A nova agenda 30 anos depois do Plano Real
O Globo
Brasil precisa promover reformas, confiar nos
empreendedores e apostar no aumento da competição
As comemorações dos 30 anos do Plano Real,
celebrados nesta semana, fazem jus ao feito histórico. A nova moeda acabou com
a hiperinflação crônica, chaga que punia os mais pobres e provocava todo tipo
de transtorno na vida de empresas e cidadãos. O principal legado do Real foi
ter demonstrado que, quando unem determinação e propósito, os brasileiros têm o
poder de resolver questões à primeira vista intratáveis. É com esse mesmo
espírito em mente que o país precisa agora encarar um novo ciclo de reformas
econômicas. O inimigo a bater desta vez não é mais a inflação, mas o
crescimento medíocre da economia, responsável pela miséria renitente. Tal
agenda deve ser encarada com a mesma garra. Se fosse possível resumi-la numa
frase: o Brasil precisa confiar nos empreendedores e apostar no aumento da competição.
A história do agronegócio demonstra que o
vigor empresarial brasileiro é capaz de enfrentar todo tipo de concorrente. Sem
proteção tarifária, os empresários do campo adotaram as melhores práticas de
plantio e gestão, investiram em tecnologia, exploraram nossas vantagens
comparativas, prosperaram e criaram um dínamo de crescimento para o Brasil. Os
fatores decisivos que o Estado propiciou para o sucesso não foram os programas
de financiamento nem vantagens tributárias, mas o apoio à pesquisa científica, por
meio da Embrapa. A revolução do interior não foi concebida num escritório na
Esplanada dos Ministérios, na sede de uma estatal ou no BNDES. Como costuma
dizer o ex-presidente do Banco Central Pérsio Arida — um dos artífices do Real
—, a melhor receita para o êxito do Brasil está na experiência do setor
agrícola, com a abertura maior da economia e menos intervenção estatal.
Ganhos de produtividade com a exposição à concorrência externa não são teóricos. Nos países com baixa competição, como o Brasil, as empresas não têm incentivo para investir em inovação. Se um artigo pode ser produzido como sempre foi e vendido caro, não há razão para apostar em melhorias. É por isso que a proteção de mercado resulta na perda de investimentos. O Brasil aplica em inovação o mesmo que países com renda per capita similar. Se as condições atuais forem mantidas, pouco mudará. A experiência dos últimos governos do PT mostra que não serão linhas de crédito facilitadas por bancos estatais que transformarão essa realidade. A desindustrialização precoce não será resolvida à base de subsídios. A solução é aumentar a concorrência para que os segmentos mais capazes se desenvolvam e prosperem. Nenhum país escapou da armadilha de crescimento baixo com renda média sem se integrar à economia global.
Aumentar a competitividade da economia
brasileira tem uma dimensão local. A reforma tributária, atualmente em
regulamentação no Congresso, terá papel crucial nisso. O sistema atual de
impostos incentiva a má alocação de recursos, a guerra fiscal entre estados,
mantendo no mercado empresas ineficientes graças ao acesso a benesses. Isso
inibe os investimentos. Edmar Bacha, principal negociador do Plano Real junto
ao Congresso, ressalta que a ação mais urgente hoje é salvar a reforma
tributária dos lobbies que querem entrar nas listas de taxação zero. “É preciso
enorme esforço político para evitar que a reforma seja desfigurada. Querem
colocar até filé-mignon na cesta básica”, afirma.
Quanto maior o número de produtos isentos,
maior será a alíquota básica paga por todos. E a isenção não terá os resultados
alegados. A experiência internacional demonstra que os produtores beneficiados
com renúncia fiscal não costumam repassar a vantagem aos consumidores. Está em
curso em Brasília uma corrida não para ajudar os mais pobres, mas para capturar
o Estado, com o único objetivo de obter privilégios. Bacha ressalta que a
estratégia mais eficiente neste caso para cuidar da baixa renda é o sistema de
cashback, que devolve dinheiro diretamente a quem precisa.
Para aumentar a competição entre as empresas,
o papel do Estado é intransferível. Quanto mais eficiente for, mais facilitará
a vida de estudantes, trabalhadores e empreendedores. Por isso uma reforma
administrativa deve ser outra prioridade. Os funcionários públicos correspondem
a 5,6% da população brasileira, abaixo da média da OCDE, mas consomem 13% do
PIB, mais que Portugal ou Espanha. Isso ocorre porque uma elite formada por
juízes, procuradores, militares e outras categorias se recusa a abrir mão de privilégios
que não existem em nenhuma outra parte — enquanto o grosso do funcionalismo
trabalha em condições insatisfatórias.
Mesmo sendo uma estrutura cara, o Estado não
entrega serviços na qualidade necessária. No Brasil, apenas 51% se dizem
satisfeitos com a escola, percentual superior apenas a Venezuela e Haiti no
continente. Na saúde, menos ainda: 33%. De modo geral, o serviço público peca
pela falta de avaliações objetivas e periódicas e se destaca por carreiras
fragmentadas e confusas. Nas áreas mais influentes do funcionalismo, servidores
ganham mais, mesmo tendo competências e atribuições similares. Passou da hora
de o Estado deixar de ser um peso e se transformar em facilitador.
Ao mesmo tempo que é preciso avançar na pauta
de reformas, o país não pode descuidar das conquistas realizadas. O tripé
macroeconômico consagrado com a experiência do Plano Real prevê metas de
inflação, taxa de câmbio flutuante e superávit nas contas públicas. A falta da
devida atenção à crise fiscal é a moléstia mais aguda de que sofremos neste
momento — não é outro o motivo da disparada do dólar. Não pode ser
menosprezada. O governo aprovou reajustes do salário mínimo acima da inflação,
ciente dos reflexos no rombo da Previdência. A mudança da indexação de
benefícios acelerou a necessidade de nova reforma previdenciária. Atrelar os
gastos com saúde e educação ao aumento da receita é outra medida com apelo
popular, mas contraproducente, por comprimir todos os demais gastos do governo,
da infraestrutura aos investimentos para combater os efeitos das mudanças
climáticas.
Sem o ajuste fiscal, a dívida pública
continuará aumentando. O brasileiro precisa e merece educação, saúde e
segurança muito melhores. A crise fiscal mostra que não há dinheiro para tudo,
portanto é preciso uma gestão eficiente do setor público. Esse desafio ocupa
hoje na agenda brasileira o mesmo lugar da hiperinflação na época do Real.
Lula cria embaraços em série para BC conter
inflação
Valor Econômico
A impaciência do presidente e seus erros de visão aumentam desnecessariamente o dólar, a inflação, os juros - e a conta será paga por todos os brasileiros
Desde o dia 18 de junho, o presidente Lula
passou a investir diariamente contra o Banco Central (BC), a figura de seu
presidente e os rumos da política monetária. Lula pode ter opinião sobre tudo,
mas não pode ignorar que, como líder da nação, suas palavras têm peso e
consequências. Os efeitos das invectivas de Lula sobre o BC foram um aumento
ininterrupto da valorização do dólar ante o real, que no ano atingiu até ontem
16,65%, perto de uma maxidesvalorização. O presidente subiu de tom aos poucos e
ontem, diante da escalada do dólar, disse que o governo “precisa fazer alguma
coisa” e que fará uma reunião sobre o assunto hoje - à revelia do BC,
entenda-se. Em seguida, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve de
desmentir que haverá mudanças no IOF no câmbio.
Há vários erros que o Planalto está
cometendo, alguns mais graves que outros. O presidente não se conforma com o
fato de Roberto Campos Neto, que dirige o BC, ter sido indicado por Bolsonaro.
Mas tem de aceitar e respeitar a lei, que concedeu autonomia à autoridade
monetária e mandatos não coincidentes com os do presidente da República,
especialmente para preservar o BC das interferências e subserviência políticas
- exatamente o que se tenta fazer no momento. Lula foi além e prestou um
desserviço ao identificar a política monetária técnica liderada por Campos
Neto, que tem derrubado a inflação, como um complô inspirado por um inimigo
político para sabotar a política econômica de seu governo. Não há quaisquer
sinais disso.
O presidente da República foi tornando mais
explícitas suas críticas, ampliando seus efeitos nefastos sobre dólar e juros.
Em 27 de junho, declarou à rádio O Tempo que a taxa Selic de 10,5% ao ano é
“irreal para uma inflação de 4%”. E emendou: “Isso vai melhorar quando puder
indicar o presidente, que vai ao Senado, para construirmos uma nova filosofia”.
Na sexta, afirmou que “não precisamos ter política de juros altos neste
governo. A taxa Selic a 10,5% está exagerada”. O que Lula está deixando muito
claro é que vai nomear um substituto de Campos Neto que reduza a taxa de juros
e que siga a “nova filosofia”, que de nova nada tem, escrita no Palácio do
Planalto.
Nos discursos de improviso do presidente, um
equívoco não vem sozinho, mas arrasta muitos outros que compõem um cenário
intranquilo. Lula põe um sinal de igualdade entre realizar ajuste fiscal, para
deter a gastança que seu governo realiza, com cortar benefícios dos pobres. Ou
identifica cobranças de adequação das contas públicas, para que seja possível
cumprir metas fiscais que sua própria gestão traçou, com “prestar contas a
ricaços” ou a banqueiros e especuladores, pessoas às quais considera que o BC
dedica atenção exclusiva.
No pacote dos discursos, há a rejeição da
autonomia do BC, ao ajuste de contas que reduza os gastos previdenciários, à
desvinculação dos benefícios da correção real do salário mínimo, e à política
monetária. Essas ideias não são as respostas que investidores domésticos e
internacionais esperam para o cenário que traçam hoje. A queda da Selic teve de
ser interrompida porque a inflação voltou a se distanciar da meta. Os 10,5%
atuais, contra os quais se insurge o presidente, terão que perdurar por um bom
tempo para que o BC leve a inflação a 3%, que é o seu mandato. A opinião de
mais de uma centena de consultores e analistas no boletim Focus prevê 4% de
inflação para este ano e 3,87% para o próximo, e que o governo não cumprirá as
metas de resultado fiscal em nenhum dos anos de seu mandato.
A taxa de câmbio reflete todos esses fatores
domésticos, mas sua tendência principal tem componente preponderante externo.
Taxas de juros altas nos EUA, prolongadas por mais tempo que o previsto,
fortaleceram o dólar, assim como agora as incertezas sobre as eleições
americanas. A maré de apreciação do dólar prevalece há meses, mas atinge os
países com intensidades diferentes. Entre as moedas emergentes relevantes, o
real foi a que mais se desvalorizou no primeiro semestre do ano. As declarações
de Lula pesaram: parecem confirmar as piores suspeitas dos investidores sobre a
deterioração da situação fiscal e da política monetária futura.
O presidente Lula tumultua artificialmente um
cenário que não é de crise. Os números da economia são vigorosos, especialmente
os do emprego e da renda. O crescimento será possivelmente maior que o previsto
e a arrecadação bate recordes. No que se refere à ameaça cambial, o país tem
US$ 355 bilhões em reservas (dados de 2023), mais que suficientes para
enfrentar grandes turbulências. O que obscurece esses dados são o déficit
fiscal e a resistência da inflação, que o BC tenta corretamente debelar, sob
queixas de Lula.
“O que o mercado está precificando hoje não está sincronizado com a realidade”, disse ontem Campos Neto em Portugal, ao revelar que está confiante em que a inflação futura será menor do que as expectativas. O presidente Lula cria embaraços desnecessários para que o BC continue reduzindo a inflação, o que necessariamente põe algum freio na economia até que o objetivo seja atingido. A impaciência do presidente e seus erros de visão aumentam desnecessariamente o dólar, a inflação, os juros - e a conta será paga por todos os brasileiros.
Retórica populista de Lula semeia a crise
Folha de S. Paulo
Frenesi verborrágico do petista alimenta
incertezas e a alta do dólar, criando armadilha para o próximo chefe do BC
São típicas da retórica populista a pretensão
de personificar o interesse do povo, sempre tratado como massa amorfa e
incapaz, e acusações contra supostos inimigos de tais aspirações. Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT),
que nunca se afastou muito desse padrão, decidiu aprofundá-lo num recente
frenesi de entrevistas e pronunciamentos.
"Eu não sou um presidente da República
que está junto do povo. Eu sou o povo que está na Presidência da República
deste país por conta de vocês", discursou Lula de modo quase caricatural
no sábado (29), em São Paulo, ao concluir uma longa sequência de autoelogios.
Os inimigos escolhidos são, mais uma vez,
o Banco Central e
o mercado financeiro, que estariam envolvidos em uma conspiração para manter
os juros elevados.
"O que você não pode é ter um BC que não está combinando adequadamente com
aquilo que é o desejo da nação", disse o
petista na segunda-feira (1º), desta vez arvorando-se em falar em
nome da nação.
Mesmo para um mandatário desde sempre amigo
dos microfones, a escalada verborrágica dos últimos dias é evidente —foram ao
menos oito entrevistas a veículos de comunicação e 13 discursos desde a semana
retrasada. Já os objetivos não parecem tão claros, e os resultados são
desastrosos.
Só nesse período, a cotação do dólar saltou
4,7%, segundo a taxa média calculada pelo BC, aproximando-se
do patamar de R$ 5,70, o que tende a pressionar a inflação.
Pudera: em 16 dias, Lula indicou que espera
do próximo chefe do BC mais alinhamento a seus desígnios, desautorizou medidas
de controle de despesas públicas aventadas por sua equipe e, nesta terça (2),
disse que o governo fará "alguma coisa" contra a alta do dólar.
Não há lógica no falatório. Os quatro
diretores indicados pelo governo petista ao BC votaram
pela interrupção da queda dos juros, amparados por argumentação
técnica. A desvalorização do real só torna ainda mais difícil retomar o corte
das taxas.
O mercado, ambiente no qual se formam preços,
reage às incertezas alimentadas por Lula quanto às contas públicas, a autonomia
da política monetária e o controle da inflação. Intervir nesse movimento, sem
estancar suas causas, será inócuo na melhor das hipóteses.
Em menos de seis meses, Roberto
Campos Neto deixará o BC e não servirá mais de bode expiatório
para as mazelas da economia. Na toada de hoje, seu sucessor corre risco de
assumir em um cenário hostil, de impacto do câmbio na
inflação e perda de credibilidade.
A piora das condições financeiras, cedo ou
tarde, chega à produção e ao emprego, e os mais atingidos são os pobres em cujo
nome pretende falar o populismo.
Gasto nada homeopático
Folha de S. Paulo
Ante carências do SUS, uso de recursos em
terapias controversas deve ser revisto
Atualmente, 11% dos brasileiros têm mais de
65 anos. Estima-se que, em 2050, serão mais de 20% e, em 2050, quase 30%.
Tal envelhecimento da
população impõe desafios para a Previdência
Social e, não menos importante, para o sistema público de saúde.
É preciso desenhar políticas para os idosos e
de prevenção contra problemas comuns com o avanço da idade. Essa mobilização
demanda alocação racional de recursos. Causa espécie, nesse contexto, que
dinheiro público seja direcionado a terapias sem eficácia comprovada.
A homeopatia é uma delas. Ao lado de outras
carentes de evidências (como reike, aromaterapia e constelação familiar), ela é
ofertada no programa Práticas Integrativas e Complementares (PICs) do SUS, criado em
2006.
Em 2023, 32,6 mil
atendimentos em homeopatia foram feitos no sistema público de saúde do país,
segundo o Ministério da
Saúde. O problema é que, até agora, pesquisas científicas não
conseguiram comprovar que a terapia funciona.
Duas meta-análises publicadas em 1997, na
revista Lancet, e em 2017, na Systematic Review, concluíram que não há
evidências suficientes de que a homeopatia seja eficaz para enfermidades
específicas.
Há indícios de que os benefícios apontados
por usuários e homeopatas se devam ao
chamado efeito placebo —isto é, a consequência da expectativa
positiva dos pacientes de que serão curados.
A medicação extremamente diluída da
homeopatia em si parece não produzir impacto, mas o atendimento acolhedor dos
médicos que a receitam, sim.
Por isso, especialistas como o professor de
Havard Ted Kaptchuk, um dos maiores nomes em análises de placebo, indicam que a
medicina precisa incorporar nas consultas melhor comunicação e um atendimento
mais individualizado, que trate o paciente como um todo, não apenas seus
sintomas.
Há indícios de que incentivar tratamentos alopáticos humanizados seria mais sensato do que bancar terapias sem respaldo com dinheiro público, ainda mais considerando as dificuldades orçamentárias do governo e a pressão do envelhecimento da população.
A alarmante escalada do déficit da
Previdência
O Estado de S. Paulo
Estudo do Ipea mostra que o rombo chegou a R$
429 bilhões no ano passado. Com receita de R$ 1,18 trilhão para despesas de R$
1,6 trilhão, uma nova reforma da Previdência é urgente
A receita da Seguridade Social no ano passado
atingiu R$ 1,179 trilhão, o suficiente para cobrir apenas 73,3% da despesa
total de R$ 1,6 trilhão do sistema de previdência e assistência social. O
déficit de R$ 429 bilhões em 2023, revelado em estudo de pesquisadores do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados coletados da Receita
Federal, mostra que é urgente repensar o sistema previdenciário. Ainda que em
2019 a Previdência tenha passado por sua mais ampla reformulação desde a
Constituição de 1988, os números comprovam que não foi o bastante para garantir
o financiamento futuro.
Os pesquisadores Rogério Nagamine Constanzi e
Graziela Ansiliero, autores do trabalho que buscou estimar alíquotas capazes de
custear a Previdência Social, recorreram à base de dados de órgãos do governo,
pesquisas estatísticas e estudos de especialistas para concluir que a
perspectiva – caso permaneça a situação atual – é que o déficit cresça ao longo
do tempo, acompanhando o rápido envelhecimento da população.
O novo trabalho do Ipea corrobora, com
precisão técnica inquestionável, a necessidade de um novo e profundo debate
sobre a questão previdenciária. Há pouco mais de quatro anos, mudanças
fundamentais para a manutenção do sistema, como a extinção da aposentadoria por
tempo de contribuição, representaram avanço importante, mas não solucionaram os
problemas de financiamento. Faz-se necessário, no atual contexto de discussão
da reforma tributária, retomar um debate profundo para garantir a solvência
previdenciária nas próximas décadas.
Lembrando que, num sistema previdenciário
contributivo a receita é vinculada ao financiamento da despesa, Nagamini e
Ansiliero chamaram a atenção para o fato de que o rombo do ano passado ocorreu,
apesar do efeito do mecanismo de Desvinculação de Receitas da União (DRU), que
permite ao governo federal usar livremente 30% de todos os tributos federais
vinculados por lei a fundos ou despesas, o que incluía (supostos) excedentes de
receitas vinculadas à seguridade social.
O acompanhamento dos economistas mostrou que,
ao longo de 15 anos, a relação entre receita e despesa se deteriorou de forma
consistente. Em 2008, as receitas representavam 111,8% das despesas
assistenciais e de Previdência; em 2013, a arrecadação ainda era mais do que
suficiente para os gastos, representando 102,8%, mas, daí para a frente, os
déficits se sucederam até chegar aos pouco mais de 73% em 2023.
O estudo também apresenta dados restritos do
regime previdenciário dos trabalhadores privados vinculados ao Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS), e os resultados são ainda mais alarmantes: em
2000, a receita cobriu 84,7% da despesa total; em 2023, a arrecadação foi
suficiente para custear apenas 65,9% do dispêndio. A receita do Regime Geral de
Previdência Social (RGPS) correspondeu a 5,5% do PIB no ano passado, exatamente
a mesma proporção de 2009. Já a despesa, que era de 6,7% do PIB em 2009, aumentou
para 8,3% em 2023.
Diante de números que revelam tamanha
insustentabilidade do regime previdenciário, ações como a criação de uma
força-tarefa do INSS para realizar 800 mil perícias e verificar se foram
corretamente concedidos os benefícios por incapacidade e as aposentadorias a
idosos de baixa renda e pessoas com deficiência, como anunciou o presidente do
instituto, Alessandro Stefanutto, ao Estadão, assumem um caráter meramente
paliativo. Embora a revisão periódica de benefícios seja uma medida importante
para evitar fraudes e gastos desnecessários, a questão previdência é mais
profunda e exige ação imediata.
Os pesquisadores do Ipea destacam, além da
intensa mudança demográfica, transformações do mercado de trabalho, que criaram
desequilíbrios adicionais na cobertura previdenciária, como o crescimento
vertiginoso de Microempreendedores Individuais (MEIs), com tratamento
subsidiado, e o aumento da informalidade. As alíquotas de contribuição
propostas por eles são invariavelmente altas, ao redor dos 30%. Em tempos de
debate sobre desoneração da folha de pagamentos, é uma discussão necessária.
Elogio ao cinismo
O Estado de S. Paulo
Ao fazer campanha descarada por seus
candidatos em São Paulo e Rio, Lula não só desabona a própria Presidência da
República, como ajuda a converter lei eleitoral em peça de ficção
Com um olho na própria reeleição e outro nas
eleições municipais deste ano, o presidente Lula da Silva passou o fim de
semana na ponte aérea ao lado de seus candidatos às prefeituras de São Paulo e
do Rio de Janeiro. Nesse périplo eleitoreiro, os nomes apoiados por Lula – o
paulista Guilherme Boulos (PSOL) e o carioca Eduardo Paes (PSD) –, as plateias
do presidente nas duas cidades e, infelizmente, o restante do Brasil
testemunharam, quase sem disfarces além do cinismo de praxe, a antecipação da
campanha eleitoral. Pelo que faz e pelo que diz de maneira incontrolável –
afinal, é sua natureza –, Lula desmoraliza o cargo que ocupa, o que não chega a
surpreender. Seria demais esperar que o petista respeitasse a lei que proíbe
campanha eleitoral, posto que jamais desceu do palanque, mas não precisava
desmoralizá-la de maneira tão acintosa.
Em São Paulo, num descarado comício no Jardim
Ângela, com a presença de Boulos no palanque, Lula disse que iria assinar ali o
contrato de financiamento da expansão do metrô para aquela região periférica da
capital, mas não o fez porque nem o prefeito Ricardo Nunes nem o governador
Tarcísio de Freitas aceitaram comparecer ao evento. É possível imaginar as
razões que levaram Nunes e Tarcísio a declinar do convite, já que nada ali se
assemelhava a um evento oficial de governo. Era um ato de pura e simples campanha
eleitoral, natureza que ficou clara quando Lula ironizou o prefeito e o
governador, dizendo que, “quando a gente quer fazer investimento, quando a
gente quer fazer crédito, a gente não se preocupa de que partido é o
governador, a gente se preocupa se o povo daquele Estado, se o povo daquela
cidade precisa das coisas que a gente faz”.
Já no Rio de Janeiro, Lula foi recebido de
braços abertos por Paes, candidato à reeleição, despejando sobre o anfitrião
fartos elogios e afirmando estar “diante do possível melhor gerente de
prefeituras que este país já teve”.
Veteraníssimo de campanhas eleitorais, Lula
conhece muito bem a lei. Até o início oficial da campanha, em 16 de agosto, não
se pode pedir voto. No evento do 1.º de Maio, no entanto, Lula resolveu pedir
votos para Boulos porque o comício havia sido um fracasso e era preciso criar
um fato político para desviar a atenção. Ele sabia que seria multado pela
Justiça Eleitoral, mas a multa, de tão irrisória, na prática se torna uma
despesa de campanha como outra qualquer. Não existe de fato um estímulo para
que a lei seja cumprida, especialmente pelos partidos que andam com as burras
cheias de dinheiro oriundo de generosos fundos públicos.
Mas a coisa vai além da mera desobediência. É
puro escárnio. “Não posso falar o nome do Boulos, porque já fui multado uma
vez”, disse Lula no Jardim Ângela, como se estivesse realmente preocupado com
isso. Para deixar claro que não dava a mínima para a lei, permitiu que seu
candidato discursasse em tom de triunfo, ao enaltecer a obra e a graça de
“governos populares em São Paulo”. No Rio, Paes também ironizou a
impossibilidade de pedir votos, dizendo que não pode “pedir nada”.
Tudo isso mostra a evidente limitação da
legislação eleitoral no contexto das pré-campanhas. São problemas que vão além
do mecanismo da reeleição, como se constata ante o empenho de Lula para usar a
máquina federal em favor de seus candidatos. O brasilianista Thomas Skidmore,
no clássico livro Brasil de Getúlio a Castello, publicado na década de
1960, já descrevia assim os dilemas entre a gestão e a disputa eleitoral no
País: “Só existe governo no Brasil durante a primeira metade do mandato
presidencial – a outra metade é consumida elegendo o próximo presidente”. Uma
herança que se espraia uniformemente pelos mandatos de governos estaduais e
prefeituras. E assim o presidente não apenas desabona o próprio papel, como
converte a legislação que rege os limites da pré-campanha numa peça de ficção
ou de cinismo – uns fingem que obedecem; outros fingem que fiscalizam e punem.
O peso de Lula na inflação
O Estado de S. Paulo
As falas do presidente da República
contribuem para piorar expectativas já bastante ruins
As estimativas de analistas do mercado
financeiro para a inflação sobem semana a semana há, ao menos, dois meses. Para
este ano, a previsão já atinge 4%, ou seja, um ponto porcentual acima do centro
da meta de 3% e só meio ponto abaixo do teto; para 2025, a projeção é de 3,87%.
A tendência já havia sido verificada no recente Relatório Trimestral de
Inflação (RTI), que constatou consistente piora na percepção dos analistas
para o comportamento inflacionário, ainda que os resultados fiscais negativos
no curto prazo já fossem favas contadas.
Tanto o RTI quanto o Focus são
elaborados pelo Banco Central (BC), com base em modelos de projeções coletados
em mais de cem instituições financeiras. A deterioração das previsões, é bom
ressaltar, não se deve apenas ao acompanhamento de preços ou ao comportamento
desta ou daquela commodity agrícola ou mineral, ou mesmo aos reflexos da
economia norte-americana. Contribuem – e muito – para o cenário as incertezas
futuras no mercado doméstico e, neste tópico, o presidente Lula da Silva tem se
esmerado em potencializar a inquietação.
Por óbvio, tem pesado muito nas expectativas
de inflação a constatação de que a revisão das despesas prometidas pelo governo
não será suficiente para equilibrar o orçamento público, ainda mais diante de
uma arrecadação já no limite. E desde que decidiu substituir as lives semanais
roteirizadas por entrevistas a veículos de comunicação, Lula da Silva se
transformou numa fonte inesgotável de insegurança.
A cada declaração estouvada, faz disparar o
dólar, recalibra opções de analistas, deixa o mercado em polvorosa e, depois,
se diz surpreso com o resultado. Sem medir as palavras, chamou de “cretinos” os
especialistas que atribuíram um pico na cotação do dólar em parte às dúvidas
que ele manifestou sobre a necessidade de cortar gastos, em entrevista ao
portal UOL, mesmo diante de um déficit primário de R$ 61 bilhões, o segundo
pior desde 1997. “Os cretinos não perceberam que o dólar tinha subido 15 minutos
antes”, disse Lula, ignorando o fato de que a alta do dólar naquela
quinta-feira tinha ocorrido imediatamente depois de sua fala desastrosa, e não
antes, conforme cronometrou o Estadão/Broadcast.
Dizer que não tem certeza da urgência de
cortar despesas é assinar um atestado contra a responsabilidade fiscal. Sem que
Lula ao menos demonstre efetivo interesse em equilibrar as contas, será
necessário manter os juros altos para conter a inflação.
Mas Lula não está nem aí. Em entrevista à
rádio mineira O Tempo, indiferente ao caos que espalha, voltou a criticar os
juros e garantiu que “isso vai mudar” quando ele puder indicar o presidente do
Banco Central. Ou seja, o presidente anunciou, a quem interessar possa, que o
próximo presidente do BC será só um nome no crachá, pois a política monetária
será ditada pelo Palácio do Planalto.
Enquanto isso, a inflação sobe. No momento em que se relembra o lançamento do real, que há 30 anos restabeleceu o poder de compra da moeda nacional e abriu caminho para o desenvolvimento maduro do País, é preciso reforçar a mensagem de que o controle da inflação não é uma dádiva da natureza, mas resultado de responsabilidade fiscal – aquela que Lula parece desdenhar.
As falas de Lula e os especuladores
Correio Braziliense
Não há nenhum fundamento que justifique o
valor do dólar, que, ontem, fechou cotado a R$ 5,66, acumulando valorização de
1,37% no mês e de 16,75% no ano
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva
manifestou ontem preocupação com a escalada do dólar frente ao real. Mas, mais
do que preocupação, sinalizou que pedirá uma reunião de governo para adotar
medidas para conter o que classifica de ataque especulativo contra o real. De
fato, a moeda brasileira tem se desvalorizado muito em função de movimentos
especulativos dos investidores, mas também pelas altas taxas de juros nos
Estados Unidos e pelas incertezas em relação à economia norte-americana e pelos
embates do presidente com o Banco Central. Lula, sozinho, não tem capacidade
para alterar o câmbio, mas as suas falas são tudo o que os especuladores querem
para justificar a escalada do dólar.
O presidente tem todo direito de expressar
suas opiniões e diretrizes do seu governo, mas precisa considerar a
conveniência de suas declarações — muitas vezes orientadas para a política e
para marcar posição para seus candidatos nas eleições municipais. Lula trata
questões econômicas como se estivesse em um palanque e o adversário fosse o
presidente do Banco Central ou os investidores, uma atitude que é extremamente
danosa para a economia brasileira. Não há nenhum fundamento que justifique o
valor do dólar, que ontem fechou cotado a R$ 5,66, acumulando valorização de
1,37% no mês e de 16,75% no ano.
A cotação do moeda norte-americana está fora
da realidade, considerando a conjuntura econômica do país, mas não há um limite
para que se valorize frente ao real, e o que se espera é que, como disse o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, se elimine os ruídos de comunicação
gerados pelo próprio governo, que, segundo ele, comunica mal os seus feitos na
área econômica. Em relação ao limite para a alta do dólar, é preciso lembrar
que, em setembro de 2022, nas vésperas da primeira eleição vitoriosa de Lula, a
moeda atingiu valor recorde, corrigido pela inflação, de R$ 8,76. Hoje, o
dólar, que começou o ano abaixo de R$ 5, está na maior cotação desde janeiro de
2022.
Esse cenário de incertezas nos Estados Unidos
pressiona as moedas de todo o mundo, não apenas no Brasil. Moedas da Colômbia,
da Argentina, do Chile e do México estão pressionadas e perdendo valor frente
ao dólar, mas num patamar não tão intenso quanto no Brasil. Com as taxas de
juros elevadas nos EUA e as taxas de longo prazo, que não são controladas pelo
Banco Central, subindo sistematicamente, dólares de todas as partes do mundo
migram para a América, e os mercados em que há menos divisa norte-americana sofrem
desvalorização das suas moedas. Ocorre, praticamente, em todas as economias
periféricas, num processo que se torna mais intenso no Brasil, com o presidente
municiando os especuladores.
Nesse contexto, a primeira medida efetiva para conter o ataque especulativo é cessar as falas que alimentam e servem de justificativa para os especuladores. O resultado desse movimento será exatamente a elevação das taxas de juros para evitar, de um lado, que o dólar caro e a demanda aquecida elevem a inflação, num cenário que há seis meses seria improvável, e, de outro, conter a própria cotação da moeda dos Estados Unidos. O dólar elevado encarece todos os produtos importados, como diesel e trigo, cujo aumento vai parar direto no bolso do brasileiro. O presidente Lula tem que ser alertado de que o efeito das suas falas pode ser exatamente o contrário do que ele diz almejar.
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