Folha de S. Paulo
Bolsonaro e seus chegados nunca tentaram
enganar ninguém: o poder pela força era opção clara
Sempre foi evidente que Bolsonaro e
seu círculo íntimo só não dariam um golpe de Estado se não tivessem os meios ou
as oportunidades necessárias; motivação nunca faltou, e eles nunca esconderam
isso. Se tivessem obtido sucesso, teria sido, provavelmente, o golpe mais
anunciado da história.
De fato, a cada obstáculo imposto pelo Poder Judiciário aos seus apetites, Bolsonaro respondia com ameaças histéricas de desrespeitar a Constituição, ignorar decisões judiciais e utilizar as Forças Armadas contra quem lhe contrariasse as vontades. Por várias vezes, de sua cercania e com o seu envolvimento direto, saíram as diretivas para que movimentos bolsonaristas, como caminhoneiros financiados pelo agronegócio, policiais e militantes radicais, voltassem sua fúria contra instituições e indivíduos. Ou, simplesmente, gerassem o caos necessário para justificar o uso da força policial ou militar.
Bolsonaro e os seus chegados nunca tentaram
enganar ninguém: tomar ou manter o poder pela força era uma opção nitidamente à
mesa.
É importante notar que uma parte
significativa dos seus apoiadores populares da primeira hora nunca disfarçou
que compartilhava essa opção. Assim como os da última hora, aqueles que tomaram
chuva nos acampamentos ao lado dos quartéis e que se voluntariaram como bucha
de canhão e acabaram na prisão, enquanto os peixes graúdos escapavam.
A demanda por intervenção militar precede a
ascensão de Bolsonaro como líder da horda. É mais provável que Bolsonaro tenha
sido escolhido como líder justamente porque parecia apto para o papel. Já em
2013, o lema "socorro, governo militar" debutava nas ruas e nas
redes. Em 2015 e 2016, nas manifestações contra Dilma, os
"intervencionistas militares" e os outros "Fora, Dilma",
liderados por Lobão, chegaram a entrar em conflito em São Paulo.
Naqueles anos, os que queriam o coturno das
Forças Armadas pisando no pescoço da democracia liberal enchiam de mensagens os
perfis @Gen_VillasBoas, @GeneralGirao, @Gen_Ex_Freitas. Aos militares não
solicitavam menos que "zerar e reiniciar" o sistema político, anular
mandatos, fechar Poderes e, se possível, "descer o cacete nos políticos
safados".
Vencida a eleição, tratava-se de manter-se no
poder, custasse o que custasse. Os Bolsonaros sempre demonstraram um apego
desproporcional a um poder que nunca julgaram merecer, mas que receberam devido
a circunstâncias políticas excepcionais. Têm razão em uma coisa: Bolsonaro é
provavelmente o líder de extrema direita mais despreparado e estúpido a
alcançar o poder nos últimos tempos.
Foi eleito como símbolo do antipetismo, do
sentimento de antipolítica dirigido aos governos civis e porque foi acolhido
pelos militares, que viram nele uma oportunidade de voltar ao centro da
política após anos relegados ao "cantinho do castigo".
Na eleição de 2018 já se sabia que Bolsonaro
era um combo, não um indivíduo: as Forças Armadas vinham no pacote. E a elite
armada que trouxe para o governo tinha como característica em comum com ele e
sua família o desprezo pela ideia de governo civil e da democracia liberal como
um sistema de freios e contrapesos destinados a evitar autocracias. Certamente
há de haver militares brasileiros com um padrão moral republicano e convicções
democráticas arraigadas, mas estes não são os que aderiram a Bolsonaro, mandaram
às favas os escrúpulos de consciência e se disseram dispostos a (fazer) matar
ou a (mandar) morrer —ou a qualquer sacrifício (dos outros)— para continuar
mandando no país.
A vontade de ação, a paranoia, a visão
simplória segundo a qual se vive sob "a ameaça dos vermelhos", a
convicção de que quem tem a força deve usá-la, a repetição obsessiva e
delirante de que houve, há e haverá fraude em toda eleição que Bolsonaro
perder, a ausência de quaisquer escrúpulos no planejamento de assassinatos,
tudo está documentado no relatório da PF sobre o comportamento do círculo
íntimo de Bolsonaro no golpe planejado para dezembro de 2022. E é perfeitamente
coerente com o que eles sempre disseram e prometeram que fariam.
E não adianta a fingida surpresa de quem, não
sendo um óbvio beneficiário de um governo construído sobre os cadáveres
de Lula, Alckmin e Moraes,
colaborou conscientemente com o projeto de poder de Bolsonaro. O único mistério
era como, quando e quem estaria envolvido nas prisões, assassinatos e
"neutralizações" dos adversários; o restante foi tão anunciado e
prometido que, hoje, a sensação é muito menos de surpresa e escândalo e mais de
"então era assim que planejavam fazer?".
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