secreto, engendrado em conluio com o ex-presidente
Jair Bolsonaro e revelado por este jornal em maio de 2021.
Sob a liderança de Arthur Lira e Rodrigo
Pacheco, o Poder Legislativo acumulou um poder inaudito na Nova República sobre
a disposição dos recursos do Orçamento da União pela via mais torpe possível.
Numa espécie de parlamentarismo tropical, ao expressivo empoderamento
político-financeiro do Congresso em relação ao Poder Executivo, por meio do
orçamento secreto, jamais correspondeu uma responsabilização política pelas
escolhas feitas pelos deputados e senadores. E nem poderia corresponder, pois
essas escolhas são desconhecidas. O mistério é a essência do orçamento secreto,
uma evidente perversão do processo orçamentário, que, sob a premissa da
transparência, é o ponto nevrálgico de qualquer democracia que se pretende
séria.
É de justiça reconhecer, como este jornal já
sublinhou no tempo oportuno, que, durante alguns dos momentos mais dramáticos
do trevoso mandato de Bolsonaro, o Congresso, ao lado do Supremo Tribunal
Federal (STF), serviu como firme barreira de contenção à razia bolsonarista em
não poucas esferas da administração pública. Ademais, projetos de lei e
Propostas de Emenda à Constituição de importância capital para o País também
foram aprovados ao longo desses quatro anos em que Lira e Pacheco,
respectivamente, terão presidido a Câmara e o Senado. A aprovação da reforma do
sistema tributário, um projeto ansiado pela sociedade havia mais de três
décadas, é apenas o exemplo mais eloquente de um bom trabalho liderado pelos
dois.
Mas, ora, se é de “marca” que se está
tratando, não há outra senão o orçamento secreto. Afinal, outras legislaturas e
outros presidentes das Casas Legislativas já legaram ao País marcantes avanços
legais. Mas nenhum ousou se assenhorar do Orçamento da União com tamanha
ambição, desrespeito à Constituição e às decisões do STF e, não menos
importante, descaso pelo interesse público.
No caso de Lira, em particular, seu legado à
frente da Câmara é ainda mais pernicioso. Além da operação do orçamento secreto
como moeda de troca para barganhas para lá de suspeitas, registre-se em seu
nome a quase anulação do papel exercido pelas comissões temáticas da Casa para
o bom debate público. Aprovando requerimentos de “urgência” estapafúrdios,
autorizando votações remotas sem necessidade e criando a torto e a direito os
tais “grupos de trabalho” com deputados escolhidos a dedo por ele, Lira controlou
a agenda da Câmara com poderes praticamente imperiais. Como se isso não
bastasse, uma de suas primeiras medidas no cargo foi acabar com o chamado “kit
obstrução”, cerceando a democrática manifestação das minorias.
Arthur Lira e Rodrigo Pacheco traçaram planos
políticos arrojados para o momento em que deixarem seus cargos e “baixarem à
planície”, como se costuma dizer em Brasília. Lira, que cogita concorrer ao
Senado em 2026 por Alagoas, não dá um passo sem calcular o impacto de suas
ações na eleição que definirá seu sucessor, em fevereiro do ano que vem. Consta
que Pacheco, por sua vez, pretende disputar o governo de Minas Gerais nas
próximas eleições.
Pode ser que ambos venham a ser bem-sucedidos
em seus objetivos. Mas, se isso vier a ocorrer, terá sido a despeito da
avacalhação que promoveram na gestão do Orçamento – um quadro fiel da grave
crise da democracia representativa no Brasil.
O temor dos cientistas
O Estado de S. Paulo
Deputados dão aval a corte de dinheiro na
Fapesp, o que preocupa pesquisadores sérios
Não sem razão, cientistas paulistas andam
preocupados. A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) ignorou
apelos de pesquisadores e aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de
2025 com a possibilidade de corte de até 30% das verbas para pesquisa. Se
depender dos deputados estaduais, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (Fapesp) poderá perder até R$ 600 milhões no próximo ano.
Com potencial de impacto imediato, esse tipo
de proposta – já aventada em gestões passadas, mas sem tamanho sucesso como o
obtido até aqui – embute riscos futuros para São Paulo e o País. Patrimônio
paulista, assim como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual
Paulista (Unesp) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Fapesp
recebe, conforme a Constituição do Estado, 1% dos tributos para destinar
recursos à pesquisa.
Obviamente, o juízo político para a alocação
do dinheiro público é uma prerrogativa dos Poderes constituídos. Cabe ao
Executivo propor as regras orçamentárias e, com ajuste, aval e escrutínio do
Legislativo, levá-las a cabo. Mas mudanças dessa envergadura, mesmo sendo a
Fapesp uma instituição com recursos em caixa, exigem debate e planejamento,
para que se eleve a qualidade da produção do conhecimento, não o contrário.
O risco de um eventual corte na Fapesp ocorre
porque o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), conforme revelado
pelo Estadão, colocou um dispositivo na LDO para permitir remanejamentos.
Para isso, foi invocada a Desvinculação das Receitas dos Estados e Municípios
(DREM), prevista desde 2016 na Constituição Federal e que autoriza o uso de
dinheiro carimbado para outras finalidades até 2032, o que, de fato, desengessa
o Orçamento público e libera recursos para prioridades emergentes.
No entanto, pesquisadores de renome, como a
geneticista Mayana Zatz, tentaram demover os deputados de chancelar a medida. A
diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco da USP esteve
na Alesp, apresentou argumentos pela preservação do orçamento da Fapesp – em
torno de R$ 2 bilhões por ano – e explicou a importância da instituição. Como
se vê, a iniciativa não surtiu efeito.
Passada a votação, Zatz expôs seu maior
temor, em entrevista à GloboNews: “Nós estamos extremamente preocupados com o
futuro da pesquisa. O dinheiro que está na conta da Fapesp é um dinheiro
comprometido. O grande diferencial da Fapesp é fazer pesquisa em longo prazo”,
afirmou. A cientista citou, ainda, projetos que exigem anos de estudo na
medicina e agropecuária. Apesar de Tarcísio dar sinais de que não pretende
cortar verbas, Zatz enfatizou que nada impede que um próximo governador o faça.
Eis o perigo.
O financiamento da pesquisa exige reforma – não açodamento –, com propostas de diversificação de fontes de recurso, como o setor privado, e a valorização de pesquisadores por metas alcançadas. Em um cenário de incertezas, não à toa o Brasil assiste à fuga de cérebros. Não serão cortes, por sua vez, que trarão resultados.
Mercado da beleza sem controle
Correio Braziliense
Assim como existem normas muito claras para a
divulgação de substâncias lícitas, é evidente que a popularização de
procedimentos estéticos exige um enquadramento regulatório e maior fiscalização
As recentes mortes de dois jovens submetidos
a procedimentos estéticos evidenciam a existência de um mercado livre de
qualquer fiscalização de autoridades sanitárias ou de entidades de classe
ligadas à saúde. Em junho, o empresário Henrique Silva Chagas, de 27 anos,
morreu em São Paulo após uma sessão de peeling de fenol no rosto. Na semana
passada, em Brasília, Aline Ferreira da Silva, de 33 anos, perdeu a vida após
aplicação nos glúteos de polimetilmetacrilato, substância conhecida como PMMA,
de uso altamente específico e controlado — e não recomendado para tratamentos
estéticos.
Como já escrito nesta página, em Beleza a
qualquer preço (05/07), a disseminação dessas práticas de alto risco para a
saúde pública denota uma inadmissível lacuna e leniência das autoridades. É
urgente que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e os conselhos
regionais e Federal de Medicina, entre outras entidades, adotem medidas
rigorosas e inequívocas para limitar ao máximo o uso dessas substâncias de
potencial tão nocivo para a saúde, bem como impedir que vigaristas e
desqualificados matem ou causem graves lesões em pacientes interessados em
algum procedimento estético.
O horror cometido em clínicas de estética
revela outra face sombria, ainda pouco debatida pela sociedade brasileira: a
presença das redes sociais no mercado da vaidade. Em São Paulo, a dona da
clínica responsável pelo peeling fatal é conhecida como Natalia Becker, com
mais de 200 mil seguidores em uma rede social e um espaço livre para explorar
um mercado no qual exibir um corpo esculpido ou um rosto harmonizado significa
popularidade, fama e dinheiro.
Não se trata aqui, por óbvio, de demonizar a
indústria da beleza. É atividade econômica relevante, responsável por milhões
de empregos e capaz de contribuir para o bem-estar da sociedade. O que se
discute são os desvios, os excessos e as condutas criminosas que contaminam
esse mercado. Nesse ponto, é importante refletir, mais uma vez, sobre a
responsabilidade das redes sociais. É inegável que elas exercem um apelo cada
vez maior em tempos em que muitos estão mais preocupados em exibir uma bela
estampa do que compartilhar um conteúdo de qualidade.
No Congresso Nacional, onde se empurra com a
barriga a regulação das redes sociais, muito se fala sobre o perigo das fake
news, em particular no contexto político-eleitoral. Passa em silêncio, contudo,
a discussão se é preciso, por exemplo, proibir qualquer propaganda ou
divulgação de procedimentos ou tratamentos à saúde nas redes sociais. Contar
com a boa fé de charlatães e o excesso de confiança do paciente tem se revelado
uma temeridade, particularmente em uma sociedade que tanto valoriza o mercado da
vaidade.
Assim como existem normas muito claras para a
divulgação de substâncias lícitas — como medicamentos, cigarros e bebidas
alcoólicas —, é evidente que a popularização de procedimentos estéticos exige
um enquadramento regulatório e maior fiscalização. A permissividade reinante
nas redes sociais abre um terreno fértil para aproveitadores e sacripantas, ao
mesmo tempo em que coloca em risco o legítimo direito da pessoa de querer se
enxergar mais bonita — desde que permaneça saudável e viva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário