quarta-feira, 3 de julho de 2024

Zeina Latif - O Brasil é ingovernável?

O Globo

Fazer reformas fiscais deveria ser prioridade da classe política, até porque a oposição de hoje poderá ser governo amanhã

O país parece mais difícil de governar, mas isso não deveria ser justificativa para a inação.

O Executivo tem hoje menor poder para alocar recursos do Orçamento onde bem entender. Isso porque em torno de 93% das despesas são de natureza obrigatória, ante 75% no início dos anos 2000. O engessamento do Orçamento da União decorre das muitas regras constitucionais, além de despesas de difícil compressão, como o Bolsa Família.

Houve também aumento das renúncias tributárias, como o Simples. Com Lula, saltaram de 2% do PIB em 2003 para 3,5% em 2010; com Dilma, chegaram a 4,5% em 2014; e fecharam em 4,8% em 2023.

Outro problema é o enfraquecimento dos necessários instrumentos de barganha política, como cargos e emendas parlamentares, para obtenção de apoio no Congresso, no chamado presidencialismo de coalizão.

Antes de prosseguir, é necessário pontuar que esse modelo político não decorre da escolha de governantes. Foi o resultado da decisão dos constituintes pelo sistema presidencialista com elevada fragmentação partidária.

O que varia entre presidentes é a forma de operar o presidencialismo de coalizão, como na escolha de partidos aliados e na divisão de poder entre eles.

No caso de Lula, Carlos Pereira e Marcus Melo apontam que o presidente peca ao não dividir os ministérios de acordo com a base política que o elegeu. De qualquer forma, com o Orçamento à míngua, a entrega de ministérios a aliados como moeda de troca provavelmente não tem a mesma eficácia do passado.

O mesmo parece acontecer com as emendas parlamentares. No início do Lula 1, a soma total não chegava a R$ 10 bilhões a preços de hoje, tendo sido ampliadas ao longo dos dois mandatos, mais que dobrando de valor em 2010 (R$ 23 bilhões). Agora, estão em R$ 45 bilhões, o que significa não haver o mesmo espaço para aumento.

E parte importante delas (emendas individuais e de bancada estadual, que totalizam R$ 33,6 bilhões) se tornaram impositivas nos últimos anos, aumentando a independência dos parlamentares.

Além disso, em que pese a redução do número de partidos nos últimos anos, por conta das reformas eleitorais — como o fim das coligações e a criação das cláusulas de desempenho —, o número atual de 23 partidos representados na Câmara ainda é superior ao de 2003 (15) ou de 2010 (19).

Tudo somado, pode-se afirmar que Lula assumiu o governo em condições menos favoráveis do que no passado.

A ironia é que os governos do PT têm grande responsabilidade por essa difícil situação. Não se demonstra, porém, disposição para correções.

Esse quadro, no entanto, não parece ser suficiente para explicar as derrotas do governo no Congresso. Independentemente do funcionamento das moedas de troca, a maior concorrência na política, com visões diferentes na economia, contribui para barrar algumas pautas, por vezes com resultados melhores para a sociedade.

Vejamos.

O Congresso derrotou parte do decreto presidencial que trazia alterações no marco do saneamento, de 2020. As medidas representavam retrocesso ao favorecer empresas estatais, com desvantagem das privadas, como a permissão para prestarem serviço sem licitação em casos regionais.

Foi feita a devolução de trechos da medida provisória que estabelece restrições para a compensação dos créditos do PIS e Cofins, depois das amplas e justas críticas do setor privado.

Por outro lado, o governo conseguiu aprovar temas centrais para a gestão da economia: a PEC da Transição, apesar do forte aumento de gastos; o arcabouço fiscal, apesar das falhas no desenho; as várias medidas para aumento da arrecadação, mesmo sendo pauta difícil; e a Reforma Tributária, ainda que ao custo de muitas concessões a grupos organizados.

Espaço para governar há. Faltam boas propostas.

Fazer reformas fiscais deveria ser prioridade da classe política, até porque a oposição de hoje poderá ser governo amanhã. A flexibilidade orçamentária se tornou questão de governabilidade também, sendo que a rigidez do Orçamento só faz crescer com o envelhecimento da população (metade das despesas é com a Previdência).

Isso em meio a novas demandas da sociedade, como as decorrentes da questão ambiental e da transição digital.Torçamos para que os próximos presidentes tenham vigor para propor boas reformas e capacidade de atenuar a polarização e de construir consensos. Há muitas lições deixadas por FHC.


Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Um governo de centro faria isso,mas cadê?